Opinião

Lei do Superendividamento: desafios após dois anos de vigência

Autores

12 de julho de 2023, 20h41

A Lei 14.181/2021 (Lei do Superendividamento) foi resultado do Projeto de Lei 283/2012, que tramitou durante dez anos no Congresso, com ativa participação da sociedade civil. Em 2 de julho de 2021, a lei entrou em vigor, alterando o Código de Defesa do Consumidor (CDC), para disciplinar o crédito responsável, o processo de repactuação de dívidas e introduzir direitos básicos do consumidor, como o mínimo existencial.

Após dois anos de vigência, a lei tem enfrentado desafios na aplicação em relação ao valor do mínimo existencial e dos critérios empregados para a sua aferição, dado o descompasso entre a jurisprudência e a regulamentação, bem como os sucessivos questionamentos por parte das autoridades de defesa do consumidor e da recente alteração do valor pelo atual governo.

Antes da edição do Decreto 11.150/2022, que regulamentou o mínimo existencial em 25% do salário mínimo vigente na data da publicação, correspondente a R$ 303, os tribunais vinham aplicando o mínimo existencial em 30% da renda líquida do consumidor [1]. As decisões valiam-se de uma analogia ao limite de 35% previsto na Lei 10.820/2003, aplicável ao crédito consignado com descontos em folha de pagamento.

Com a vigência do decreto, em 27 de setembro de 2022, a avaliação do mínimo existencial limitou-se às dívidas e aos limites de crédito afetos ao consumo, excluindo-se do cômputo as dívidas decorrentes de financiamento imobiliário e empréstimos com garantias reais. A despeito disso, a jurisprudência majoritária manteve o entendimento anterior sobre o mínimo existencial.

Tornando o cenário ainda mais instável, ao julgar o Tema Repetitivo 1085, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou a tese de que, para fins de preservação do mínimo existencial, não se aplicaria aos créditos com desconto em conta corrente a limitação de 35% prevista na Lei 10.820/2003 [2].

Em paralelo a essa divergência entre a jurisprudência e a regulamentação, o Decreto 11.150/2022 teve a sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal (ADPFs 1.005 e 1.006), sob o fundamento de que o valor definido afrontaria o dever legal do Estado de proteger o consumidor e de reduzir as desigualdades sociais, e pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), para quem o valor de R$ 303 seria inferior à linha da pobreza e que o mínimo existencial não poderia se limitar a despesas fundamentais, devendo ser analisado conforme as particularidades do caso concreto [3]. Em linha com tais críticas, o novo governo alterou a regulamentação do mínimo existencial pelo Decreto 11.567/2023 para aumentar o valor para R$ 600.

A sucessão desses acontecimentos ao longo dos dois primeiros anos de vigência da lei ressaltou a incerteza sobre o valor do mínimo existencial e os critérios para a sua aferição, embora a introdução desse direito no CDC tenha sido uma das principais novidades da lei. Como resultado, a tutela jurisdicional do consumidor superendividado resta enfraquecida, enquanto os fornecedores de crédito não têm clareza a respeito das obrigações que lhes são impostas quanto à preservação do mínimo existencial.

Do ponto de vista do consumidor, essa incerteza é prejudicial seja no momento da contratação do crédito, seja no momento de repactuação das dívidas. A adequada aplicação do mínimo existencial é condição indispensável para que a Lei do Superendividamento alcance o objetivo de garantir a prevenção e o auxílio ao consumidor superendividado. A depender do órgão julgador, o mínimo existencial do consumidor pode ser considerado de R$ 600 ou o equivalente a 30% dos rendimentos líquidos. São critérios muito diferentes, que prejudicam a segurança jurídica.

Na perspectiva do fornecedor de crédito, o cenário é igualmente angustiante. De um lado, a lei impõe o dever de, previamente à contratação, "avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor". Violado o dever, abre-se a porta para a nulidade do contrato e a condenação do fornecedor por danos. Por outro lado, inexiste precisão quanto ao valor e aos critérios que devem ser considerados pelo fornecedor nessa avaliação, gerando obstáculo para a oferta do crédito.

Portanto, sob qualquer ângulo que se analise o contexto, completados dois anos de vigência da lei, as divergências e contínuas discussões sobre o mínimo existencial dificultam a aplicação da norma e prejudicam tanto o consumidor quanto o fornecedor. Para contornar esse desafio, o Poder Judiciário, os órgãos regulamentadores e as autoridades de defesa do consumidor devem buscar alinhamento, a fim de que a Lei do Superendividamento proteja efetivamente o consumidor superendividado, e propicie segurança jurídica ao mercado de concessão de crédito.

 


[1] A título de exemplo: TJDFT. Agravo de Instrumento nº 0732847-13.2021.8.07.0000, rel. des. Luís Gustavo B. de Oliveira, j. 27.10.2021; TJ-SP. Apelação nº 1000541-86.2021.8.26.0355, rel. des. César Zalaf, j. 8.6.2022; e TJ-RJ. Apelação Cível nº 0015669-57.2011.8.19.0211, Rel. Des. Cristina Tereza Gaulia, j. 27.07.2021.

[2] Dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento, e dá outras providências.

[3] Nota Técnica n. 11/2023 da Senacon.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!