Opinião

Afronta do sistema Sniper com princípios constitucionais

Autor

  • Felipe Porfírio Granito

    é advogado sócio do escritório GBA Advogados Associados professor universitário mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Paulista de Magistratura (EPM).

    View all posts

25 de janeiro de 2023, 18h14

Com a intenção de facilitar a busca por patrimônios nos processos em fase de execução, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou, no segundo semestre de 2022, o Sistema Nacional de Investigação Patrimonial e Recuperação de Ativos (Sniper), uma ferramenta integrante do programa Justiça 4.0, o qual instituiu uma série de medidas tomadas pelo órgão para adequar a atuação do judiciário frente às novas tecnologias.

O sistema promete fazer uma ampla busca patrimonial do devedor e de terceiros que, com ele, tenham feito negócio, bastando que seja informado o CPF ou o CNPJ do alvo da operação. Para tanto, o credor deve solicitar a quebra de sigilo dos dados a um magistrado para que a ferramenta possa ser utilizada.

Apesar de parecer uma boa iniciativa para tornar os processos de execução mais céleres e efetivos, o Sniper pode ser um grande problema prático quando o assunto é o respeito a normas e princípios ordinários e constitucionais.

A Constituição, em seu artigo 5º, inciso X, prevê serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, direitos que não são respeitados pela nova ferramenta, considerando que uma de suas funções é realizar uma busca ampla e irrestrita aos bens do devedor, deixando de lado critérios específicos de busca.

Além disso, a ferramenta também afronta diretamente a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), lei federal cuja finalidade é proteger os dados pessoais, inclusive os digitais, de pessoas físicas ou jurídicas, na medida em que se tem acesso a uma imensidade de dados pessoais de pessoas físicas e jurídicas que sejam alvos da operação, extrapolando os limites legais da quebra de sigilo.

Não há dúvidas de que o credor deve receber seu crédito, mas não parece razoável que a ferramenta escancare a vida e vasculhe cada pedaço dos negócios que o devedor já realizou, com o único objetivo de sanar sua dívida. Em outras palavras, o direito do credor não deve se sobrepor ao direito à intimidade do devedor.

Além disso, como brevemente exposto, a quebra de sigilo é o meio legalmente aceito para acesso a dados pessoais, o que deve acontecer de forma específica em relação à informação que se quer saber, e nunca em relação à vida pessoal inteira do sujeito. Ocorre que o Sniper, por sua vez, tem uma atuação ampla e não se preocupa com o meio utilizado para realizar a pesquisa.

Por ser uma ferramenta que usa inteligência artificial, é possível que ela tenha acesso a uma rede de dados com incontáveis informações sem qualquer restrição, podendo realizar o cruzamento desses dados e verificar negócios realizados, inclusive, com terceiros que não façam parte do processo.

É desproporcional que alguém que nada tenha a ver com o processo passe a ser alvo indireto de uma pesquisa patrimonial dessa magnitude, sem sequer ter se defendido na ação envolvendo o credor e o devedor.

Além de ofender o devido processo legal, portanto, percebe-se que a ferramenta torna a execução extremamente desumanizada, ignorando a dignidade do devedor e servindo-se de uma busca incessante de meios executórios que não contribuem para um processo mais eficaz.

Fato é que não há situação que justifique ofensa à lei e à Constituição Federal. Para os processos de execução, a legislação já estabelece os limites, como, por exemplo, a impenhorabilidade do bem de família e a busca por uma execução menos onerosa possível ao executado, que respeite a sua dignidade.

É importante mencionar, ainda, que empresas devedoras em processo de execução também podem ser alvo da nova ferramenta, o que pode prejudicar a continuidade dos serviços prestados. Os princípios da liberdade econômica e da preservação da empresa estão previstos na Constituição Federal e têm o propósito de promover o cumprimento do fim social da atividade e assegurar a manutenção dos empregos, o que pode ser prejudicado com o uso do Sniper.

O Poder Judiciário não poderia fechar os olhos para tal proteção, mesmo porque o seu objetivo é satisfazer a obrigação da parte devedora, e não causar prejuízos excessivos às pessoas jurídicas, mantendo sua atividade funcionando e, por conseguinte, o próprio bem-estar econômico-social.

Como o Sniper é uma ferramenta para uso do judiciário, o sistema deveria se reservar ao que determina a legislação brasileira, ou seja, obedecer a hierarquia das normas para atuar de forma regular e respeitar os ditames constitucionais, atuando apenas na busca de dados realmente essenciais para o fim a que se destina, sem extrapolar os limites legais.

Resta evidente que o novo sistema não se compromete com a dignidade do devedor, tampouco se adequa à LGPD e parece atentar diretamente contra princípios constitucionais de máximo grau. É notável que o uso da ferramenta deve ser sopesado pelo judiciário, restringindo-se a casos muito específicos e deve ser usado com a máxima cautela, a fim de manter firmes as normas legais atinentes aos processos, mantendo o ordenamento jurídico equilibrado.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório GBA Advogados Associados, professor universitário, mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Paulista de Magistratura (EPM).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!