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Santos Jr.: Ilegitimidade passiva do PIE em ação consumerista

18 de julho de 2023, 18h25

Por Luiz Carlos Santos Junior

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Em recente episódio de falha na prestação do serviço de fornecimento de energia elétrica no interior do estado do Amazonas, houve o ajuizamento em massa no juizado especial de demandas consumeristas em face da concessionária de serviço público e do produtor independente de energia (PIE) que atua na localidade, o que deu ensejo à seguinte indagação: teria o PIE responsabilidade objetiva e legitimidade passiva para figurar no polo passivo dessas demandas?

Preliminarmente, é necessário compreender o que é um PIE e as fases que permeiam o serviço de fornecimento de energia elétrica. Criado pela Lei nº 9.074/1995, o PIE é uma pessoa jurídica — ou empresas reunidas em consórcio — que recebe concessão ou autorização do poder concedente para produzir energia elétrica destinada ao comércio de toda ou parte da energia produzida, por sua conta e risco.

Nesse contexto, a figura do PIE veio para contrastar com o regime tradicional de intermediação da energia entre os produtores e consumidores, qual seja, o de serviço público. De acordo com Luiz Gustavo Kaercher, fica nítida a intenção do legislador de deixar claro que o segmento de geração de energia é uma atividade econômica segregada dos demais elos da cadeia (transmissão e distribuição) e deveria estar submetida à concorrência [1].

Desta sorte, as localidades que não sejam conectadas com o Sistema Interligado Nacional (SIN) fazem parte do Sistema Isolado, o qual possibilita que pessoas jurídicas de direito privado possam atuar como PIE, que será encarregado de gerar a energia que será adquirida pela concessionária de serviço público, que é a responsável pela distribuição da energia elétrica ao consumidor final.

Assim, em síntese, a geração de energia elétrica é o serviço que produz, por transformação, a energia elétrica, a partir de várias fontes primárias, sendo a transmissão de energia elétrica o serviço que transporta grandes blocos de energia elétrica por longas distâncias, enquanto à distribuição de energia elétrica é o serviço que, recebendo a energia do gerador por meio do sistema de transmissão, faz a entrega física da energia aos consumidores finais, através das redes de distribuição, sendo realizada preponderantemente em regime de concessão de serviço público.

Quanto ao tema, relevante destacar a conclusão do dr. José Calasans Júnior [2], consultor jurídico do Ministério das Minas e Energia, o qual asseverou que os serviços de energia elétrica compreendem três etapas, a saber, a geração, a transmissão e a distribuição, de modo que somente a segunda e terceira etapas, as quais utilizam os sistemas e redes públicas e envolvem o consumidor (usuário), é que devem ser consideradas serviços públicos, de modo que a geração de energia elétrica não é considerada serviço público.

Nessa quadra, existe uma relação do PIE com a concessionária de serviço público por meio de um contrato de comercialização de energia elétrica e potência nos sistemas isolados, o qual advoga-se possui natureza privada, de modo que os prejuízos sofridos pelos consumidores em caso de eventual falha na prestação do serviço de fornecimento de energia elétrica devem ser pleiteados perante à concessionária de serviço público. Explica-se.

Como visto, para além da figura do PIE não se tratar de um concessionário de serviço público, não sendo, portanto, um prestador de serviço público, a sua inclusão no polo passivo das demandas consumeristas tem o condão de esvaziar a competência dos juizados especiais e, assim, obstaculizar o acesso à justiça aos consumidores finais, haja vista a imprescindível necessidade de realização de perícia para a verificação do nexo de causalidade entre o dano alegado e a falha na prestação de serviço de energia elétrica, porquanto insofismável elucidar a origem do problema, se ocorrida na geração, transmissão ou distribuição, tendo em vista que não se poderia imputar a responsabilidade ao PIE em caso de falhas nas etapas de transmissão e distribuição, fato que representa complexidade incompatível com o rito dos juizados especiais.

Em razão disso, inaplicável a responsabilização objetiva do PIE com base na Código de Defesa do Consumidor, pois, além de não prestar serviço público diretamente a população, tal medida afronta literalmente o artigo 37, §6º da Constituição, que prevê apenas a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, in verbis:

"Art. 37 […]
§6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."

Ademais, importante salientar, para que não pairem dúvidas, que não se defende aqui a ausência de responsabilidade do PIE perante os danos eventualmente causados ao consumidor em decorrência de problemas na geração de energia elétrica. Contudo, advoga-se que inexiste responsabilidade objetiva do PIE e que este não detém legitimidade para figurar no polo passivo das demandas consumeristas, de modo que as ações devem ser direcionadas à concessionária de serviço público e, esta sim, possui legitimidade para pleitear seus prejuízos junto ao PIE, caso decorrentes de problemas existentes na etapa de geração de energia, o que poderá ser aferido por meio de perícia técnica.

Diante do exposto, resta evidente a ilegitimidade passiva do PIE para figurar no polo passivo de demandas consumeristas, porquanto o PIE não pode ser considerado concessionário de serviço público e nem prestador de serviço público diretamente ao consumidor, possuindo apenas relação contratual civil, de caráter privado, junto ao verdadeiro concessionário de serviço público, aquele responsável pela distribuição de energia elétrica diretamente ao consumidor, o qual possui a prerrogativa para requerer o cumprimento do contrato com base na legislação civil aplicável à relação jurídica existente entre as partes, assim como pleitear em juízo os prejuízos eventualmente sofridos em decorrência de problemas ocasionados pelo PIE na geração de energia elétrica.

 


[1] Manual de Direito da Energia Elétrica. São Paulo: Quarter Latin, 2021, pág. 43.

[2] Consultor Jurídico do Ministério das Minas e Energia, em artigo denominado "Serviço Público ou Atividade Econômica?" publicado na Gazeta Mercantil de 23.10.96.