Opinião

Lei de igualdade salarial não inova mas descortina "causa raiz" do problema

Autor

  • Mariana Covre

    é advogada especialista em Compliance Estratégico e Ambientes Regulados com dedicação a pautas de conformidade em ESG Diversidade e Inclusão professora no IBMEC/DF autora em Compliance de Gênero e coordenadora do Comitê ESG na Rede Governança Brasil.

    View all posts

29 de julho de 2023, 6h38

As mulheres constituem mais de 44% da força de trabalho brasileira, segundo dados do IBGE. Diante de tamanha representatividade já era hora de se reforçar a igualdade salarial no país. A lei sancionada este mês reafirma o amplo direito à igualdade posto desde 1988 na Constituição (artigo 5º) e remete à previsão legal de 1943, já prevista na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), trazendo novamente para os holofotes a necessidade de cumprimento da equidade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens.

Sob o ponto de vista garantista de direitos humanos, não há novidade a se comemorar com o advento de lei que reaviva a previsão do artigo 461, da CLT, quando tratava de igualdade salarial entre pessoas independentemente de sexo, etnia, nacionalidade ou idade, com previsão, inclusive, de punição para os casos de discriminação por parte das empresas empregadoras. O que a nova lei traz de mais robustez ao tema, além do reforço à CLT, são incrementos para fazer valer a previsão que já existia.  

Por condições de igualdade salarial e critérios remuneratórios entendem-se mulheres e homens que, prestando serviços  ao mesmo empregador ou no mesmo estabelecimento empresarial, cumprem os seguintes quesitos: estejam no exercício da mesma função ou realizem trabalho de igual valor, que envolve igual produtividade e mesma perfeição técnica (entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço para o mesmo empregador não seja superior a quatro anos e a diferença de tempo na função não seja superior a dois anos).

Como garantir o cumprimento de previsão legal de igualdade salarial entre mulheres e homens no mercado de trabalho?

Afinal, mesmo existindo comando legal há pelo menos 80 anos, as estatísticas ainda prenunciam que levaremos quase 300 anos para alcançar a igualdade plena de condições entre pessoas que se diferenciam apenas por gênero, mas não por direitos.

A tão esperada lei de "igualdade salarial" surpreende de forma complementar especialmente no ponto em que coloca o texto normativo como um refletor que escancara as condições sociais, estruturais e até culturais entranhadas por detrás do problema da desigualdade e da discriminação salarial. Descortina as "causas-raízes" do problema.

Eis o primeiro passo, o legislador desinvisibiliza e assume a realidade do problema da disparidade de gênero no mercado de trabalho, implicando o poder público, além de entregar às empresas formas de efetivarem e comprovarem o avanço da igualdade que precisa aparecer de forma real.

Finalmente entendeu-se que a questão da diferença salarial não se trata apenas de uma assimetria numérica no contracheque, mas sim de como estão postas as condições para exercer em pé de igualdade, por mulheres e homens, as atividades profissionais no mercado de trabalho.

As barreiras inerentes às condições das mulheres no exercício de suas atividades profissionais no mercado de trabalho precisam ser enfrentadas e mitigadas, a começar pela letra da lei. Estatística e historicamente ainda lideram, por exemplo, relevantes dados de violência em todo seu entorno, doméstica e familiar, no ambiente de trabalho, política e de formas diversas nos espaços, públicos e privados.

Também é importante considerar que as mulheres ainda desempenham a maior quantidade de tarefas domésticas e dominam o exercício da parentalidade, que se apresentam como domínio da maior parte do tempo e sobrecarga que não podem ser invisibilizadas pois são impositivas e até decisivas para elas ingressarem, permanecerem e ascenderem no mercado de trabalho.

Considerando esse cenário real da vida das mulheres, a lei previu mecanismos de monitoramento, por meio de indicadores, de um mercado de trabalho mais "igualitário", com obrigação legal para o próprio poder público que passa a ser implicado na questão e, então, com a chance de desenvolver ou impulsionar finalmente uma efetiva política pública. A legislação traz a previsão de criação e manutenção de um painel eletrônico do Governo, com acesso público, para coletar, manter atualizado e monitorar a igualdade no mercado de trabalho e renda desagregada por sexo.

A ferramenta servirá como subsídio para a elaboração de políticas públicas de fomento e inafastabilidade da igualdade salarial, olhando para os momentos de inserção, permanência e ascensão das mulheres no mercado de trabalho. Serão aferidos os seguintes indicadores de manutenção da igualdade salarial: violência contra a mulher; vagas em creches públicas; acesso à formação técnica e superior pelas mulheres; acesso a serviços de saúde pelas mulheres; demais dados públicos que impactem no acesso ao emprego e renda pelas mulheres.

A lei, ainda, estimula o fomento à capacitação e formação de mulheres em maior igualdade de condições com os homens; reforça a necessidade dos programas de diversidade dentro das empresas empregadoras como ferramenta de priorização e promoção da equidade; defende ampliar informação, capacitação, treinamento de gestores, lideranças e empregados/empregadas a respeito das temáticas de equidade de gênero no mercado de trabalho; estimula as denúncias de discriminação, intensificando o papel dos canais de registros contendo vias específicas para receber e tratar casos de discriminação salarial.

Como medida repressiva a forçar o cumprimento do propósito da equidade salarial de gênero, há na lei também incremento de punição contra o problema da discriminação salarial, agora pelo descumprimento da transparência, já que se apresenta como mecanismo indispensável à aferição do cumprimento da igualdade salarial. Seu descumprimento poderá gerar multa de até 3% da folha de salários do empregador, limitada a 100 salários mínimos, sem prejuízo das sanções aplicáveis aos casos de discriminação salarial, já previstas pela CLT, além de indenizações por danos morais às vítimas.

O monitoramento e fiscalização se darão a partir da checagem das publicações de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios com periodicidade semestral, obrigação que deve ser observada por empresas de médio a grande porte (acima de 100 funcionários), preservada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Os dados devem ser aqueles suficientes para permitir a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens. As informações devem, ainda, fornecer dados estatísticos sobre outras possíveis desigualdades decorrentes de raça, etnia, nacionalidade e idade.

Todo esse cenário posto pela lei é robustecido por estímulo a planos de ação para estruturar medidas de prevenção e mitigação da desigualdade, com metas, prazos e participação de entidades sindicais com representação dos empregados e empregadas.

A lei não traz impactos aos planos de cargos e salários descritivos e já postos nas empresas, portanto, as suas previsões objetivas de promoções poderão ser feitas por merecimento e por antiguidade, ou por apenas um destes critérios, dentro de cada categoria profissional. Mas, mesmo dentro desses planos, há estímulo da nova lei para ascensão de mais mulheres, como por meio de planos de informação e capacitação.

Toda essa engrenagem posta pela nova lei de igualdade salarial apresenta-se como um "campo fértil" a ser aproveitado para se modificar padrões socioculturais de modo a superar costumes que estejam baseados na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos.

Apesar de se imprimir neste momento reforço à obrigação legal e repressão como mecanismos necessários para impor mudança não encontrada pela sociedade, há aqui uma verdadeira oportunidade de acelerarmos o alcance da igualdade de direitos efetiva entre mulheres e homens, no recorte do cenário no mercado de trabalho, apta a inspirar proatividade e ações afirmativas voluntárias nos processos, ações, programas e tomadas de decisões de organizações de todo porte, independentemente de se tratar de cumprimento a comando legal.

Autores

  • é advogada especialista em Compliance Estratégico e Ambientes Regulados com dedicação a pautas de conformidade em ESG, Diversidade e Inclusão, professora no IBMEC/DF, autora em Compliance de Gênero e coordenadora do Comitê ESG, na Rede Governança Brasil.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!