Diário de classe

Pretexto do precedente para expandir possibilidade de julgamento monocrático

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  • Thales Delapieve

    é advogado doutorando em Direito Público (Unisinos) mestre em Direito (FMP) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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28 de janeiro de 2023, 10h42

Desde a entrada em vigor do Código de Processo Civil em 2015, há autores que defendem a existência de um "sistema de precedentes" dentro do direito brasileiro[1]. Lenio Streck rechaça de maneira veemente a existência deste suposto "sistema de precedentes", em especial em sua obra Precedentes Judiciais e Hermenêutica: O sentido da vinculação no CPC/2015, lançado pela editora JusPodivm, atualmente em 4ª edição, de dezembro de 2022 e leitura obrigatória sobre o tema.

Em verdade, a rejeição por parte da Crítica Hermenêutica do Direito a questão do chamado "precedentalismo à brasileira" não é nova e já foi objeto de diversos textos publicados aqui no Diário de Classe, na ConJur (para citar alguns, ver aqui, aqui e aqui), onde foram realizados apontamentos sobre os problemas surgidos no dia-a-dia sobre esta "cultura dos precedentes" que se tenta introjetar — por vezes de maneira forçosa — dentro do direito brasileiro.

Todavia, feitos estes apontamentos iniciais, é imperioso reconhecer que não há consenso sobre o assunto, razão pela qual a temática permanece atual e merece ser debatida à medida que novas questões surgem na prática diária dos operadores do direito acerca do tópico.

Ainda que seja possível discutir acerca da existência ou não de um "sistema de precedentes" no Brasil, é inegável que o Código de Processo Civil estabelece em alguns de seus artigos a referência a "precedentes" e a necessidade de sua obediência, é o caso do artigo 927 que estabelece que os juízes e tribunais observarão: a) decisões do Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade; b) os enunciados de súmula vinculante; c) os acórdãos em incidentes de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recurso extraordinário e especial repetitivo; d) os enunciados de súmula do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e, por fim, e) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. Segundo autores entusiastas das teses precedentalistas, como Luís Roberto Barroso e Patrícia Perrone Campos Mello, seriam estes os precedentes vinculantes dentro do direito brasileiro ou o que eles definem como "precedentes normativos no sentido forte", uma vez que aqueles passiveis de serem objeto de reclamação[2].

Todavia, há outra questão que surge a partir da análise do artigo 932 do CPC que estabelece os poderes do relator nos julgamentos dos processos nos tribunais. O referido dispositivo estabelece em seu inciso IV que o relator poderá negar provimento ao recurso que for contrário a: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência. De igual sorte estabelece em seu inciso V que, depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

É interessante observar como estes dois dispositivos legais se relacionam: ao mesmo tempo em que o artigo 932 do CPC estabelece os poderes do relator dentro dos processos nos tribunais, ele estabelece uma limitação das possibilidades da atuação monocrática aos casos em que, por força do art. 927, o julgador já deveria estar vinculado.

Em relação ao antigo código de processo civil, foi suprimida a possibilidade de atuação do relator de forma monocrática nos casos em que houvesse "jurisprudência dominante" no STF, no STJ e no próprio tribunal, em respeito ao suposto "sistema de precedentes" e a prevalência do STF e STJ como "Cortes de Vértice", que estaria estabelecido pelo Código de Processo Civil.

Eis que neste ponto é possível verificar de maneira clara com a tal "cultura dos precedentes" não pegou (e nem vai pegar) no Brasil, conforme muito bem aponta Lenio Streck ao assinalar os motivos pelos quais não é possível construir artificialmente uma "cultura de precedentes" no país[3].

A título exemplificativo, trago à baila dispositivo constante no regimento interno do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que em seu artigo 206, ao tratar das competências do relator no tribunal, reproduz o Código de Processo Civil até chegar no inciso XXXVI que estabelece competir ao relator: "negar ou dar provimento ao recurso quando houver jurisprudência dominante acerca do tema no Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça com relação, respectivamente, às matérias constitucional e infraconstitucional e deste Tribunal".

Veja-se, primeiramente, que a redação legislativa do referido artigo é ruim e confusa. O dispositivo repristina hipótese que foi revogada pelo código de processo civil referente a possibilidade de julgamento monocrático pelo relator nos casos de jurisprudência dominante; ademais, após estabelecer uma correlação entre a possibilidade de julgamento monocrático amparado em jurisprudência dominante sustentado nos julgamentos de matéria constitucional pelo STF e matéria infraconstitucional pelo STJ acrescenta "e deste Tribunal". Estaria o referido dispositivo estabelecendo que o relator pode julgar amparado em jurisprudência dominante do STF e do STJ referentes a competência daquele tribunal estadual? E que competência judicial teria um tribunal estadual que não fossem aquelas constitucionalmente estabelecidas? Que matéria poderia ser julgada que não fosse constitucional ou infraconstitucional?

As perguntas são retóricas, obviamente. Em verdade o referido dispositivo é utilizado no tribunal como salvo-conduto para proferir decisões monocráticas de maneira ampla, para além daquelas hipóteses já previstas no código de processo civil e amparadas em "precedentes" do próprio tribunal. Em uma rápida pesquisa na jurisprudência da Corte pelo mencionado artigo 206, XXXVI do regimento interno, temos o retorno de 6.326 decisões monocráticas calcadas no aludido dispositivo.

Quando vamos consultar a fundamentação das decisões, é possível constatar com extensa frequência o uso de expressão que já se tornou chavão no direito brasileiro: "neste sentido, precedentes…", seguido da colagem de ementas de julgados do STF, STJ e neste caso em específico, do próprio tribunal como justificativa para que o julgamento seja efetuado de maneira monocrática, afinal estaria o julgamento calcado em "precedentes".

De forma exemplificativa, destaco trecho de decisão monocrática retirada da jurisprudência do tribunal: "A idoneidade dos depoimentos dos policiais que atuaram na ocorrência, prestando testemunhos em consonância com as demais provas produzidas nos autos, autoriza que sejam utilizados como elementos probatórios. Comprovadas a autoria e materialidade do ato infracional equiparado ao crime de homicídio, previsto no artigo 121, caput, do Código Penal, o julgamento de procedência da representação oferecida pelo Ministério Público torna-se medida que se impõe. […] Precedentes do TJRS".

Veja-se, neste caso, como podemos falar em precedente de maneira abstrata sem que se analise de maneira pormenorizada a situação fática que deu ensejo ao caso? O que é possível verificar é que se usa o "precedente" como bode expiatório de maneira dupla: primeiro como justificativa para que seja efetuado julgamento monocrático que não estaria autorizado pelo código de processo civil; em segundo lugar, conforme Lenio Streck já assinala há muito tempo, como viés de confirmação daquilo que o julgador quer que seja dito[4].

Diante desta situação, vale assinalar que o artigo 489, § 1º do CPC estabelece que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que "se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos". Assim, aquele que invoca a aplicabilidade de um precedente tem o ônus argumentativo de demonstrar como o referido precedente se amolda ao caso concreto — neste caso, ao julgador que deverá demonstrar com a holding, ou padrão, é aplicável ao caso[5] — de sorte que se mostra evidente que a simples colagem de ementas em sequência, desprovidas de contexto e argumentação por parte do julgador, não são capazes de se constituir em fundamento para uma decisão jurídica, razão pela qual esta deveria ser considerada desprovida de fundamentação.

Ademais, vale lembrar que mesmo no common law o que faz de um precedente não é a simples reprodução da decisão anteriormente proferida pelo tribunal, senão a sua ratio decidendi. Conforme ensina Rupert Cross, na tradição da common law, a ratio decidendi de um caso é qualquer regra de direito expressamente ou implicitamente tratada pelo juiz, como passo necessário para chegar à sua conclusão, concernindo a linha de raciocínio adotada por ele ou a parte necessária da direção ao júri[6].

Portanto, não se pode falar em construção de uma “cultura de precedentes” ou "sistema de precedentes", quando os próprios tribunais se valem de teses precedentalistas (à moda brasileira), até mesmo para criar hipóteses de julgamento monocrático que não estão contempladas no Código de Processo Civil.

De fato, se mesmo nas Cortes Superiores já se mostra tarefa árdua o estabelecimento de critérios e de uma certa ortodoxia quando a assunto são precedentes, nos tribunais estaduais esta dificuldade se avulta, conforme se verifica do caso em comento. Veja-se que mesmo em face de situações expressamente previstas em lei se busca remeter a questão aos precedentes, não para que haja um fechamento das hipóteses e uma adstrição ao precedente enquanto vinculantes, como querem os precedentalistas, mas sim para a criação de uma cláusula aberta. Assim, decisões citam decisões, que falam de decisões, criando assim um infinite loop de autorreferência.

O que se verifica, mais uma vez, é que no Brasil precedentes são utilizados pelos tribunais não dentro da busca de formação de um sistema coerente e íntegro, conforme preconiza o artigo 926 do CPC, mas sim como trunfo retórico de quem tem a caneta na mão para decidir. E, caso argumente-se que a decisão não se encontra devidamente fundamentada ou que "precedente" invocado não se amolda ao caso concreto? Invoca-se o livre convencimento motivado. Ou algum princípio em latim. Os fundamentos? "Neste sentido precedentes…"

 


[1] Por todos, ver: MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 6. ed., rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

[2] MELLO, Patrícia Perrone Campos; BARROSO, Luis Roberto. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Disponível em: https:// www.conjur.com.br/dl/artigo-trabalhando-logicaascensao.pdf.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Equívocos sobre a "cultura de precedentes" à brasileira: novo round. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-08/senso-incomum-erros-cultura-precedentes-brasileira-round

[4] STRECK, Lenio Luiz. Decisão do TJ-CE comprova que não existe cultura de precedentes. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-19/lenio-streck-decisao-comprova-nao-cultura-precedentes

[5] Ibid.

[6] CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English law. Oxford: Clarendon Press, 1991. p. 77.

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