Opinião

Desabafos forenses ao Tribunal do Júri

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7 de julho de 2023, 18h21

O Tribunal do Júri voltou a ser alvo de ataques. Todavia, permanece sendo um instrumento eficaz e capaz de realmente evidenciar e demonstrar a dinâmica de uma sociedade democrática.

1º de junho de 2023
Embora não isolado, na crítica em si ou nos tribunais, ou, ainda, sequer revestido de alguma inovação, em 29 de junho de 2023 a comunidade jurídica foi obrigada a observar o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, atacar a instituição do Tribunal do Júri com veemência e, com a devida vênia, certa dissociação entre o mundo togado do Poder Judiciário, em que há regras próprias e conceitos inaplicáveis à vida real, com a realidade forense enfrentada diariamente pela advocacia.

Em suma, o ministro Dias Toffoli sustentou a necessidade de extinção do Tribunal do Júri, alegando ser algo arcaico, suscitando haver ineficiência e, pela natureza do procedimento, incentivo a ilegalidades e argumentações retrógradas. Não obstante, traz sua concepção de o Tribunal do Júri não ser uma cláusula pétrea na Constituição, muito embora esteja insculpido taxativamente o instituto em seu artigo 5º, no inciso XXXVIII.

Em outro ponto, o qual merece um destaque pelo perigo em que consiste o argumento para o exercício da defesa e do contraditório, argumentou o ministro sobre a quantidade de instrumentos processuais de defesa que podem ser utilizados pelas partes acusadas, levando a morosidade estatal, evidenciando um posicionamento de presunção de culpa pela condenação não transitada em julgada e desprezo pela revisão de decisões tomadas, afinal, a magistratura, o corpo de jurados ou ministros de Tribunais Superiores não cometem erros, correto? Os instrumentos legais de recurso são previstos justamente para viabilizar a defesa.

Certamente, para quem atua diariamente na defesa de indivíduos condenados sem julgamento ou em julgamento não seguindo os moldes mínimos de devido processo legal, as alegações do ministro Dias Toffoli ardem, pois é colocada a culpa, em vários sentidos, da demora pelo julgamento, definitivo ou não, ao ser acusado.

A nefasta culpa também abranger aos que militam e sofrem tão somente para que a defesa seja exercida e a voz do cidadão submetido ao poder do Estado, pelo menos, seja ouvida sob uma perspectiva que não a de ser criminoso, delinquente, merecedor dos piores suplícios pelo bem da mídia e pelo cego desejo de variados juízos (para não individualizar) em dar uma resposta à sociedade, mesmo que equivocada, pois o que importa não é a verdade e nem mesmo o cumprimento da lei, mas do devido ego revestido sob o manto falho e incerto de algo chamado justiça.

Bastaria, para encerrar estas linhas, constatar que as partes e a advocacia não possuem qualquer responsabilidade negativa na demora do Estado em julgar demandas. Que seja exposta verdade diversa, mas a culpa e as imputações criminais realizadas devem ser comprovadas enfaticamente por quem acusa, sendo inadmissível quem está sendo acusado necessitar se preocupar em comprovar a própria inocência pelo simples fato de ser acusado. Para tanto, é tão pugnado o chamado juiz de garantias o sistema acusatório, rechaçado, e humilhado pelo próprio Poder Judiciário sob argumentações mais voltadas ao punitivismo e economia do que para a atenção ao exercício de direitos e deveres impostos por princípios constitucionais.

Também, na mesma linha de raciocínio, eventuais erros judiciais, de procedimento ou de dosimetria, entre outros tantos possíveis, devem ser analisados e sanados pela obediência a lei e não pela vontade ou interpretação pessoal de magistrados. Infelizmente, aparenta ser doloroso aos tribunais o reconhecimento de que alguém condenado ou acusado de algo, grave ou não, merece ser ouvido, e, às vezes, "beneficiado" por algo que simplesmente é de seu direito, já que a clamor público pelo contrário e barbárie. Ora, que então abandonem as togas ou discutam com o Poder Legislativo, jamais com a advocacia; muito menos, que penalizem o cidadão exercendo o devido processo legal.

A verdadeira punição pela demora de atendimento jurisdicional do Estado para com vítimas e acusados deve ocorrer em face de um Poder Legislativo lento e impreciso, o qual criou diversos sistemas incompatíveis e dúbios entre si para a defesa e acusação, deixando-as, de fato, tumultuadas em alguns muitos aspectos. Na mesma seara, o Poder Judiciário, infelizmente, não possui efetivo ou estrutura para o julgamento de todas as demandas, criando então, estes dois fatores, um contexto de risco ao ser alvo de imputação criminal e à sociedade como um todo. Porém, apesar disto, o culpado aparenta continuar sendo sempre o réu e seus defensores, por exercerem direitos previstos em lei e considerados um devido processo legal.

Voltando ao principal tópico alvo de críticas da comunidade jurídica, a menção de extinção do Tribunal do Júri. A sustentação realizada no dia 29 de junho, em verdade, traz à tona um alerta para a democracia e uma oportunidade para meditação sobre alguns aspectos sobre o Tribunal do Júri, inclusive em âmbito legislativo, seja para quem atua no ramo, seja para pessoas leigas, pelo motivo mais simples e inerente ao instituto: o corpo de jurados é formado por cidadãos que muitas das vezes nunca pisaram em um prédio do Poder Judiciário e que não possuem nem a menor ideia de o que é ou em que consiste um crime enquanto conduta típica, antijurídica e culpável.

O Tribunal do Júri é uma das formas mais eficazes de se exercer o Direito, já que confere ao povo o poder de decisão sobre fatos de relevância social. No mais, as possibilidades de defesa são sim mais amplas, dadas as naturais circunstâncias e condições que normalmente estão presentes em situações de crimes contra a vida. Assim, há plenitude de defesa, pois os meios convencionais não são hábeis para uma cognição adequada de casos particulares e de comum grande comoção social, negativa ou positiva.

Durante a evolução histórica do Tribunal do Júri, erros e acertos foram encontrados, alguns sanados, outro não. O argumento da demagogia e do sofismo é sempre posto em pauta, mas, em verdade, a decisão do corpo de jurados costuma refletir muito mais a justiça do que as decisões proferidas em confortáveis gabinetes, não raramente isolados. Ainda que sabidamente não perfeito, é o Tribunal do Júri um procedimento especial que possibilita a voz do povo ser ouvida em pluralidade e em conformidade com a realidade social, cultural e legislativa, deixando ao lado julgamentos monocráticos, comumente elitizados ou apenas aliados em demasia com o interesse do Estado, o qual, por óbvio, nem sempre é análogo com o interesse público de fato.

No Brasil, ao contrário de alguns outros países que também possuem o instituto e são mais amplos, o Tribunal do Júri nasce tão somente para o julgamento de imputações criminais dolosas contra a vida. Esta previsão de competência material é presente em corpo constitucional, estando garantido como direito individual e fundamental, restando impensável a relativização proposta pelo ministro Dias Toffoli, por ser sua fundamentação alheia da constituição e de caráter crítico meramente individual.

As críticas pessoais feitas pelo ministro, a desejar a extinção do Tribuna do Júri, são, em parte, até mesmo compreensíveis, porém, não condizem com uma necessidade prática, e sim com a contaminação do desejo do Poder Judiciário a tudo julgar por si. O Tribunal do Júri possui problemas extremamente graves, tal como a ausência do juiz de garantias e a votação secreta não unânime pelo corpo de jurados. Entretanto, esses são problemas simples de serem resolvidos tanto pelo próprio Poder Judiciário quanto pelo Poder Legislativo. A extinção de um instituto processual capaz de dar voz ao povo e análise específica para casos que não podem em hipótese alguma serem meramente documentados e friamente analisados em páginas de autos processuais é um atentado grave aos direitos de todo cidadão submetido a lei brasileira.

Crimes conta a vida são sempre de natureza complexa, direta ou indiretamente. Resta impossível traduzir em letras e imagens emoções e contextos que apenas o povo, como um todo e em sua diversidade, pode entender. Tanto é que, mesmo nos piores cenários, o corpo de jurados, ainda que considerando a culpa do ali acusado, pode absolver o réu. Isto é o exercício da democracia sem a limitação fria de uma legislação antiga e que não comporta todas as previsões de situações possíveis na vida e condição humana.

Impossível não mencionar a possibilidade de demagogia e o sofisma, afinal, Sócrates foi condenado a morte por um júri popular. Curiosamente, a prática forense e a experiência brasileira tem mostrado efetividade em ser inteligente contra os argumentos notoriamente estúpidos e sofísticos, levando a inúmeras condenações e absolvições adequadamente. O risco, todavia, sempre existe, mas é inferior ao risco da parcialidade e ativismo judicial.

Em mesmo tempo, impossível não mencionar a ridícula utilização de defesas ou acusações misóginas e não adequadas a realidades ligadas a dignidade humana, como a utilização, ainda absurdamente frequente, de tese de legitima defesa da honra para casos de feminicídio. Em pleno ano de 2023 D.C., ainda existir tal linha de defesa é, basicamente, um ato de desrespeito, covardia e desprezo pela igualdade de gênero formal e material. O respiro de frescor é a ciência de a sociedade não mais admite tais alegações, deixando sem campo linhas inúteis de defesa e reiterando o caráter dinâmico da democracia no Tribunal do Júri.

O Tribunal do Júri brasileiro possui muitos problemas, mas ainda assim tem a beleza de ser democrático, acessível e de possibilitar uma defesa que jamais poderia ser realizada de outra forma. O direito a defesa foi e ainda é uma conquista diária decorrente de muitas lutas, mortes e dores, precisando ser respeitado em todas as suas formas, cuidando para não perder alguma parcela do já conquistado.

Não há o que se falar, sobre o Tribunal do Júri, em um sistema arcaico pelo simples fato de ser antigo ou apenas possibilitar que exista defesa efetiva. Desatualizado em alguns sentidos sim, jamais arcaico ou ineficiente. O Tribunal do Júri não necessita ser extinto; pelo contrário, necessita ser ampliado e alvo de correções legislativas humanas urgentes para que cada vez mais a democracia reine em seu passo.

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