Opinião

Direito comparado das cortes constitucionais no Brasil e na França

Autores

  • Valerio de Oliveira Mazzuoli

    é professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa doutor summa cum laude em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e advogado em Mato Grosso São Paulo e Distrito Federal.

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  • Vanessa Gonçalves Alvarez

    é advogada no escritório Zanin Martins Advogados colaboradora do Lawfare Institute mestre em Direito Internacional Público e titular de um LLM em Direito Francês e Europeu na Paris 1 — Panthéon Sorbonne.

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2 de junho de 2023, 15h19

A Constituição francesa de 4 de outubro de 1958 [1], conhecida como a Constituição da 5ª República de Charles de Gaulle, dispõe a respeito do Conselho Constitucional em seu artigo 56, do Conselho de Estado no artigo 74 e da Corte de Cassação no artigo 68. Por sua vez, a Constituição brasileira de 5 de outubro de 1988 dispõe a respeito da competência do Supremo Tribunal Federal nos artigos 101, 102 e 103.

Neste sentido, seria possível realizar uma comparação entre a competência das Cortes Constitucionais (e Conselhos) na França e no Brasil? O esgotamento do tema não será possível no presente estudo, evidentemente, mas é possível delinear a resposta mediante a análise de alguns pontos relativos à teoria do controle de constitucionalidade, à dualidade da jurisdição francesa e ao controle de convencionalidade das leis.

2. Controle de constitucionalidade no sistema jurídico brasileiro
Preambularmente, no cenário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal foi criado pela Constituição imperial de 1824. O então denominado "Supremo Tribunal de Justiça" foi previsto no artigo 163 da Carta Constitucional e não possuía qualquer competência judiciária relacionada ao controle de constitucionalidade, considerando que tal questão cabia ao imperador.

Por sua vez, a Constituição promulgada em 24 de fevereiro de 1891 instituiu o controle de constitucionalidade das leis e regulou a composição e competência do já nominado "Supremo Tribunal Federal". Ademais, tendo como paradigma o modelo norte-americano, a Constituição de 1891 – na redação que lhe deu Rui Barbosa – adotou o modelo difuso de controle de constitucionalidade ("judicial review") em seus artigos 59 e 60, já concretizado nos Estados Unidos pelo precedente "Marbury x Madison" de 1803.

Os reflexos no controle de constitucionalidade foram patentes com a promulgação da Constituição de 1934 a partir da fixação da ação declaratória interventiva (artigo 12, § 2º), da cláusula de reserva de plenário (artigo 179) e da atribuição do Senado para a suspensão da execução de lei declarada inconstitucional (artigo 91, inciso IV). Por sua vez, na Constituição denominada "polaca", outorgada em novembro de 1937 (durante o período do Estado Novo), manteve-se o controle difuso, além da inovação de anulação da independência dos Poderes Legislativo e Judiciário.

Por sua vez, durante a vigência da Constituição de 1946, a EC 16/1965 restaurou o sistema do controle de constitucionalidade e criou a "representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual", de legitimidade exclusiva do procurador-geral da República. Em 1988, a Constituição cidadã ampliou os legitimados para a propositura de ADI, criou a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), além da posterior previsão da ação declaratória de constitucionalidade (ADC).

Neste contexto, é importante esclarecer que o Superior Tribunal de Justiça apenas foi criado na última Constituição brasileira, ou seja, na Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988. A nova Carta Magna democrática (no sentido de sinônimo de Constituição, promulgada ou outorgada) adotou o sistema norte americano de "Marbury x Madison" de 1803 ("principle of judicial review") e também o sistema austríaco de Hans Kelsen, acolhendo o ideal da hierarquia das normas, do controle difuso de constitucionalidade, bem assim do controle concentrado (abstrato) de normas.

Considerada a leitura contextual do momento constitucional emergente em 1988, período pós-ditatorial, a Carta Constitucional de 1988 visou englobar em seus 250 artigos diversos ideais democráticos, desenhando o Supremo Tribunal Federal como o guardião da Constituição Federal. Além disso, a Lei n˚ 9.868/1999 regulamentou o processo de julgamento da ação direta de inconstitucionalidade perante a Corte Suprema.

Pela jurisprudência desenvolvida pela Suprema Corte brasileira, a sua competência foi consideravelmente expandida mediante a edição de súmulas vinculantes (Emenda Constitucional 45/2004) semelhantes ao modelo norte-americano do stare decisis, junto às previsões do Código de Processo Civil de 2015 que estabeleceram a vinculação aos precedentes da corte, além de diversos instrumentos como a mutação constitucional (alteração do contexto sem a alteração do texto) e a interpretação conforme a Constituição.

A questão complexa que se coloca é a conglobante interpretação constitucional que seguiu os modelos italiano (medida provisória), francês (bloco de constitucionalidade), alemão (dignidade da pessoa humana como postulado constitucional) e norte-americano (a supremacia soft law da jurisdição sobre o sistema legislativo). O modelo brasileiro combinou institutos derivados da common law e da civil law, o que resultou na criação de uma Corte Constitucional (e recursal) com competências originais em comparação aos modelos francês e estadunidense, por exemplo.

No histórico constitucional francês, é necessário lembrar o período da République de Vichy – que vigeu na França entre 1940 e 1944, liderada pelo Marechal Pétain durante a ocupação alemã perante a 2˚ Guerra Mundial – que se seguiu pela importante Constituição de 1946 e após de 1958. Entretanto, o que caracteriza o modelo francês é justamente o compartilhamento de competências entre a Corte de Cassação e o Conselho de Estado.

3. A "summa divisio" e a dualidade de jurisdição no modelo francês
Em França, país que segue o modelo da dualidade da jurisdição desde a publicação da "Loi de 16-24 août 1790", existe um compartilhamento de competências entre a Corte de Cassação, o Conselho Constitucional e o Conselho de Estado.

Preliminarmente, a separação entre o direito público e o direito privado espelhou, desde a Revolução Francesa de 1789, a interdição de intervenção entre as competências do Parlamento e as competências dos Juízes, mas também a vedação da análise de matéria de direito público pela jurisdição comum.

No contexto francês, a jurisdição "judiciária" difere da jurisdição administrativa, o que reverbera nos 89 artigos da Constituição da V República. Enquanto a primeira abrange as matérias de direito civil, empresarial, penal e outras, a jurisdição administrativa abarca todas as relações concernentes ao direito público lato sensu, ou seja, não apenas contratos administrativos e responsabilidade do Estado, senão também a relação vertical entre os cidadãos e o Estado.

A Corte de Cassação atua como último grau recursal na jurisdição comum, logo após o pronunciamento da Corte de Apelação. Inclusive, na primeira vez que a Corte de Cassação se manifesta ela apenas "cassa e anula" as decisões da Corte de Apelação com o "renvoi" (reenvio) à Corte de Apelação para que esta proceda à um novo julgamento.

Contudo, não há obrigatoriedade de que a Corte de Apelação jugue conforme a decisão prolatada pela Corte de Cassação, podendo a matéria ser novamente encaminhada à Corte de Cassação de forma definitiva visando a análise pela assembleia plena.

4. Valor do voto dissidente no STF e no sistema interamericano de direitos humanos
Nas Cortes de Cassação e no Conselho de Estado as decisões são emitidas de forma unânime, sem a publicação de voto dissidente, o que tem sido considerado um retrocesso em matéria de "revirement", ou seja, de alteração jurisprudencial.

Ora, sem a possibilidade de publicação do voto dissidente se constata uma clara ausência de accountability, o que traz demasiados prejuízos ao caráter democrático da jurisdição no sentido de legitimação e de interpretação constitucional da corte e conselhos franceses.

Inclusive, é salutar mencionar que a questão do voto dissidente possui uma importância ímpar e é motivo de admiração por importantes doutrinadores franceses.

É por tal razão, v.g., que os votos dissidentes do professor Augusto Cançado Trindade sempre foram muito enaltecidos no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O poder do voto dissidente no sistema interamericano é considerado de extrema importância não apenas no sistema interno de jurisdição, mas também diante de eventuais "revirements" (alterações jurisprudenciais) que já reverberaram na Corte Europeia de Direitos Humanos.

5. Controle de convencionalidade no sistema jurídico francês
No que concerne ao controle de convencionalidade, o Conselho Constitucional francês já se manifestou no sentido de que não possui competência para realizá-lo (Décision n° 74-54 [2] DC du 15 janvier 1975 – Loi relative à l'interruption volontaire de la grossesse[3]). Coube, então, a tarefa de referido controle à Corte de Cassação em 1975 na jurisdição comum (L'arrêt Jacques Vabre [4], chambre mixte, 24/05/1975, 73-13.556) e ao Conselho de Estado em 1989 na jurisdição administrativa (Conseil d'État, Assemblée, 20 octobre 1989, Nicolo [5]).

Na França, o Conselho Constitucional possui apenas a competência para realizar o controle de constitucionalidade – o que engloba o bloc de constitutionnalité de Louis Favoreu: a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a Carta Ambiental de 2004, o preâmbulo da Constituição de 1946, além do texto da Constituição de 1958 — e não o possui para o controle de convencionalidade, o que é relegado à Corte de Cassação e ao Conselho de Estado.

No Brasil, o STF realiza o papel de Corte Constitucional, pois realiza o controle de constitucionalidade e também o controle de convencionalidade das leis, o que ocorreu concretamente no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP [6], oportunidade em que a Suprema Corte brasileira reconheceu a ilegalidade da prisão do depositário infiel.

No contexto francês, o grande receio desenhado pelo sistema constitucional desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, diz respeito à preservação da separação de poderes: "Toute société dans laquelle la garantie des droits n'est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n'a point de Constitution[7]".

Por sua vez, o Conselho de Estado atua como a "Corte Superior" no sistema da jurisdição administrativa, ou seja, é a última instância recursal, após o pronunciamento da Corte de Apelação. Inclusive, os precedentes emanados pelo Conselho de Estado possuem "força normativa legal", o que deve ser considerado na hierarquia das normas do bloco constitucional francês de Louis Favoreu [8].

O Conselho Constitucional francês não faz parte que da jurisdição comum ou da jurisdição administrativa, pois está “acima” de ambas, já que realiza o controle difuso de constitucionalidade por meio da célebre "question prioritaire de constitutionnalité" (QPC) questão prioritária de constitucionalidade), disposta no artigo 61-1 da Constituição da V República e acessível à qualquer "justiciable", a qual deve ser julgada em no máximo noventa dias.

A grande diferença do controle de constitucionalidade posterior que ocorre no sistema francês em comparação com o direito brasileiro é que, apesar da QPC poder ser alegada por qualquer pessoa "justiciable", no controle a posteriori apenas pode ser alegada de forma incidental, o que exclui a possibilidade de ações direta de constitucionalidade ou inconstitucionalidade no modelo francês, as quais são comuns no Brasil e contam com um preciso delineamento constitucional.

Na prática do direito comparado, após a análise da competência das duas "Cortes" e um Conselho franceses Corte de Cassação, Conselho de Estado e Conselho Constitucional constata-se que no Brasil o STF possui a árdua missão de concentrar a última instância do sistema recursal comum (Corte de Cassação), a última instância do sistema recursal de direito público (Conselho de Estado), além do controle de constitucionalidade difuso (Conselho Constitucional), o que é objeto de repartição entre três órgãos na França.

No âmbito recursal, no controle de constitucionalidade ou na sua atribuição de "Conselho de Estado" (atuação preventiva do controle de constitucionalidade, estado de defesa, estado de sítio, entre outros), a Suprema Corte brasileira concentra as atribuições partilhadas entre os dois conselhos (Constitucional e de Cassação) e uma corte (Cassação) na Constituição francesa de 1958.

6. Conclusão
Portanto, após essa breve análise concernente às competências das cortes brasileiras e francesas, ratifica-se a relevante envergadura do Supremo Tribunal Federal, que atuou e atua, não apenas como guardião da Constituição de 1988, mas também da democracia, o que se afere, à luz das lentes do direito comparado, com uma jurisdição integral que abrange as competências dos conselhos e da corte superior na França.

 


[2] Conteúdo disponível em: <https://www.conseil-constitutionnel.fr/decision/1975/7454DC.htm>. Acesso em 16.01.2023.

[3] Lei de interrupção voluntária da gravidez.

[4] Conteúdo disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/juri/id/JURITEXT000006994625/>. Acesso em 16.01.2023.

[6] Conteúdo disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>. Acesso em 16.01.2023.

[7] "Qualquer sociedade em que a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação de poderes determinada, não tem Constituição".

[8] La genèse du bloc de constitutionnalité. Conteúdo disponível em: <https://www.conseil-constitutionnel.fr/publications/titre-vii/la-genese-du-bloc-de-constitutionnalite>. Acesso em 28.12.2022.

Autores

  • é professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e advogado em São Paulo, Mato Grosso e Distrito Federal.

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