Opinião

Novas tecnologias e violações aos direitos à intimidade e privacidade

Autor

  • Rodrigo Spessatto

    é mestrando em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc) especialista em Direito Público pela Universidade Potiguar (UNP) e procurador da Foz Previdência (Fozprev).

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27 de julho de 2023, 6h12

Edward Snowden, analista de segurança de uma empresa terceirizada da NSA (National Security Agency), publicizou a existência de diversos sistemas de monitoramento telemático utilizados pelo governo dos Estados Unidos, objetivando não apenas interceptar, mas também armazenar e catalogar praticamente todo o tráfego mundial da internet, além de todos os dados armazenados em servidores das gigantes empresas de tecnologia da informação.

Na mesma época, Snowden também revelou que o governo brasileiro e algumas empresas estatais igualmente estariam sendo monitorados, de modo que surge um questionamento acerca da real eficácia da Lei do Marco Civil da Internet, uma vez que não há dúvida de que o sistema utilizado pelos Estados Unidos não apenas perpassa qualquer fronteira da transnacionalidade, como também não difere a esfera pública da privada.

Conforme relata Jose Luis Bolzan de Morais, objetivando dar uma "resposta a esses eventos, o Senado liberou o relatório final da 'CPI da espionagem'", sendo que o "próprio nome da CPI expressa a posição adotada em relação às informações divulgadas por Edward Snowden", contudo, a despeito dos "eventuais avanços — toda pesquisa sobre o uso da Sigint (Signals Intelligence) parece ser válida, especialmente, se considerarmos que pouco se fala sobre o assunto", a conclusão adotada no "relatório da CPI é extremamente míope em relação à compreensão do fenômeno que quer discutir e às soluções elencadas para os problemas". (MORAIS, 2018)

Sabe-se, outrossim, que o interesse em monitorar os dados dos indivíduos não se limita apenas aos governos, abrangendo também e principalmente as grandes empresas, notadamente para direcionar e estimular o consumo de seus produtos. Percebe-se, assim, que há uma incessante tentativa de manipulação do mercado de consumo, sendo hoje a internet o maior instrumento de propagação de anúncios publicitários, que se tornam visíveis com um mero acesso a qualquer website, comumente conduzidos pelo prévio controle do fluxo de dados.

Destarte, resta indubitável que as definições clássicas conferidas à privacidade e intimidade já não são mais as mesmas, razão pela qual a Lei do Marco Civil da Internet possivelmente já nasceu defasada, considerando a rotineira e até então incontrolável violação ao fluxo de dados e às comunicações privadas.

A reiterada violação e interceptação, de amplitude imensurável, ao fluxo de dados e das comunicações dos sistemas telemáticos e, ressalta-se, sem a devida ordem judicial, acaba por acarretar uma perigosa situação de vulnerabilidade social, frente aos detentores do acesso e conhecimento da tecnologia de informação, uma vez que poderão, para fins lícitos ou não, submeter qualquer indivíduo a uma constante vigilância e monitoramento.

Cabe asseverar que a referida vigilância poderá resultar em uma simples e inocente observação do comportamento de outrem, até uma prejudicial análise e manipulação da conduta alheia, sem que o alvo sequer imagine que esteja sendo monitorado, a fim de lhe causar um dano imediato ou obter alguma vantagem indevida e, quiçá, realizar uma sistemática coleta e processamento do fluxo de informação objetivando classificar ou categorizar pessoas.

Hodiernamente ninguém está imune ao monitoramento por intermédio dos sistemas informatizados, tendo em vista que todos, sem exceção, cedo ou tarde, de alguma forma precisarão acessar a internet, de modo que atualmente, para sobreviver no mundo moderno, não há mais como viver isoladamente ou alheio a tecnologia.

Dessa forma, a constante vigilância, seja por entes estatais, seja por grandes empresas, resultará uma nova maneira de se viver em sociedade, não se podendo mais fugir de tal realidade, cuja convivência demandará adaptação e paciência e, precipuamente, a busca de métodos de proteção individual, a fim de ao menos amenizar os ataques à intimidade e privacidade, uma vez que dificilmente será possível eliminá-los por completo.

A sociedade como um todo, determinados países, regiões, classes e indivíduos, estão sendo hoje objeto de categorização como forma de controle e monitoramento das pessoas, sendo que os resultados obtidos são utilizados para as mais diversas finalidades, a exemplo de estímulo ao consumo, espionagem industrial ou entre países, fiscalização de filhos e de empregados.

Não há limites às consequências decorrentes da vigilância tecnológica, podendo ser citado um exemplo extraído da ficção que, conquanto pareça uma realidade distante, atualmente se torna cada vez mais factível, da hipótese de se antecipar ações a fim de evitar a prática de delitos, unicamente observando o comportamento de um indivíduo pela interceptação de seu fluxo de dados.

Constata-se, assim, que a categorização das pessoas não se resume ao simples mercado de consumo ante o monitoramento das grandes empresas, mas também pelo controle de dados abrangendo as mais variadas finalidades, como a investigação de pessoas que potencialmente possam se dedicar a prática de crimes e, com a prévia vigilância estatal, são impedidas de concretizar as suas ações delituosas.

O que antes era faticamente inconcebível e fisicamente distante, porquanto se limitava à esfera da ficção, atualmente se confunde com a realidade, sendo que as pessoas precisarão se adaptar ao novo conceito dado aos direitos fundamentais à privacidade e intimidade, cuja violação se revela permanente e inevitável ante as novas tecnologias surgidas, de modo que sua tutela se torna cada vez mais difícil, tendo em vista que a legislação não consegue adequadamente acompanhar os avanços da ciência.

Considerando a reiterada violação ao fluxo de dados e, consequentemente, a constante vigilância ou monitoramento que estão hoje as pessoas sendo submetidas, surge uma expressão que retrata o atual contexto social-tecnológico vivido, denominada de surveillance.

Morais explica que uma "nova categoria entra em cena, a surveillance, a qual levanta barreiras virtuais, capazes, assim, de garantir ou impedir o acesso aos elementos indispensáveis para uma vida digna", bem como "permitir novas formas de gestão e controle de pessoas, empresas, governos, etc.", de modo que "não se submetem aos tradicionais controles e limites democrático-territoriais, sendo geridos, tratados e utilizados a partir da ideia de segredo: seja de Estado, seja comercial”, tendo em vista que “tais informações e as análises que delas derivam são consideradas propriedade da empresa que as obtêm e oferece o serviço" (MORAIS, 87).

O referido termo está intimamente ligado à palavra vigilância, contudo, dentro de um novo contexto que a difere de seu significado tradicional, porquanto o uso de novas ferramentas tecnológicas altera a surveillance, considerando que as tecnologias atuais não mais necessitam da proximidade física e, muito menos, que os indivíduos sejam suspeitos de alguma prática delituosa, para que sejam alvo de um constante monitoramento.

A definição tradicional de vigilância está envolta de elementos físicos, a exemplo de perseguições e fotografias do indivíduo objeto de investigação. No entanto, o novo conceito de surveillance é caracterizado pela utilização de meios tecnológicos capazes de extrair informações pessoais, ainda que o alvo esteja fisicamente distante, por meio do acesso a bancos de dados indexáveis no processamento de informações.

Destarte, a surveillance que, como visto, vai muito além de uma mera vigilância, é atualmente resultado do salto tecnológico vivenciado nas últimas décadas pela humanidade, que depende intrinsecamente do uso dos bancos de dados pessoais como forma de controle social. Trata-se, resumidamente, de uma versão eletrônica da vigilância.

Constata-se, portanto, que há uma diferença entre a vigilância em sua conotação tradicional, definida como espionagem, controle e investigação sigilosa de atividades individuais, da surveillance conceituada como técnica facilitada pela tecnologia da informação, que tem por escopo a sistemática coleta, armazenamento, processamento, individualização e classificação das informações sobre as pessoas em determinados grupos.

Não há dúvida de que a surveillance possui uma extensão conceitual maior do simplesmente perseguir, vigiar ou interceptar as ligações telefônicas. Noutros termos, trata-se de um método organizado que tem como resultado categorizar ou catalogar pessoas, para que sejam diferentemente tratadas e abordadas, em especial pelos instrumentos de consumo.

Segundo Bennet, a surveillance seria "uma prática organizacional que possui como resultado a categorização de pessoas em grupos diferentes, com o intuito de tratá-los diferentemente", que é utilizada desde a "Receita Federal brasileira até o Google, passando pela NSA, Amazon, entre outras", sendo que a "classificação de pessoas em categorias é uma das características essenciais".

Vale ressaltar que a surveillance apresenta-se de difícil controle, tendo em vista as características peculiares do fluxo de dados por sistemas de computadores, motivo pelo qual o desenvolvimento tecnológico proporciona o aparecimento de novos instrumentos de violação a direitos fundamentais.

Desse modo, a tutela dos direitos fundamentais como era antes vista em sua percepção clássica, hodiernamente já não é mais capaz de enfrentar de maneira equânime os instrumentos erigidos pelas novas tecnologias, que sequer podem ser objeto de fiscalização e controle, considerando o dinamismo da ciência e a universalidade do fluxo de dados, que transcende as fronteiras territorial e temporal.

O avanço tecnológico resulta no contínuo surgimento de novos instrumentos de violação a direitos fundamentais, primeiramente, objetivando a identificação, rastreamento, monitoramento e análise de informações relativas aos detalhes da vida íntima e da identidade das pessoas, bem como mediante a coleta, armazenamento, processamento, individualização e classificação das pessoas em determinados grupos.

Ademais, a coleta, o armazenamento e o processamento automatizado de diversas informações sobre os indivíduos, além de perpassar a territorialidade, igualmente transcende a linha temporal, tendo em vista que a tecnologia atual possibilita o armazenamento quase que ilimitado de informações, inclusive, as relacionadas ao passado, além do uso de ferramentas de análise estatística e de predições de risco relacionadas ao futuro.

Desde os tempos remotos, a civilização sempre soube que a obtenção de informações está intrinsecamente associada a poder, sendo que, em tempos de beligerância, não há dúvida de que o acesso a dados por determinado grupo, poderá abreviar uma guerra e facilitar a vitória. À vista disso, sabe-se que, há muito tempo, organizações governamentais e não governamentais despendem enormes recursos para conseguir informações sigilosas, seja para espionar estados estrangeiros, adversários políticas ou controlar a própria população.

Citando novamente Morais, faz-se mister relatar o clássico exemplo erigido por Jeremy Bentham, jurista e filósofo que viveu no Reino Unido durante o século XVIII, que "propôs uma penitenciária panóptica como estrutura capaz de resolver diversas mazelas sociais", sendo que "esse presídio possuía uma arquitetura distinta, cujo objetivo era maximizar a visibilidade que se tinha dos detentos", de modo que "estes ficariam isolados em celas individuais, retroiluminadas e dispostas ao redor de uma torre de observação", vigiados por guardas que "gozariam de uma visibilidade unidirecional: embora pudessem ver os detentos, estes não poderiam vê-los" (MORAIS, 2018).

Ressalta-se que o referido modelo panóptico, cuja teoria foi criada ainda no século 18, muito se assemelha ao atual surveillance, expressão que foi erigida dois séculos depois dentro de um contexto tecnológico de violação a fluxo de dados, uma vez que em ambos os modelos os vigiados têm a plena consciência de que a qualquer momento podem estar sendo observados, sendo que a incerteza gerada submete o indivíduo a uma contínua reflexão sobre as suas próprias atitudes e as consequências delas advindas.

Dessa forma, o que também se pretende com a surveillance é a previsão de comportamentos futuros, seja por parte do poder público, objetivando antever as práticas delituosas, seja pela iniciativa privada, notadamente as grandes empresas, com o escopo de alcançar uma maior amplitude na divulgação de anúncios ao mercado de consumo.

Vale ressaltar que o ser humano é um animal de hábitos, de modo que, com a permanente coleta de informações durante certo período de tempo, revela-se possível padronizar comportamentos, estabelecer determinados perfis, observar os espaços físicos frequentados e a sua interação com a sociedade. Assim, não apenas as comunicações privadas dos indivíduos, como também os seus "alter egos virtuais" circulam pelas redes de computadores, cujos dados podem ser coletados, armazenados e manipulados, para fins lícitos ou não.

Resta indubitável, conforme alhures mencionado, que a privacidade e a intimidade, direitos fundamentais inerentes à vida digna de qualquer ser humano, já não mais podem ser entendidos em sua versão clássica, tendo em vista a sua reiterada e progressiva violação, cujo controle, fiscalização e tutela se tornam cada vez mais difíceis, considerando a transcendência física e temporal de sua agressão.

Soluções das mais variadas são propostas, como aumentar a produção legislativa, criar emendas constitucionais e resolver possíveis violações por intermédio do Poder Judiciário, contudo, é possível já reconhecer a ineficiência dos mecanismos de tutela e fiscalização, porquanto incapazes de controlar a liquidez do fluxo de dados e, consequentemente, proteger de forma adequada os direitos fundamentais.

Consoante demonstrado pela história recente, os direitos fundamentais são inexoravelmente essenciais à manutenção da sociedade moderna. Não obstante, a complexidade das relações sociais e a constante transformação a que está sujeita o ser humano, acabam por resultar em evidentes riscos à sua sobrevivência, notadamente o aumento desordenado da população mundial, o uso indevido da tecnologia, dentre outros fatores que diretamente decorrem, inclusive, da globalização econômica.

Malgrado a ciência e a inovação tecnológica resultarem em evidente melhoria na qualidade de vida dos indivíduos, paradoxalmente, também representam um grande risco à humanidade, principalmente diante da facilidade erigida para violar direitos fundamentais historicamente conquistados.

Alerta André Rafael Weyermüller que "a humanidade, ao minimizar a discussão sobre o desenvolvimento econômico baseado na tecnologia e na exploração exacerbada dos recursos naturais”, acabou criando “uma nova realidade em que a dependência da própria tecnologia representa um risco futuro, na medida em que não se pode precisar até que ponto ela irá compensar os passivos criados para o seu desenvolvimento ligado ao risco futuro" (WEYERMÜLLER, 2018).

Revela-se notório que a humanidade ainda não sabe lidar com as consequências advindas da evolução tecnológica, de modo que os riscos dela decorrentes acarretam ao ser humano incertezas acerca do futuro, cujo controle não mais está nas mãos da racionalidade, mas sim de um caminho que ainda não foi traçado e que poderá levar a qualquer direção.

Visualiza-se, assim, um paradoxo entre o bem e o mal, que está intimamente ligado à ideia de desenvolvimento tecnológico. Em outras palavras, a humanidade está sujeita a riscos, da mesma forma que aproveita dos benefícios decorrentes do avanço da ciência. A referida ambivalência decorre da ânsia em se alcançar resultados que podem acarretar benefícios à humanidade e que também podem, em contrapartida, provocar consequências maléficas incalculáveis aos seres humanos.

Destarte, pode-se dizer que a humanidade está simultaneamente em desenvolvimento e em regressão, em evolução e em crise, em progresso e em perigo. A sociedade hoje vivencia uma realidade pautada por extremos e incontáveis possibilidades, sobre as quais não se tem o mínimo controle, seja para o bem, seja para o mal.

Cabe asseverar que a cega confiança nas novas tecnologias tem ocasionado uma falsa sensação de segurança, proporcionando também um sentimento de resignação a impedir que as pessoas questionem uma possível destruição de suas vidas, seja pela violação a direitos fundamentais, a exemplo da privacidade e intimidade, seja no que concerne ao meio ambiente, nas suas mais variadas formas.

Os efeitos deletérios que poderão advir dos avanços tecnológicos e, consequentemente, os riscos decorrentes da ciência, não podem ser olvidados ante a vulnerabilidade acarretada ao ser humano, colocando em perigo toda a sociedade.

Para Weyermüller, considerando os "efeitos das novas tecnologias e de extensas expectativas em relação ao futuro, torna-se necessária uma atitude antecipadora aos riscos por meio de práticas e políticas dos Estados nacionais", a exemplo de "leis e mecanismos de controle", além da atuação de entidades "supranacionais e privadas que possam produzir ações preventivas em face dos danos, talvez irreversíveis, que a humanidade pode gerar", entretanto, a "proteção desse direito enfrenta dificuldades impostas por uma complicada equação composta por elementos diversos, como a Economia, o Direito, o desenvolvimento tecnológico, o ser humano e o meio ambiente" (WEYERMÜLLER, 2018).

Por conseguinte, deve a humanidade se antecipar aos riscos, por intermédio de políticas públicas eficazes, a fim de evitar as consequências maléficas decorrentes da tecnológica e que são erigidas juntamente com os pretensos benefícios.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENNET, C. Transparent lives: surveillance in Canada. Edmonton: AU Press, 2014, p. 6.

MORAIS, Jose Luis Bolzan de. O que é isto, a surveillance?: direito e fluxos de dados globais no século XXI. O impacto das Novas Tecnologias nos Direitos Fundamentais. Joaçaba: Editora Unoesc. 2018, p. 86 – 87.

WEYERMÜLLER, André Rafael. O paradoxo da tecnologia e a incerteza científica. O impacto das Novas Tecnologias nos Direitos Fundamentais. Joaçaba: Editora Unoesc. 2018, p. 107 – 108.

Autores

  • é mestrando em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), especialista em Direito Público pela Universidade Potiguar (UNP) e procurador da Foz Previdência (Fozprev).

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