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Consultor Jurídico

Lucas Klain: Irretroatividade à la carte da Lei 14.230/21

22 de janeiro de 2023, 15h13

Por Lucas Pedroso Klain

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O Informativo nº 1.065/2022 do Supremo Tribunal Federal [1] trouxe a tese fixada no julgamento do Tema 1.199 da Repercussão Geral, que tratava da (ir)retroatividade das previsões trazidas pela Lei Federal nº 14.230/2021 naquilo que fossem mais benéficas aos réus das ações ajuizadas por supostos atos de improbidade.

Conforme consta do citado Informativo, a tese seria a seguinte:

"É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se — nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA — a presença do elemento subjetivo — DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 — revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa —, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei".

O resumo da tese traz interessantes fundamentos, dos quais lançou mão o Plenário do Supremo Tribunal Federal, para fins de fixá-la. Vejamos.

A partir do advento da Lei 14.230/2021 (nova Lei de Improbidade Administrativa – LIA) — cuja publicação e entrada em vigor ocorreu em 26.10.2021 —, deixou de existir, no ordenamento jurídico, a tipificação para atos culposos de improbidade administrativa.

A alteração promovida pelo legislador no texto original da Lei 8.429/1992, no sentido de suprimir a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, é clara e plenamente válida, pois a própria Constituição Federal delega à legislação ordinária a forma e tipificação dos atos ímprobos, assim como a gradação das sanções constitucionalmente estabelecidas (CF/1988, artigo 37, §4º).

Nada obstante, com o advento da nova lei, o agente público que culposamente causar dano ao erário, embora não mais responda por ato de improbidade administrativa, poderá responder civil e administrativamente pelo ato ilícito.

Por força do artigo 5º, XXXVI, da CF/1988, a revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, promovida pela Lei 14.230/2021, é irretroativa, de modo que os seus efeitos não têm incidência em relação à eficácia da coisa julgada, nem durante o processo de execução das penas e seus incidentes.

O princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (CF/1988, artigo 5º, XL) não tem aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade administrativa, por ausência de expressa previsão legal e sob pena de desrespeito à constitucionalização das regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos com flagrante desrespeito e enfraquecimento do direito administrativo sancionador.

Referido princípio baseia-se em particularidades do direito penal, o qual está vinculado à liberdade do criminoso (princípio do favor libertatis), fundamento inexistente no direito administrativo sancionador. Trata-se de regra de exceção que, como tal, deve ser interpretada restritivamente, prestigiando-se a regra geral da irretroatividade da lei e a preservação dos atos jurídicos perfeitos, especialmente porque, no âmbito da jurisdição civil, prevalece o princípio tempus regit actum.

Incide a Lei 14.230/2021 em relação aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência da Lei 8.429/1992, desde que não exista condenação transitada em julgado, cabendo ao juízo competente o exame da ocorrência de eventual dolo por parte do agente.

Diante da revogação expressa do texto legal anterior, não se admite a continuidade de uma investigação, uma ação de improbidade, ou uma sentença condenatória por improbidade com base em uma conduta culposa não mais tipificada legalmente.

Entretanto, a incidência dos efeitos da nova lei aos fatos pretéritos não implica a extinção automática das demandas, pois deve ser precedida da verificação, pelo juízo competente, do exato elemento subjetivo do tipo: se houver culpa, não se prosseguirá com o feito; se houver dolo, prosseguir-se-á. Essa medida é necessária porque, na vigência da Lei 8.429/1992, como não se exigia a definição de dolo ou culpa, muitas vezes a imputação era feita de modo genérico, sem especificar qual era o elemento subjetivo do tipo.

Nesse contexto, todos os atos processuais até então praticados são válidos, inclusive as provas produzidas, as quais poderão ser compartilhadas no âmbito disciplinar e penal, assim como a ação poderá ser utilizada para fins de ressarcimento ao erário.

Os prazos prescricionais previstos na Lei 14.230/2021 não retroagem, sendo aplicáveis a partir da publicação do novo texto legal (26.10.2021).

Isso se dá em respeito ao ato jurídico perfeito e em observância aos princípios da segurança jurídica, do acesso à Justiça e da proteção da confiança, garantindo-se a plena eficácia dos atos praticados validamente antes da alteração legislativa.

Com efeito, a inércia nunca poderá ser caracterizada por uma lei futura que, diminuindo os prazos prescricionais, passe a exigir o impossível, isto é, que, retroativamente, o poder público — que foi diligente e atuou dentro dos prazos à época existentes — cumpra algo até então inexistente. Por outro lado, a teor do que decidido pela Corte no Tema 897 de repercussão geral, permanecem imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na LIA.

Com base nesses entendimentos, o Plenário, por unanimidade, ao apreciar o Tema 1.199 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário para extinguir a ação, e, por maioria, acompanhou os fundamentos do voto do ministro Alexandre de Moraes (relator). Vencidos, parcialmente e nos termos de seus respectivos votos, os ministros André Mendonça, Nunes Marques, Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

A partir dos fundamentos apresentados no Informativo n. 1065/2022, é que elaboraremos respeitosa crítica sobre a conclusão da Suprema Corte.

A primeira parte da tese fixada refere-se à constitucionalidade da Lei firmar que atos ímprobos somente podem se configurar quando presente o elemento subjetivo. O agir culposo não mais configura ato ímprobo e isto também é constitucional, haja vista "a própria Constituição Federal delega[r] à legislação ordinária a forma e tipificação dos atos ímprobos".

Com acerto o Supremo Tribunal Federal estabeleceu ser "necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se  nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA  a presença do elemento subjetivo  DOLO". A uma porque, de fato, a Constituição delega à lei ordinária a forma e tipificação dos atos ímprobos; a duas, porque o ato culposo, a despeito de nunca ser questionado em face da Constituição, nunca poderia ensejar responsabilização por improbidade, que decorre de má-fé, desonestidade, nunca de imprudência, negligência ou imperícia. Não se é desonesto, vil, imoral culposamente.

Fato é que o STF deixou escapar uma oportunidade para definir se a improbidade pode ser reconhecida apenas ante a presença do dolo indireto ou se, conforme nos parece, a Lei 12.230/2021 exigiria a presença do dolo direto. Talvez o Superior Tribunal de Justiça quando sobre isso se pronunciar defina, principalmente porque se trata da interpretação da Lei Federal, e não da Constituição propriamente dita. Sendo assim, o STF poderia ter ido além da óbvia conclusão de que não há mais improbidade culposa e conferido maior segurança jurídica a questão da improbidade dolosa.

A partir da segunda parte da tese fixada é que nos parece ter a Corte Suprema interpretado a Lei à luz da Constituição de uma maneira não muito ortodoxa. Passamos, então, a tecer comentários e reflexões sobre suas conclusões acerca do tema.

A nós pareceu que o STF buscou temperar a retroatividade in mellius com a eficácia da coisa julgada, decidindo que não há retroação sumária e imediata para os casos de improbidade e que, por isso mesmo, a nova lei, no que tange aos atos ímprobos culposos, somente retroagiria para alcançar casos ainda não transitados em julgado.

Entendeu, o Supremo, que o princípio da retroação da lei penal mais benéfica teria fundamento no princípio do favor libertatis e que este, uma vez não se estendendo ao âmbito da jurisdição civil, impede a retroação da norma mais benéfica que diga respeito ao direito administrativo sancionador.

Duas observações se fazem imprescindíveis neste ponto.

Por primeiro, para além do favor libertatis, a retroatividade da lei penal mais benéfica está fundada em questões humanitárias, de justiça, equidade e de isonomia. Ademais disso, há também a questão de que a lei mais nova visa sempre ajustar a valoração ético-social do fato e/ou da sanção e, por isso mesmo, não se justifica manter a lei mais severa se não mais relevante do ponto de vista do direito sancionador [2].

Em segundo lugar, a nova lei jogou uma pá de cal sobre discussão antiga na doutrina, estabelecendo definitivamente que a improbidade tem natureza sancionatória, repressiva e não constitui ação civil. O argumento de que se trata de responsabilidade civil desrespeita a decisão soberana do Parlamento brasileiro, a quem a Constituição conferiu competência para estabelecer "a forma e tipificação dos atos ímprobos, assim como a gradação das sanções constitucionalmente estabelecidas", como reconheceu o próprio Supremo Tribunal Federal no que toca à questão da modalidade culposa de improbidade.

O entendimento do Supremo buscou dar maior relevo às "regras rígidas de regência da Administração Pública e [à] responsabilização dos agentes públicos corruptos com flagrante desrespeito e enfraquecimento do direito administrativo sancionador" que aos próprios direitos fundamentais também estatuídos constitucionalmente. Argumentou-se, ainda, que a retroação das normas mais benéficas aos casos já transitados em julgado violaria o disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição.

Entretanto, estranhamos a interpretação dos direitos fundamentais como realizada no caso, porquanto, embora voltados para garantia dos indivíduos contra o Estado [3], os direitos fundamentais da coisa julgada e do ato jurídico perfeito foram utilizados exatamente pelo Estado contra o indivíduo.

A relevância foi dada ao combate à corrupção, que é legítimo e indispensável. Porém, isso poderia dar-se às custas dos direitos fundamentais?

Não bastasse isso, a decisão do Supremo Tribunal, a despeito de afirmar que a Lei nº 14.230/2021 não retroagiria, afirmou que "diante da revogação expressa do texto legal anterior, não se admite a continuidade de uma investigação, uma ação de improbidade, ou uma sentença condenatória (…) com base em uma conduta culposa não mais tipificada legalmente". Noutros termos: a lei não retroage, mas retroage. E quando retroage, a retroação é mitigada, ao passo que o acórdão traz recomendação aos juízos:

"(…) a incidência dos efeitos da nova lei aos fatos pretéritos não implica a extinção automática das demandas, pois deve ser precedida da verificação, pelo juízo competente, do exato elemento subjetivo do tipo: se houver culpa, não se prosseguirá com o feito; se houver dolo, prosseguir-se-á".

A recomendação, segundo o Supremo, tem sua razão de ser: "(…) porque, na vigência da Lei 8.429/1992, como não se exigia a definição de dolo ou culpa, muitas vezes a imputação era feita de modo genérico, sem especificar qual era o elemento subjetivo do tipo".

Não se exigia? A petição inicial não deveria trazer os fatos e fundamentos dos pedidos? O dolo ou a culpa não repercute diretamente a conduta do agente e no grau de sua culpabilidade? Se não houver a apresentação clara da conduta a petição inicial não deveria ser rejeitada por inépcia, nos termos do CPC e da própria Lei 8.429/1992?

Há, sim, um dever jurisdicional que se interliga ao decidido pela Suprema Corte do país, mas esse dever é de julgar a causa nos seus limites subjetivos e objetivos. Se foi, portanto, argumentado culpa e dolo, subsiste a análise e julgamento do ato doloso. Se não houve argumentação de ato doloso, a extinção se impõe e não compete ao juízo imiscuir-se na análise de elemento que não consta da exordial. Se, ainda mais grave, há indeterminação a respeito do dolo ou culpa, de rigor a determinação da emenda ou, então, a extinção do feito sem julgamento de mérito, ante a inépcia da inicial.

Já em relação aos novos prazos prescricionais, acertada a decisão. Isso porque, embora prazo prescricional se refira a direito material, sua umbilical relação com o processo justifica a irretroatividade para casos anteriores à vigência da Lei nº 14.230/2021 e isso, como bem fundamentado, "em observância aos princípios da segurança jurídica, do acesso à Justiça e da proteção da confiança, garantindo-se a plena eficácia dos atos praticados validamente antes da alteração legislativa".

No mais, em razão da aplicação imediata da lei, os prazos passaram a contar imediatamente a partir da vigência da nova Lei e, portanto, alcançarão prescrição para o futuro, caso ocorrido o lapso temporal previsto.

Por tudo isso é que a (ir)retroatividade da Lei 14.230/2021, tal como decidida, nada mais é que uma retroatividade à la carte, ao menos na perspectiva acima apresentada.

 


[2] Neste sentido: PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal. 9. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 198/199.

[3] Dentre toda a doutrina, citamos Luthar Michael e Marton Morlok (in Direitos Fundamentais, 2016, p. 48): "Os direitos fundamentais não se dirigem contra qualquer pessoa, mas apenas contra o Estado e contra os entraves à liberdade por ele controlados ou controláveis. Eles garantem um determinado grau de liberdade em relação ao Estado e, ao mesmo tempo, determinados aspectos de liberdade graças ao Estado. A importância clássica dos direitos fundamentais reside na prevenção ou na limitação das ingerências do Estado".

E, também, o professor Oscar Vilhena Vieira (in Direitos Fundamentais, 2017, p. 35-36): "De forma genérica (…) pode-se dizer que o Estado tem obrigação não apenas de respeitar os direitos fundamentais, como também de garanti-los".