Opinião

Diálogo competitivo da Lei 14.133/21: 4 providências de estruturação e governança

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26 de julho de 2023, 13h22

Visão geral: conceito, funções e aplicação do diálogo competitivo
O diálogo competitivo é uma das inovações mais significativas trazidas pela Lei 14.133/21. Não apenas por ser modalidade de licitação inédita, mas também por transcender o modelo autômato e estritamente vinculado de atuação administrativa após a publicação do edital, onipresente na Lei 8.666/93.

O artigo 6º, inciso XLII, da Lei 14.133/21 conceitua o diálogo competitivo como "modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos".

Como o conceito legal permite antever, o procedimento é trifásico. É iniciado com 1) fase de pré-seleção, no âmbito da qual serão selecionados os licitantes a participar das fases subsequentes; avança para o 2) diálogo propriamente dito, no âmbito do qual os pré-selecionados apresentarão subsídios e soluções para atendimento das necessidades e persecução dos objetivos pretendidos pelo ente público, de modo a permitir a definição do projeto contratual definitivo; e chega à 3) fase competitiva, quando o contrato, já configurado em termos definitivos, conforme um novo edital publicado no curso do próprio certame, será objeto de disputa propriamente dita entre os licitantes.

Assim, o diálogo distingue-se das demais modalidades de licitação por conter fase específica dedicada à discussão, ao desenvolvimento e à definição de soluções técnicas, econômicas e jurídicas junto aos interessados em contratar. Como se infere do artigo 32, inciso I, alíneas a a c, da Lei 14.133/21 [1], ele é vocacionado a atender demandas complexas, cuja concepção envolve a tomada de decisões em ambientes de incerteza acentuada e com grau mais elevado de riscos. A experiência internacional revela que o seu emprego ocorre em especial para projetos de infraestrutura e de tecnologia da informação [2].

As principais funções do diálogo competitivo são as de 1) reduzir a assimetria de informações entre o ente público e o mercado, notadamente em relação a elementos que envolvem inovação [3]; 2) criar ambiente de flexibilidade processual e material para ajustar a concepção da contratação, conforme as informações que venham a ser obtidas [4]; e 3) propiciar transparência das interações público-privadas [5]. A transparência se dará com a formalização das tratativas e a adequada motivação das opções adotadas, que deverão ser sempre consideradas e justificadas em vista das demais alternativas disponíveis.

Um ponto preliminar e da maior relevância para o uso do diálogo competitivo diz respeito às providências e requisitos de governança a serem observados pela Administração Pública para implementá-lo. Este artigo examina as principais providências a serem observadas pela Administração, retomando algumas das ideias desenvolvidas de forma mais ampla em estudo específico dedicado ao diálogo competitivo [6].

Primeira providência: compreensão do problema e do seu contexto
Para definir o que e como licitar e verificar a viabilidade de recorrer ao diálogo competitivo, o ente público contratante deve identificar pelo menos quatro fatores: 1) as necessidades a serem atendidas; 2) os objetivos a serem realizados; 3) condições do mercado e das soluções existentes; e 4) as dúvidas e dificuldades objetivas que afetam o planejamento exclusivamente interno e recomendam o diálogo na licitação. Esses requisitos decorrem da leitura conjugada de regras do art. 32 da Lei 14.133/21 (inciso I e II, e §1º, inciso I).

O recurso ao diálogo pressupõe a identificação de certa impossibilidade de promover o planejamento contratual internamente. Essa impossibilidade, referida no artigo 32, inciso I, alíneas b e c, da Lei 14.133/21, tem caráter objetivo, porém não absoluto. Isso significa que a impossibilidade não decorre de insuficiência ou inaptidão técnica da equipe do ente público contratante. Fosse assim, os entes menos capacitados seriam os primeiros a recorrer àquela que é a modalidade licitatória mais complexa da Lei 14.133/21. É necessário demonstrar incertezas e/ou riscos objetivos determinantes, que indicam ser uma cautela adequada — e até dever de boa gestão — interagir com o mercado de forma mais aprofundada e estruturada, para o fim de definir a solução contratual mais adequada.

Isso não significa ignorar a situação própria do ente público contratante, cuja consideração é determinada pelo artigo 22 da Lindb. Significa que a impossibilidade restará verificada quando o ente público demonstrar que 1) adotou os melhores esforços e diligências para planejar a solução contratual; 2) há incertezas objetivas — não em razão de suas eventuais carências técnicas, mas primordialmente decorrentes das condições de mercado e das soluções disponíveis —, para entendimento da melhor concepção contratual; e 3) há ou impossibilidade absoluta, ou custos e riscos proibitivos para formação de conhecimento e convicção por conta própria acerca da melhor solução, o que justifica o recurso à interação com o mercado estruturada via diálogo competitivo.

Segunda providência: demonstração do cabimento e da vantajosidade
Quando o artigo 18, §1º, inciso V, da Lei 14.133/21 indica que o planejamento da contratação deve abranger a "análise das alternativas possíveis, e justificativa técnica e econômica da escolha do tipo de solução a contratar", pode-se estender esse comando à decisão acerca da própria forma de contratar — isto é, à escolha do procedimento adequado para promover a estruturação e a celebração do contrato.

A experiência de outros países revela que o processamento do diálogo competitivo apresenta complexidade peculiar e pode demandar gastos mais amplos em comparação a outras modalidades licitatórias. Essa constatação é relativa [7] e a Administração Pública deve examinar em concreto o custo-benefício do processo de diálogo, tendo em vista as opções existentes. A alternativa mais evidente ao diálogo é a modalidade de concorrência, precedida ou não pelo desenvolvimento de um procedimento de manifestação de interesse ou pela contratação de consultoria para a estruturação do projeto.

A justificativa passa ainda por definir a extensão dos aspectos a serem objeto do diálogo. Tal delimitação constitui exigência para racionalizar o processo licitatório e reduzir o seu custo e complexidade para todos os envolvidos. Quanto mais amplos forem os fatores sujeitos ao diálogo, tanto mais complexo, custoso e demorado o processo licitatório tende a ser. A extensão do diálogo pressupõe a definição e a justificativa de quando a flexibilidade na composição da solução contratual será possível, necessária e conveniente.

Terceira providência: o diálogo competitivo não é via de outsourcing de planejamento e deve ser arquitetado de forma adequada
Em vista dos elementos referidos acima, há um dever do ente público de desenvolver arquitetura ideal do diálogo, o que ocorrerá caso a caso, de acordo com as circunstâncias e complexidades a serem enfrentadas.

Isso evidencia o grande traço de distinção do diálogo competitivo em relação às outras modalidades: a sua estrutura procedimental será aperfeiçoada em concreto. Não uma vinculação ex ante plena à lei ou ao edital, pois o diálogo poderá ser modulado conforme evolua, tendo em vista o seu conteúdo e o potencial extraído das interações com cada um dos licitantes.

Outra conclusão que se extrai é que o diálogo competitivo não é mecanismo de outsourcing de planejamento. O diálogo não é via de renúncia à tarefa de planejamento, nem de compartilhamento dessa tarefa com o mercado, pois a palavra final sobre a solução a ser contratada sempre será do ente público. O projeto contratual será por ele definido por ocasião do lançamento do segundo edital do diálogo competitivo (artigo 32, §1º, inciso VIII, da Lei 14.133/21).

O que ocorre, portanto, é a mudança da estratégia de planejamento, que passa a contar com as contribuições do mercado internalizadas e formalizadas no processo licitatório. O planejamento pode ser visto a partir de duas etapas.

Em uma primeira etapa, prévia à instauração do diálogo competitivo, o planejamento envolve a definição 1) das necessidades e exigências já definidas pelo ente público contratante (artigo 32, §1º, inciso I); e, em função dessas necessidades e exigências, 2) dos requisitos de pré-seleção (artigo 32, §1º, inciso II); 3) das matérias sujeitas a diálogo; e 4) das regras procedimentais (artigo 32, §1º, inciso VII). Esse conjunto de disposições deve ser suficiente para propiciar objetividade e racionalidade ao processo, assim como clareza suficiente ao mercado sobre a oportunidade de negócio que a licitação propiciará.  

A segunda etapa de planejamento diz respeito à composição da solução contratual definitiva. Ela ocorrerá no curso da fase procedimental do diálogo competitivo e a partir dele. Como regra, incidem as normas gerais de planejamento do artigo 18 da Lei 14.133/21 —  e, no caso de concessões em geral e PPPs, as regras dos arts. 18 e 11 das Leis 8.987/95 e na Lei 11.079/04, respectivamente. O planejamento contratual definitivo será a condição para a apresentação de propostas pelos licitantes na fase competitiva.

Quarta providência: capacitação para estruturar e gerir o processo licitatório – o saber-fazer diálogo
Não é excessivo dizer que a capacidade administrativa é não só um fator de relevo, mas verdadeiro pressuposto para adoção do diálogo, ainda que não esteja assim explicitada na Lei 14.133/21. A complexidade do processo envolve particular necessidade de provisionamento de recursos (dinheiro, tempo e pessoal) a serem investidos no certame e capacitação administrativa apropriada, que pode ser vista a partir de dois ângulos.

O primeiro ângulo diz respeito à capacidade de planejamento, isto é: à capacidade para definir o diálogo e para estruturação final do projeto, conforme referido no tópico anterior.

O segundo ângulo diz respeito à capacidade de gestão processual [8]. Trata-se especialmente da aptidão de saber-fazer o diálogo, o que envolve habilidades e experiência para: 1) coordenar o diálogo, extraindo e fornecendo informações aos licitantes, observando o tratamento adequado a dados sigilosos compartilhados pelos licitantes (artigo 32, § 4º, inciso IV, da Lei 14.133/21); 2) balancear a extensão do diálogo e determinar a maturidade das interações, isto é, o momento a partir do qual o diálogo será concluído; 3) processar as informações para definir a solução mais vantajosa, evitando o risco de captura.

Em outras palavras, trata-se da capacidade de "sintetizar tecnologia" — isto é, sintetizar um bom projeto contratual — por meio de um "benchmarking dinâmico" [9] das contribuições apresentadas.

O saber-fazer o diálogo pressupõe ainda o correto entendimento acerca da observância da isonomia. A igualdade no diálogo não é um dado mecânico e não impede o desenvolvimento diferenciado das tratativas com os licitantes. É possível e esperado que haja afunilamento das discussões, conforme a evolução das convicções do ente público, e a interrupção de diálogos que não se mostrem frutíferos, conforme o artigo 32, §1º, inciso VII, da Lei 14.133/21. Isonomia e eficiência são fatores não excludentes. O controle sobre a observância desses elementos ocorrerá de acordo com a adequada motivação das decisões adotadas.

Nota de conclusão: uma nova visão da atividade licitatória
O diálogo competitivo é instrumento adequado que pode propiciar ganhos de inovação e eficiência para a Administração Pública para contratações complexas. Mas esses ganhos supõem a existência de seriedade e capacidade para licitar via diálogo competitivo. Um dos grandes desafios relacionados ao uso do diálogo passa por superar uma cultura de gestão burocrática, formal e mecanicista do processo licitatório.

A flexibilidade do diálogo envolve um processo dinâmico de tomada de decisões. A autonomia administrativa no curso da licitação, que em certa medida relativiza o princípio da vinculação estrita ao edital, coloca em nova perspectiva a forma de operacionalização de vetores como transparência, probidade, isonomia e boa-fé nas licitações públicas. Ou seja: o êxito dessa estratégia de contratação é condicionado pela observância de requisitos não apenas formais, mas relacionais e de boa governança.

 


[1] De acordo com essas disposições, o diálogo competitivo será admissível quando estiverem presentes três requisitos cumulativos: 1) objeto que envolva inovação tecnológica ou técnica; 2) impossibilidade de satisfação da necessidade estatal sem adequação das soluções disponíveis no mercado; e 3) impossibilidade de o ente estatal precisar de forma suficiente as especificações técnicas a serem observadas.

[2] Conforme apontado, por exemplo, no considerando 42 da Diretiva 2014/24 da União Europeia.

[3] HAUGBØLLE, K.; PIHL, D.; GOTTLIEB, S. C. Competitive dialogue: Driving innovation through procurement? In: Procedia Economics and Finance, n. 21, 2015, p. 562; KIRKBY, Mark. O diálogo concorrencial. In GONÇALVES, Pedro (Org.). Estudos de Contratação Pública. Vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 291.

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 466.

[5] A esse respeito: European PPP Expertise Centre (EPEC). Procurement of PPP and the use of Competitive Dialogue in Europe. A review of public sector practices across the EU. Disponível em: https://www.eib.org/attachments/epec/epec_procurement_ppp_competitive_dialogue_en.pdf, 2010).

[6] REISDORFER, Guilherme F. Dias. Diálogo competitivo: o regime da Lei nº 14.133/2021 e sua aplicação às licitações de contratos de concessão e parcerias público-privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

[7] É necessário observar que as demais modalidades licitatórias ensejam gastos distintos e também relevantes na fase prévia à publicação do edital. Basta lembrar a necessidade de elaboração dos projetos para uma empreitada de obra, que não necessariamente existirão antes da instauração do diálogo competitivo.

[8] A esse respeito, confira-se publicação específica do Banco Mundial (Competitive Dialogue: How to undertake a Competitive Dialogue Procurement Process. 2017. Disponível em https://thedocs.worldbank.org/en/doc/412401507743078456-0290022017/original/CompetitiveDialogueGuidance2017.pdf).

[9] As expressões entre aspas são extraídas de AMONYA, Fred. Parsing Competitive Dialogue in Public-Private Partnerships: Emergence of Capability Search. In Transportation Research Procedia, n. 25, 2017.

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