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Pragmatismo impõe revogação minimalista do teto antes do PLDO-2024

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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24 de janeiro de 2023, 8h00

"Eu não estou interessado em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia, nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto, ou oba-oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos, sonhos matinais

Eu não estou interessado em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente, romances astrais
A minha alucinação é suportar o dia a dia
E meu delírio é a experiência com coisas reais

(…)

Longe, o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia

Amar e mudar as coisas me interessa mais

(…)

Um preto, um pobre
Uma estudante, uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite, revólver: Cheira cachorro
Os humilhados do parque com os seus jornais

(…)

Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor e nossa vida"

(Belchior, 1976)

Há dias tenho estado impregnada da música "Alucinação" de Belchior. Somos um país de "pessoas cinzas normais" expostas ao terror que atenta abertamente contra a nossa frágil democracia.

Spacca
A "laranja mecânica" no Brasil, por vezes, veste verde-amarelo e emprega diuturnamente táticas de ultraviolência tanto simbólica, quanto real contra pretos, pobres, estudantes, mulheres sozinhas… Ainda segue exposta a fratura profunda, causada pela recente tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, porque alguns se recusam a respeitar a democrática alternância de poder e abertamente pugnam pela desconstrução da Constituição de 1988.

Contra quem quer que lhes pareça diferente, ameaçam com seus revólveres, para que, ao final, alguns corpos sejam disciplinarmente docilizados e até recolhidos (vivos ou mortos), mediante "cheira cachorro", que silencia e oculta a desigualdade. Enquanto isso, milhões passam fome e muitos dormem humilhados, em parques e outros espaços públicos, apenas cobertos "com os seus jornais".

"Suportar o dia a dia" é um desafio ainda mais alucinante para quem acompanha, com razoável nível de compreensão, o debate fiscal que delimita e, de certa forma, aprisiona no curto prazo o horizonte de construção das políticas públicas do país. Daí decorre uma asfixia paralisante na consecução intertemporal de serviços públicos essenciais, com risco de severa ineficácia de direitos fundamentais. É, por sinal, paradigmático o exemplo da falta de custeio suficiente para a proteção indígena, como se depreende do contraste entre as seguintes dimensões jurídico-fiscais:

1) Portaria GM/MS nº 28, de 20 de janeiro de 2023, que declara emergência em saúde pública de importância nacional em decorrência de desassistência à população Yanomami;

2) Contingenciamento de R$250 milhões da Secretaria Especial de Saúde Indígena, em setembro do ano passado, que impôs risco de grave comprometimento das suas atividades, na medida em que, segundo noticiado pela Agência Pública:

"O governo federal bloqueou R$ 250 milhões do orçamento destinado à saúde indígena e chegou a distribuir aos 34 distritos sanitários espalhados pelo país uma série de orientações sobre como economizar dinheiro até o final do ano. (…)
De acordo com a Nota Técnica número 51/2022 da Sesai, datada de 31 de agosto último, o bloqueio de R$ 250 milhões atingiu seis ações de governo, incluindo combustíveis, transporte, convênios com entidades sem fins lucrativos que fornecem mão de obra para a Sesai (cerca de 15 mil trabalhadores), com R$ 150 milhões, e obras de saneamento básico. O valor bloqueado corresponde a 15,6% da dotação orçamentária total prevista para a Sesai no ano inteiro (R$ 1,6 bilhão)".

3) Excesso de arrecadação verificado pelo governo federal, cuja receita foi superior a R$ 2 trilhões em 2022. Trata-se de resultado que, segundo noticiado pelo portal Poder 360, implicaria expansão de 8,8% perante a mesma base de 2021.

O cruzamento das notícias acima nos permite inferir que a calamitosa desassistência aos indígenas não decorreu de qualquer restrição real na capacidade de arrecadação federal. A bem da verdade, no ano passado, houve a opção por contingenciar cerca de 15% da dotação prevista para o órgão responsável por promover o respectivo serviço de saúde especializado, em tentativa de resguardar cumprimento do teto.

A despeito da necessidade incontroversa de proteção (cuja omissão, particularmente, no caso da população Yanomami tende a se configurar como hipótese de genocídio), restringiu-se contraditoriamente o custeio da política pública de saúde indígena, mesmo em um exercício financeiro com recorde expressivo de arrecadação federal.

É preciso reiterada e insistentemente apontar que, em 2022, o problema não foi financeiro, já que a receita da União superou as estimativas, mas, sim, orçamentário, sobretudo por força dos limites impostos pelo teto de despesas primárias, pela expansão de despesas às vésperas do processo eleitoral (a exemplo da Emenda 123) e da falseada subestimativa de despesas obrigatórias.

Agora, neste início de 2023, a declaração da emergência em saúde pública, motivada, entre outras circunstâncias, pelo registro da morte por subnutrição de 570 crianças Yanomami, tende a autorizar, na medida do estritamente necessário, o manejo de créditos extraordinários para cumprir o artigo 3º da Portaria GM/MS nº 28/2023. Todavia não deixa de ser irônico e cínico deixar o caos se instalar para que o Estado brasileiro apenas reaja à calamidade já tragicamente consumada. O teto de despesas primárias induz a esse tipo de comportamento fiscalmente irracional e humanitariamente irresponsável, porque frustra o custeio suficiente e ordinário de políticas públicas que constitucionalmente foram incumbidas como competências inadiáveis e incomprimíveis do poder público.

Ainda parafraseando Belchior, a alucinação que os profetas do terror fiscal anunciam é proporcional às fotos da fome e do desamparo indígenas. À beira do abismo, seguimos anestesiados em meio a tanta brutalidade e retrocesso.

O teto oculta e naturaliza algumas das maiores opções fiscais que impactam estruturalmente a dívida pública brasileira. Sua vigência em nosso país impede que se promova o debate sobre as razões pelas quais os muito ricos se recusam a pagar tributos conforme sua capacidade contributiva, a despeito de a necessidade de tal agenda ter sido suscitada mais uma vez no Fórum Econômico Mundial em Davos. Também resta praticamente interditada a reflexão acerca de quem beneficia do "sindicato do rentismo", como bem definiu André Roncaglia, porque institucionalmente não se consegue aprimorar o regime de metas de inflação e, por conseguinte, a forma como o Banco Central define a velocidade e a intensidade da taxa básica de juros.

"A violência da noite, (e) o movimento do tráfego" agravam a "solidão das pessoas dessas capitais", de forma a esconder tantas mazelas orçamentário-financeiras, algumas das quais respondem por importantes escolhas alocativas nos diferentes níveis de governo.

Cantava Belchior que seu delírio era a "experiência com coisas reais". Algo semelhante deveria nos acometer diante da iminente tarefa de rever as regras fiscais brasileiras. Há quem se deixe levar por devaneios teóricos, fantasias sofisticadas e até se iluda com a disponibilidade de um horizonte temporal que não existe, a não ser na mente de quem ainda parece preso a "bocejos e sonhos matinais".

Teorias e fantasias não vão enfrentar imediata e diretamente o risco de anomia social em que nos encontramos. Pragmaticamente, a primeira e maior agenda que temos diante de nós, como sociedade, é a revogação do teto de despesas primárias.

Durante o período de 2016 a 2022, a permanência do teto no ordenamento deu causa a redesenhos constitucionais sucessivos para abrir brechas curtas e acomodar tensões fisiológicas, sobretudo ampliando a margem fiscal do orçamento secreto. Vale lembrar: ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha rechaçado o manejo das emendas de relator, houve o deslocamento na LOA-2023 do assédio dessa alocação balcanizada, de curto prazo eleitoral, do locus RP-9 para o RP-2.

Estamos a apenas uma semana do início da próxima legislatura (2023-2027), que ocorrerá em 1º de fevereiro, de modo que o governo não pode se dar ao luxo de dispersar energia na sua relação com o Congresso Nacional. A realidade é que há uma muito estreita disponibilidade de tempo.

Não é, pois, objetivamente factível que o Executivo federal aguarde até agosto para enviar o projeto de lei complementar previsto nos artigos 6º e 9º da Emenda 126, de 21 de dezembro de 2022, para cumprir o desiderato de pautar a substituição do teto por um "regime fiscal sustentável" ainda a ser formulado.

Desde já, escoam prazos importantes que tendem a delimitar o núcleo decisório sobre o horizonte de médio prazo das políticas públicas. Enquanto a Emenda 126/2022 apenas franqueou exceções de curto fôlego para o presente exercício financeiro, qualquer projeção para 2024 e para os anos subsequentes demanda alteração no disfuncional arcabouço fiscal ainda vigente em nosso país.

Não é demasiado lembrar que, em 15 de abril, deverá ser enviado o projeto de lei de diretrizes orçamentárias para 2024, assim como, em 31 de agosto, serão enviados os projetos de lei de orçamento anual e de plano plurianual, respectivamente para o próximo exercício financeiro e para o quadriênio de 2024 a 2027.

O teto de despesas primárias da União sedimentou a rigidez orçamentária constitucionalmente e, com isso, impôs um agravamento estrutural da relação entre Executivo e Legislativo. Ao invés de aprimorar a ordenação de prioridades no ciclo orçamentário brasileiro, o teto apenas ampliou a demanda por alterações recorrentes da Constituição de 1988 em matéria fiscal, ainda que isso impusesse, concomitantemente, a majoração do custo de intermediação do próprio Congresso.

As mortes de indígenas agravam o diagnóstico da fome por ausência do Estado, onde ele é absolutamente indispensável. Eis a face mais trágica do descalabro fiscal em que nos encontramos. Afinal, qual é a razão de ser da ação governamental se ela não for capaz de estabelecer seu foco, segundo a bela síntese de Belchior, segundo a qual "amar e mudar as coisas me interessa mais"?

Tal como o cantor que me impregna a mente, "o meu delírio é a experiência com coisas reais", razão pela qual defendo a necessidade de que o Executivo seja pragmático e envie um projeto de lei complementar minimalista para revogação do teto, se possível ainda antes do PLDO/2024. A Lei de Responsabilidade Fiscal pode ser resgatada, em diálogo com a noção de "regime fiscal sustentável" (artigos 6º e 9º da EC 126/2022), assim como com o conceito de sustentabilidade da dívida pública (previsto nos artigos 163, VIII, 164-A e 165, §2º, da Constituição, com a redação dada pela Emenda 109/2021). Para tanto, importa restabelecer e aprimorar seu eixo de ação planejada e transparente fixado em torno das metas do PLDO e aderente ao médio prazo a ser concebido no PPA.

O teto é uma regra em vias de sepultamento e assim deve ser considerado, até para que não atrapalhe o processo de concepção das leis orçamentárias que regerão 2024 e o plano para o quadriênio 2024-2027. Insistir na sua sobrevivência farsesca é dar causa à ampliação da maior dívida pública factual que o país acumulou, em termos de déficit de dignidade humana. Afinal, quantas mortes evitáveis de cidadãos brasileiros seremos obrigados suportar adicionalmente para manter tal teto iníquo e mal concebido? Centenas de milhares de mortes se acumularam desde a prematura e irresponsável retomada do teto em 2021, durante o auge da segunda onda da pandemia da Covid-19, bem como outras milhares de mortes têm se sucedido com a fome e o desamparo dos brasileiros mais vulneráveis (cuja expressão mais dramática reside na população Yanomami e na fila dos ossos).

A revisão e a consolidação das regras fiscais brasileiras em uma codificação infraconstitucional, tal como defendida por José Roberto Afonso e Leonardo Ribeiro, são esforços que podem ser empreendidos, de modo subsequente à revogação do teto, dado que demandam aprofundado e detido debate no Congresso Nacional.

Cabe ao governo ter clareza de tais passos e ordenar as prioridades da agenda legislativa a ser pautada com o Congresso, para além de quaisquer outras distrações e alucinações, para que, inspirado em Belchior, siga "cumprindo o seu duro dever e defendendo o seu amor (à Constituição Cidadã) e nossa vida."

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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