Opinião

O Projeto de Lei 2.384/23 e o retorno de voto de qualidade no Carf

Autores

  • Ailson Santana Freire Filho

    é advogado sênior no escritório Reis Varrichio e Carrer LL.M em Direito Tributário pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

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  • Caio Lourenço Tojar

    é advogado sênior no escritório Reis Varrichio e Carrer LL.M em Transações Internacionais pela Universidad Nebrija e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

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21 de julho de 2023, 21h34

A Câmara dos Deputados aprovou no último dia 7 o Projeto de Lei 2384/2023 que, dentre outras novidades, restabelece o chamado "voto de qualidade" no âmbito do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). O texto segue para votação no Senado.

A medida está inserida no contexto do pacote econômico apresentado pelo Ministério da Fazenda no começo do ano, que, ainda, contém outros mecanismos para incrementar a arrecadação tributária, tal como um novo programa de transação tributária, a retirada de juros e multa em casos de resolução administrativa por voto de qualidade, observado o pagamento da dívida tributária em até 90 dias da decisão e um novo programa de conformidade fiscal, que deverá ampliar o grau de cumprimento voluntário das obrigações tributárias.

Contexto sobre o voto de qualidade
Até 2020, antes da edição da Lei 13.988/20, quando havia empate nos julgamentos, o Presidente da respectiva Turma Julgadora, além do voto ordinário, também era responsável por proferir o chamado voto de qualidade, isto é, o Presidente votava duas vezes para desempatar um julgamento, conforme previsto no artigo 54 do Regimento Interno do Carf.

Considerando que a presidência das turmas é, invariavelmente, ocupada por um representante do Fisco, na prática, o que se via era um maior peso à posição dos representantes do governo em detrimento da posição dos conselheiros representantes dos contribuintes.

Por isso, o "voto de qualidade" sempre foi um tema controverso, afinal o Carf é um órgão julgador marcado por sua composição paritária.

Nesse contexto, muitos contribuintes sustentavam que o voto de qualidade desnaturaria a essência paritária do órgão, colocando em xeque a (im)parcialidade dos seus membros. Além disso, sustentava-se que a aplicação irrestrita do voto de qualidade violava os artigos 106, II e 112, ambos do Código Tributário Nacional, os quais, resumidamente, tratam do que se convencionou chamar de in dubio pro contribuinte, ou melhor: na dúvida, em se tratando de penalidades, deve se aplicar a legislação mais benéfica ao contribuinte, ainda que isso implique a retroatividade da norma mais favorável.

Evidentemente, muitos contribuintes judicializavam a questão, afinal um julgamento empatado no âmbito do Carf — que culminava na imposição de penalidades — demonstrava, minimamente, que havia dúvidas quanto à interpretação da legislação.

Em 14/4/2020, entretanto, foi publicada a Lei 13.988/2020 que, em seu artigo 19-E previu que "em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade […] resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte", acabando, assim, com a aplicação do chamado voto de qualidade nos processos administrativos fiscais instaurados para determinação e exigência do crédito tributário.

O tema, todavia, estava longe de ser pacificado, afinal, desde o primeiro momento, o Fisco passou a questionar a referida alteração legislativa, sustentando, principalmente, que não havia pertinência temática entre a Lei 13.988/20 (resultante da conversão da MP do "Contribuinte Legal") e o fim do voto de qualidade.

Na mesma linha, integrantes do antigo Governo questionavam a mudança, tendo em vista a impossibilidade de judicialização da matéria em caso de vitória dos contribuintes no Carf, visto que é vedado à Fazenda Pública recorrer ao Poder Judiciário, o que poderia representar um desequilíbrio processual entre Fisco e contribuinte.

Essa discussão foi parar no Supremo Tribunal Federal que, por meio de três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 6.399, 6.403 e 6.415), decidiu, em síntese, que o fim do voto de qualidade é uma faculdade legítima do Congresso, bem como que a alteração não violou o devido processo legislativo, pois foi incluída na conversão em lei de medida provisória que tinha pertinência temática, pois tratava de matéria tributária (MP 899).

Mais recentemente, já em 2023, o novo Governo passou a questionar, ainda com mais veemência, o fim do voto de qualidade, alegando, principalmente, que isso traria uma queda substancial na arrecadação. Essas alegações trouxeram uma repercussão negativa que ecoou em diversas entidades e, inclusive, ensejou a circulação de uma nota subscrita pela Aconcarf (Associação dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf), que saiu em defesa da parcialidade dos julgadores.

Ainda assim, logo nos primeiros dias do mandato, o atual Governo aprovou a Medida Provisória 1.160/2023, que restabelecia o voto de qualidade como critério único de desempate no Carf.

Referida MP, por não ter sido votada tempestivamente pelo Congresso, caducou em 1/6/23 e, consequentemente, voltou a regra de que, em caso de empate no julgamento, a proclamação do resultado será pró-contribuinte.

Essas sucessivas alterações legislativas (inclusive, provisórias) fizeram com que o contribuinte mergulhasse em profunda insegurança jurídica e, de certo modo, impactaram os julgamentos no Carf que, nesse período, não pautou temas relevantes para julgamento até que houvesse uma definição.

Projeto de Lei 2.384/2023
Em paralelo, seguiu tramitando no Congresso o PL 2.384/2023, de iniciativa do governo, que disciplinava, mais uma vez, o retorno do voto de qualidade. Dada a importância do tema para o governo, referido projeto tramitou em regime de urgência constitucional, o que significa que deveria ser votado prioritariamente, sob pena de travar a pauta do Congresso.

No último dia 7 de julho, enfim, o projeto de lei foi aprovado pela Câmara dos Deputados.

O texto aprovado, após o parecer do relator, resultou de um acordo entre o governo e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), além de ter incorporado diversas emendas de Deputados, que endereçaram questões substanciais que já haviam sido pauta de pleitos formulado pelos contribuintes, dentre os quais, sem esgotar todas as alterações promovidas, destacamos:

— Exclusão de multas e juros de mora cobrados dos contribuintes quando o julgamento for favorável ao Fisco pelo voto de qualidade, desde que o sujeito passivo se manifeste pela intenção de realizar o pagamento em até 90 dias;
— Durante o prazo de 90 dias para que o contribuinte opte pelo pagamento, os créditos exigidos não serão óbice à renovação da CND;
— Caso o contribuinte não opte pelo pagamento, o débito será encaminhado à dívida ativa sem a incidência dos encargos-legais e sem a as multas impostas (apenas com os juros);
— Transação dos débitos mantidos pelo voto de qualidade, com possibilidade de quitação em 12 parcelas, sendo possível, ainda, a utilização de prejuízo fiscal, base de cálculo negativa e precatórios;
— O cancelamento da Representação Fiscal para Fins Penais no caso de desempate do respectivo julgamento pelo voto de qualidade;
— Possibilidade de sustentação oral no âmbito da DRJ (primeira instância administrativa na RFB);
— As multas poderão ser reduzidas, levando-se em conta o histórico do contribuinte com possibilidade, por exemplo, de redução da multa de 75% em 1/3, nos casos de "erro escusável" e cujo comportamento do contribuinte demonstre a sua cautela para o adequado cumprimento da obrigação tributária;
— A multa qualificada passa a ser de 100% do crédito tributário devido, aplicando-se o percentual de 150% apenas em caso de reincidência, desde que — em ambos os casos — seja configurada, individualizada e comprovada a conduta dolosa do sujeito passivo;
— De igual modo, não se aplicará a qualificação da multa quando a) houver sentença penal de absolvição com apreciação de mérito em processo do qual decorra imputação criminal do sujeito passivo; e b) o sujeito passivo tiver divulgado os atos ou fatos que ensejaram a qualificação da multa, ou quando não tiver tentado omiti-los;
— Mesmo em caso de reincidência, não será aplicada a multa de 150% caso o contribuinte adote medidas, no curso da fiscalização, para sanar as ações ou omissões tipificadas;
— Possível dispensa de apresentação de garantia para discussão judicial;
— Ressarcimento dos custos com a contratação e manutenção de garantia em caso sucumbência da Fazenda Pública;
— Impossibilidade de execução da garantia antes do trânsito em julgado;
— Limite de alçada aplicável aos recursos interpostos ao Carf (60 salários-mínimos);
— Possibilidade de autorregulação após procedimento fiscalizatório instaurado.

Breves comentários sobre alguns pontos trazidos pelo PL
Como se vê, além do retorno do voto de qualidade, o PL aprovado na Câmara dispôs, também, sobre outros elementos do processo administrativo fiscal em âmbito federal, estabelecendo, outrossim, uma política de incentivo à conformidade, além de novas disposições relacionadas à imposição de multas.

Em que pese o chamado "voto de qualidade" não seja a melhor solução para o desempate no âmbito do Carf, tampouco a inclusão desta alteração em um pacote econômico cuja finalidade é o incremento da arrecadação tributária (sendo um contrassenso com a própria essência paritária do órgão), entendemos que as demais alterações promovidas pelo PL aprovado na Câmara trazem um racional mais justo e eficiente ao contencioso administrativo fiscal, especialmente no que tange à metodologia a ser observada para imposição das multas qualificadas.

Inclusive, a possibilidade de redução da multa de ofício (cujo "padrão" é 75%) em 1/3 deve ser elogiada, diante da complexidade do atual sistema tributário, que inviabiliza, em muitos casos, o cumprimento de todas as obrigações tributárias, principais e acessórias, impostas aos contribuintes, quando demonstrada a cautela para o seu cumprimento ou nos casos em que fique comprovado que a conduta está alinhada "com as práticas reiteradas adotadas pela Administração ou pelo segmento de mercado em que esteja inserido".

Da mesma forma, a não aplicação de multa majorada nas situações em que o contribuinte adote todas as providências necessárias para sanar ações ou omissões apontadas após a instauração de procedimento fiscalizatório deve ser celebrada, além de contribuir com uma relação mais transparente entre Fisco e contribuinte.

Outro ponto bastante positivo reside na possibilidade de discussão judicial dos débitos (mantidos pelo voto de qualidade) sem a necessidade de apresentação de garantia, o que, a nosso ver, colabora para reduzir os nefastos efeitos provocados pela Lei de Execuções Fiscais.

Sobre o tema, sempre entendemos que a exigência de garantia como condição à discussão do débito em sede de Embargos à Execução (meio de defesa do executado) atenta contra diversos princípios e garantias constitucionais, ofendendo, por exemplo, o acesso à justiça, o direito de petição, a ampla defesa e o contraditório. Embora o Projeto de Lei em referência não solucione esses pontos, ao menos, traz justiça aos contribuintes derrotados no Carf pelo voto de qualidade.

Entretanto, segundo o texto aprovado na Câmara, a garantia apenas não será exigida quando o contribuinte demonstrar "capacidade de pagamento", além de ter apresentado regularidade fiscal nos últimos 12 meses.

Em que pese essa regra só se aplique ao contribuinte com capacidade de pagamento, o Projeto de Lei aprovado na Câmara traz um alento aos demais contribuintes não contemplados pela dispensa de garantia, prevendo que "se vencida, a Fazenda Pública ressarcirá integralmente o valor devidamente atualizado das despesas incorridas pela parte contrária, inclusive com o oferecimento, a contratação e a manutenção de garantias".

Isso significa que, ao contratar, por exemplo, um seguro-garantia para viabilizar a garantia do crédito discutido e a regularidade fiscal da empresa durante o curso do processo judicial, os custos assumidos pelo contribuinte a título de prêmio para emissão e renovação da apólice serão ressarcidos pelo Fisco em caso de vitória do contribuinte. De igual forma, ocorrerá com os custos associados a outras modalidades de garantia, tais como a fiança bancária.

Sempre defendemos essa ideia, afinal, na forma do artigo 16, §1º da Lei nº 6.830/80, não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução, razão pela qual o custo da garantia é verdadeira despesa processual para a oposição dos Embargos à Execução.

Na mesma linha, o artigo 82 do CPC impõe que a parte antecipe todas as despesas necessárias para os atos que requererem ou realizarem, determinando que a sentença condene o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou, dentre as quais, sem sombra de dúvida, estão aquelas vinculadas à contratação e manutenção da garantia.

Ainda, o Projeto de Lei deixou clara a impossibilidade de liquidação antecipada, total ou parcial, das garantias apresentadas até o trânsito em julgado da decisão em desfavor do contribuinte, vedando, em qualquer hipótese, a liquidação antecipada de eventual garantia.

Em que pese, a nosso ver, essa vedação já estivesse calcada no artigo 32, §2º da Lei de Execuções Fiscais, a Fazenda Nacional vinha sustentando que a referida regra se aplicaria apenas ao levantamento dos depósitos judiciais, defendendo a possibilidade de liquidação antecipada de outras modalidades de garantias, pois estas não suspenderiam a exigibilidade do crédito tributário.

Para pacificar a questão, o Projeto de Lei 2.384/23 trouxe importante contribuição ao Direito Positivo no sentido de deixar clara a impossibilidade de liquidação antecipada das garantias.

Por fim, entendemos que o projeto aprovado na Câmara perdeu a oportunidade de incluir expressamente disposições relativas à impossibilidade de manutenção da responsabilidade tributária nos casos em que o julgamento é desempatado em sede de voto de qualidade.

É que, em diversas situações, assim como ocorre na imposição da multa qualificada, a responsabilidade tributária é aplicada como uma espécie de sanção ao gestor da sociedade por infração à lei ou, ainda, em função de abuso da personalidade da empresa, quando caracterizado o excesso de mandato.

Nesses casos, a conduta que ensejou a responsabilização do gestor, muitas vezes coincide com a conduta que deu margem à aplicação da multa qualificada, razão pela qual, em tese, deveria ser aplicado o mesmo racional utilizado para afastar a multa, afastando-se também a responsabilidade atribuída, afinal, em se tratando de sanções: in dubio pro contribuinte.

Inclusive, nos parece clara a intenção do legislador de aplicar esse racional, principalmente quando reconhece expressamente a necessidade de cancelamento da Representação Fiscal para Fins Penais no caso de vitória do Fisco pelo voto de qualidade.

Conclusão
Percebe-se, portanto, que, embora tenha sido retomado o voto de qualidade em um cenário que o atual Governo busca alternativas para o incremento da arrecadação tributária, o texto final do Projeto de Lei aprovado na Câmara estabeleceu algumas iniciativas favoráveis ao contribuinte, que buscam estimular a conformidade tributária e a redução de litígios judiciais.

Espera-se, agora, que as novidades positivas sejam mantidas pelo Senado.

Autores

  • é advogado sênior no escritório Reis, Varrichio e Carrer, LL.M em Direito Tributário pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

  • é advogado sênior no escritório Reis, Varrichio e Carrer, LL.M em Transações Internacionais pela Universidad Nebrija e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

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