Diário de Classe

Nem toda decisão com a qual não se concorda é ativismo judicial

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  • Thales Delapieve

    é advogado doutorando em Direito Público (Unisinos) mestre em Direito (FMP) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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8 de julho de 2023, 8h00

A coluna de hoje tem por objetivo ajudar a esclarecer um tema que tem sido recorrente nos debates jurídicos do país e que há certo tempo já transcendeu esta esfera e hoje ressoa na opinião pública com certa frequência: o ativismo judicial.

Nesse sentido, tem se tornado cada vez mais comum que decisões polêmicas e/ou de grande repercussão no país sejam tachadas de ativismo judicial. No entanto, a ausência de adequada compreensão sobre o que é efetivamente o ativismo judicial acaba por vulgarizar o termo, levando a que este seja utilizado indistintamente em situações nas quais não se está diante de ativismo judicial, mas sim de um caso de judicialização da política, por exemplo; ou, ainda, simplesmente como adjetivo pejorativo para uma decisão judicial com a qual não se concorda.

Neste último caso, dentro do campo da política no Brasil as acusações de ativismo judicial, em especial contra decisões do Supremo Tribunal Federal — e de maneira mais recente também contra a decisões do Tribunal Superior Eleitoral — se tornaram praxe a até mesmo plataforma de campanha política por parte de grupos políticos contrariados por decisões oriundas desses tribunais [1][2][3]. De outra parte, ministros do Supremo Tribunal Federal rechaçam a alcunha de que o tribunal seja ativista e atribuem essas afirmações ao desconhecimento sobre o papel da Corte[4].

Assim, tendo por base esta problemática estabelecida, nos propomos a escrever algumas linhas buscando desmistificar certas afirmações corriqueiramente efetuadas e demonstrar como é necessário tratar o assunto com o devido rigor teórico para que a discussão não seja rebaixada em sua complexidade e, assim, ajudar na identificação de decisões judiciais que efetivamente se constituem em ativismo judicial.

De plano, vale dizer que a Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) oferece substrato teórico mais que suficiente para o adequado tratamento de todas essas questões, conforme veremos a seguir, sendo imperioso o destacar os escritos do professor Lenio Streck ao longo dos anos aqui mesmo na ConJur sobre a temática, contribuindo para o debate público sobre o tema (para alguns exemplos, ver aqui, aqui e aqui).

1. O quê é o ativismo judicial?
O primeiro ponto que demanda o devido esclarecimento é efetivamente dizer o que é ativismo judicial. Nesse sentido, podemos afirmar que o ativismo judicial é um fenômeno gestado dentro da própria sistemática jurídica, consubstanciado em um ato vontade do julgador, caracterizando uma "corrupção" na relação entre os Poderes, uma vez que há uma extrapolação dos limites de atuação do Poder Judiciário pela via de uma decisão que é tomada por meio de critérios não jurídicos [5].

Desta forma, tendo em vista essa caracterização do que é efetivamente o ativismo judicial, podemos afirmar que a sua ocorrência sempre será indesejável e nociva à democracia e à autonomia do Direito. Nesse ponto, vale dizer que a Crítica Hermenêutica do Direito fulmina com a tese do "bom ativismo" ou de existência "ativismos judiciais desejáveis", se contrapondo, por exemplo, à posição de Luís Roberto Barroso para quem a existência de uma postura ativista por parte do Poder Judiciário seria vista de maneira positiva, uma vez que se estaria buscando "extrair ao máximo as potencialidades do texto constitucional" [6].

2. Qual a diferença entre ativismo judicial e judicialização da política?
Esta é outra questão muito importante para a discussão e que não vem sendo tratada de maneira adequada no Brasil, que insiste em abordar ativismo judicial e judicialização da política como se fossem sinônimos, gerando percepções absolutamente equivocadas sobre decisões que seriam supostamente ativistas.

De fato, ativismo judicial e judicialização da política se encontram interligados, uma vez que envolvem diretamente a relação existente entre o Direito e a política. Oportuno salientar que Lenio Streck aponta a política como um dos predadores externos do Direito, ao lado da economia e da moral, sendo esses os predadores exógenos capazes de abalar a autonomia que deve ser intrínseca ao Direito [7].

Em verdade, ativismo judicial e judicialização da política são fenômenos derivados do protagonismo judicial, que pode ser compreendido como a atuação do Poder Judiciário em um viés estatal e da atuação de seus membros ocasionalmente desviada de seu papel institucional [8]

A diferença reside, especificamente, em que a judicialização da política é um fenômeno inexorável e contingencial, próprio das democracias contemporâneas, decorrente das condições sociopolíticas e consiste na intervenção do Poder Judiciário nas deficiências dos demais Poderes. Por sua vez, conforme referido anteriormente, o ativismo judicial é construído dentro do próprio Poder Judiciário, sendo produto do voluntarismo, do solipsismo e da arbitrariedade, por meio de ato de vontade do julgador, extrapolando os limites de atuação delimitados constitucionalmente para o Poder Judiciário ao tomar uma decisão que está pautada em critérios não jurídicos.

Neste ponto, especialmente quando falamos em políticas públicas, a CHD oferece uma ferramenta essencial para realizar a adequada diferenciação entre o que é ativismo judicial e a o que é judicialização da política, consistente nas três perguntas fundamentais, parte integrante da Teoria da Decisão Jurídica que o professor Lenio Streck vem construindo ao longo dos anos.

As três perguntas fundamentais consistem em um mecanismo para que tanto o interprete quanto aquele que se depara com uma decisão judicial sejam capazes de analisá-la e constatar se esta é uma decisão de fato ativista ou se está diante de um caso de judicialização da política.

Para tanto, na tomada de decisão o juiz devera responder três perguntas fundamentais: 1) se há um direito fundamental com exigibilidade; 2) se o atendimento a esse pedido pode ser, em situações similares, universalizado e concedido às demais pessoas em mesma situação; 3) se para atender aquele direito, se está ou não fazendo uma transferência ilegal ou inconstitucional de recurso, ferindo a isonomia e a igualdade. Ao se valer dessas três perguntas fundamentais é possível verificar se o ato judicial em questão é ativista ou se está sendo contingencialmente realizada, a judicialização da política. Sendo qualquer uma destas perguntas respondidas negativamente, se estará, com razoável grau de certeza diante uma atitude ativista [9].

Sobre as três perguntas fundamentais e sua aplicação prática, vale ler o voto do ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 888.815, o caso do homeschooling, no qual o ministro se valeu das três perguntas fundamentais para se contrapor ao voto do relator e rechaçar a possibilidade de adoção do homeschooling no Brasil.

De igual sorte, destaco a obra recentemente publicada pela colega Isadora Ferreira Neves, oriunda de sua tese de doutorado, intitulada Ativismo Judicial e Judicialização da Política – Três Perguntas Fundamentais para uma Distinção (editora Jus Podivm) na qual as três perguntas fundamentais são levadas ao centro da questão e cada um desses pontos é esmiuçado e aprofundado, sendo valoroso trabalho para auxiliar no adequado tratamento da questão para todos aqueles que desejaram se aprofundar na temática.

Sem dúvida alguma essa diferenciação sobre o que é ativismo judicial e o que é judicialização da política é de extrema importância sob a perspectiva da Teoria do Direito. Sobretudo em face das confusões que são realizadas e da algaravia conceitual que se coloca sobre o tema. De fato, há que se reconhecer que não existem "bons ativismos judiciais" e a Crítica Hermenêutica do Direito fornece a adequada base teórica para a diferenciação destes fenômenos que tem sido equivocadamente tratados como se fossem a mesma coisa.

3. Existe ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal?
Eis aqui a questão que talvez seja a mais complexa de se responder dentre aquilo que propomos no presente texto porque ela perpassa obrigatoriamente por como a pergunta é formulada. Se a pergunta fosse formulada simplesmente como "O Supremo Tribunal Federal é um tribunal ativista?" a reposta provavelmente seria não, porque o tribunal não adota posições ativistas em todas as suas decisões; nem todos os ministros possuem decisões que podem ser consideradas ativistas pelos critérios que buscamos estabelecer até agora.

Essa resposta vai na linha do que foi dito pelo ministro Luís Roberto Barroso em reportagem anteriormente referida e, também, em outras declarações dadas pelo ministro às mídias referindo que o Supremo Tribunal Federal não é um tribunal ativista. Essa conclusão, aliás, vai na linha do desfecho que Isadora Ferreira Neves faz em sua obra ao tratar da aplicação das três perguntas fundamentais e a atuação do Supremo Tribunal Federal.

Todavia, ao formularmos a pergunta de maneira diversa, como fizermos, a resposta também é diversa. Se a pergunta formulada é "existe ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal", a resposta será sim e esta resposta afirmativa é reconhecida pelo próprio ministro Luís Roberto Barroso.

Para exemplificar este ponto, trago à baila a fala do ministro Barroso realizada no ano de 2022 no V Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito, no qual o ministro realizou conferência em que a temática foi abordada e, ainda que ele tenha novamente rechaçado que o Supremo Tribunal Federal seja um tribunal ativista, ele reconheceu que em pelo menos dois casos o STF havia sim agido de maneira ativista [10].

Concretamente, Barroso reconheceu uma ação ativista do Supremo Tribunal Federal nestes dois casos: no caso do tratamento igualitário das uniões homoafetivas e no caso da criminalização da homofobia, afirmo que o Plenário do Supremo Tribunal Federal incorreu em efetivo ativismo judicial — ao seu ver justificado — inclusive apontando que de maneira limítrofe, no segundo caso, esteve em vias de criar um tipo penal por meio de decisão judicial, embora, em seu entendimento, não tenha chegado a tal ponto.

Assim, mesmo sob a perspectiva do ministro Barroso, existem sim casos de ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal, ainda que a seu ver estes sejam justificados. No entanto, como vimos até agora, sob a perspectiva da CHD, não existem "bons ativismos", ativismo judicial é danoso à democracia e violador da autonomia do direito. Portanto, se há ativismo judicial passível de ser identificado no Supremo Tribunal Federal, independentemente do caráter quantitativo deste ativismo, já é um mal sinal.

No entanto, para além dos casos reconhecidos pelo ministro Barroso, sob a perspectiva aqui delineada, podemos apontar outros episódios de decisões ativistas no Supremo Tribunal Federal, como por exemplo o caso do Habeas Corpus 126. 292/SP, que fulminou a presunção de inocência e autorizou por anos a execução antecipada de pena privativa de liberdade sem trânsito em julgado após condenação em segunda instância — felizmente revertida, posteriormente, pelo julgamento das ADCs nº 43 e 44 que contaram com valorosa atuação do professor Lenio Streck — e também o caso da Reclamação 4.335/AC que, não obstante tenha sido julgada improcedente, até hoje repercute em uma tentativa recorrente do Supremo Tribunal Federal de tentar reescrever o modelo de controle de constitucionalidade brasileiro, como no posterior julgamento da ADI nº 3.470/RJ e mais recentemente nos Temas 881 e 885.

Estes são apenas alguns exemplos gritantes passíveis de serem apontados como flagrantes casos de ativismo judicial, dentro uma perspectiva que adote o adequado rigor teórico. Poderíamos até mesmo citar o caso abordado pelo professor Lenio Streck nesta semana (ver aqui) em que o ministro Barroso constrói um texto para autorizar a prisão imediata após os julgamentos do júri que não encontra respaldo na própria previsão legal e muito menos na Constituição!

Agora, feitas essas considerações podemos inferir que não se pode tratar qualquer decisão com a qual se discorde como sendo ativismo judicial. É necessário que se tenha o devido rigor teórico para que se possa afirmar de maneira contundente que se está diante de uma decisão judicial verdadeiramente ativista, conforme vimos acima.

Assim, vale ressaltar que decisões recentes como a que cassou o mandato do ex-deputado federal Deltan Dallagnol; a decisão que tornou o ex-presidente da República Jair Bolsonaro inelegível; a decisão que declarou inconstitucional o indulto concedido ao ex-deputado federal Daniel Silveira; ou mesmo a decisão que mandou prender os criminosos que atacaram a Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 — todas acusadas de ativismo judicial por apoiadores descontentes, nada têm de ativistas. Conforme dito inicialmente, não é porque não se concorda com uma decisão judicial que ela é ativista. Ativismo judicial é outra coisa…

 


[5] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6ª ed. ver. e amp. São Paulo: Saraiva. 2017. p. 87.

[6] BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de direito do Estado, v. 5, n. 1, 2012. p. 7.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 370.

[8] NEVES, Isadora F. As três perguntas fundamentais da Crítica Hermenêutica do Direito: a aplicabilidade de uma proposta de limites à atuação do Poder Judiciário no Brasil. Tese de Doutorado. [s.l.] UNISINOS, 2022. p. 36.

[9] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. ver. e amp. São Paulo: Saraiva. 2017. p. 259

[10] BARROSO, Luis Roberto. 26 de outubro, noite – V COLÓQUIO DE CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO. 24:49 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6ynfDkrQPyE. acesso em: 1/12/2022

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