Opinião

​​​​​​​Arbitragem e o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato

Autores

  • Mauricio Portugal Ribeiro

    é sócio do Portugal Ribeiro Advogados especialista na estruturação e regulação de projetos de infraestrutura autor de vários livros e artigos sobre esse tema mestre em Direito pela Harvard Law School ex-professor de Direito de Infraestrutura da FGV-RJ.

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  • Pedro Pamplona Cotia

    é advogado e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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21 de janeiro de 2023, 17h17

Entre os profissionais que atuam nos setores de infraestrutura, está cada vez mais claro o protagonismo das arbitragens para dar solução a pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro formulados por concessionárias [1].

Este texto parte desta constatação para abordar uma questão específica que terá de ser enfrentada frequentemente nesse contexto e que, ao que nos consta, passou despercebida até aqui: qual será o procedimento arbitral adequado para acomodar a previsão, constante em contratos de concessão e de PPP, que atribui ao poder concedente a escolha da forma de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato (como a revisão tarifária, extensão de prazo, redução ou reprogramação de investimentos e pagamento direto pelo poder concedente à concessionária)?

O entendimento dos autores deste texto é o de que os procedimentos arbitrais deverão promover uma cisão das decisões sobre o reequilíbrio a serem tomadas pelos árbitros. Explica-se.

Qualquer processo de reequilíbrio econômico-financeiro é composto por ao menos três etapas fundamentais: 1) a investigação sobre a caracterização do fato como evento de desequilíbrio [2]; 2) a mensuração do desequilíbrio (por exemplo, mediante apuração do valor presente do desequilíbrio econômico-financeiro na data-base do contrato); 3) a escolha da forma de compensação a ser adotada e a conversão do desequilíbrio apurado para esta forma (por exemplo, em pagamento de indenização, extensão de prazo ou redução de investimentos).

As duas primeiras etapas são inteiramente apropriadas pelo procedimento arbitral e as suas atividades preparatórias são realizadas em fases processuais conhecidas, que compreendem: 1) a avaliação da ocorrência dos eventos e da alocação do respectivo risco pelo contrato ou pela lei a uma ou outra parte e 2) a mensuração do desequilíbrio produzido por esse evento. Percorridas as fases postulatória e instrutória  quer dizer, apresentadas alegações iniciais, resposta e réplica, realizados os trabalhos periciais e oferecidas alegações finais  o tribunal arbitral terá todas as condições de decidir a respeito 1) da existência do direito ao reequilíbrio para cada pleito que integra a arbitragem e 2) dos respectivos montantes de desequilíbrio.

Imagine-se, por exemplo, o evento "aumento extraordinário e imprevisível do preço dos insumos asfálticos", objeto de pleito de reequilíbrio comum no setor das concessões rodoviárias. Expostos pelas partes os argumentos técnicos (a respeito da configuração do fato) e jurídicos (acerca da alocação do risco do mencionado evento), e apresentada pela perícia designada pelos árbitros a avaliação da extraordinariedade do evento e dos impactos que ele produz na concessão, o tribunal terá condições de decidir, por exemplo, que há direito a reequilíbrio e que o desequilíbrio a ser compensado corresponde ao valor presente "x" na data-base  do contrato.

Ocorre que, uma vez que se conclua pela existência do direito ao reequilíbrio e que se mensure o valor presente do desequilíbrio em determinada data-base, será preciso escolher a forma de compensação a ser adotada e converter para esta forma o desequilíbrio apurado  por exemplo, será preciso transformar o valor presente do desequilíbrio na data-base contratual em redução de investimentos, em pagamento de indenização, em extensão de prazo etc. Estas são atividades necessárias para que se complete a decisão arbitral de condenação do poder concedente à compensação pelo desequilíbrio econômico-financeiro que afetou o contrato de concessão.

Nestes casos, o que nos parece adequado é que sejam cindidas as decisões sobre o reequilíbrio. Primeiro, o tribunal arbitral decidirá pela existência do direito ao reequilíbrio no montante que houver sido apurado a valor presente em determinada data-base. Após, será preciso colher a opção do poder concedente a respeito da forma de reequilíbrio. Feito isso, deverá ser realizada no procedimento arbitral, com apoio dos peritos designados pelos árbitros, a conversão do desequilíbrio apurado para a forma de reequilíbrio do contrato que tiver sido indicada pelo poder concedente. Realizada a conversão do desequilíbrio para a "moeda" escolhida, finalmente será possível ao tribunal arbitral completar a sentença e determinar o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão ou de PPP em unidades da forma de reequilíbrio indicada pelo poder concedente.

Há, porém, dois cuidados relacionados à escolha da forma de reequilíbrio pelo poder concedente, necessários à garantia da efetividade das decisões arbitrais e do próprio direito ao reequilíbrio econômico-financeiro, que a condução desse procedimento pelos árbitros deve observar.

Em primeiro lugar, é preciso que se assinale prazo para a escolha da forma de reequilíbrio pelo poder concedente e que se estipule que, transcorrido este prazo sem que seja apresentada a manifestação, o reequilíbrio deverá ser realizado mediante o pagamento de indenização. Como o reconhecimento do direito ao reequilíbrio cria uma dívida contratual, que pode ser paga por qualquer forma admitida em direito (inclusive à vista e em dinheiro), caso o poder concedente não se manifeste no prazo conferido pelos árbitros, não resta saída senão o reequilíbrio assumir a forma de indenização em pecúnia  esta é, afinal, a forma ordinária de pagamento de dívidas contratuais. No caso de silêncio do poder concedente, portanto, o pagamento de indenização é a forma a ser considerada pelos árbitros para completar a decisão de condenação do poder concedente à compensação pelo desequilíbrio econômico-financeiro.

Em segundo lugar, a escolha da forma de reequilíbrio pelo poder concedente deve observar alguns limites. Como a lei e os contratos administrativos garantem às partes o direito à manutenção do equilíbrio econômico e financeiro do contrato, o principal limite que conforma a atuação do poder concedente exige que a sua escolha promova sob essas duas óticas o reequilíbrio do contrato de concessão ou PPP. E, como as formas de reequilibrar o contrato (extensão de prazo, redução de investimentos, pagamento de indenização etc.) não são neutras dos pontos de vista econômico e financeiro [3], será sempre preciso buscar, consideradas as peculiaridades do caso concreto, a solução que promova o reequilíbrio completo, quer dizer, sob essas duas perspectivas.

No caso das arbitragens, note-se que o mero fato de a concessionária ter buscado o procedimento arbitral é evidência de que ela 1) provavelmente já despendeu os recursos necessários para lidar (ao menos em parte) com o evento cuja ocorrência é risco atribuído ao poder concedente, bem como de que 2) percorreu a via administrativa na tentativa de ver reconhecido o seu direito ao reequilíbrio. Assim, a efetivação do reequilíbrio do contrato por força da decisão arbitral ocorrerá muitos anos após a concessionária ter suportado financeiramente as consequências do evento de desequilíbrio. Essa constatação mostra que, em diversos casos, não será adequada a opção de promover o reequilíbrio, por exemplo, integralmente por meio da extensão do prazo do contrato:  por mais que esta alternativa permita o reequilíbrio econômico, ela pode ser insuficiente para levar ao reequilíbrio financeiro do contrato e por isto causar graves repercussões sobre a prestação dos serviços.

Justamente para lidar com essas questões, há contratos que definem balizas para a escolha da forma de reequilíbrio pelo poder concedente. Por exemplo, contratos federais de concessão rodoviária mais recentes [4] preveem que a ANTT, ao escolher os meios para a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, deve necessariamente levar em consideração a periodicidade e o montante dos pagamentos vencidos e vincendos a cargo da concessionária relativos aos contratos de financiamento por ela celebrados para a execução do contrato. Há também o exemplo do contrato de concessão patrocinada da Linha 4 do metrô de São Paulo, o qual estipula que o exercício pelo poder concedente da prerrogativa de escolher a forma do reequilíbrio deve sempre buscar assegurar a preservação da capacidade da concessionária de pagamento dos financiamentos contraídos para realizar os investimentos necessários à prestação dos serviços.

De todo modo, a aptidão para promover o reequilíbrio econômico e financeiro deve orientar a escolha da forma de reequilíbrio pelo poder concedente independentemente de previsão específica no contrato, em vista da garantia legal e contratual do direito das partes à manutenção do equilíbrio econômico e financeiro do contrato.

Por fim, é preciso reconhecer que, nos casos em que poder concedente e concessionária houverem celebrado termo aditivo (ou em que estiverem em vias de fazê-lo) pactuando a relicitação da concessão, não resta alternativa para promover o reequilíbrio econômico-financeiro, senão o pagamento de indenização. Isto porque, diante da perspectiva de extinção antecipada do contrato de concessão, em curto prazo, por força do processo de relicitação, as demais alternativas para reequilibrar o contrato restam inviabilizadas. Nesses casos, portanto, por conta do processo de relicitação, o pagamento de indenização é a forma de reequilíbrio ser considerada pelos árbitros para integração da decisão arbitral.

 


[1] Eduardo Jordão, por exemplo, descreveu esse fenômeno como uma das consequências dos excessos que têm sido cometidos por órgãos de controle: o receio que gestores públicos têm de decidir pedidos de reequilíbrio, temendo eventuais sanções mesmo em casos cujas soluções são relativamente simples de acordo com as regras aplicáveis, estaria levando à inflação artificial do número de arbitragens. O texto pode ser lido em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/arbitragem-em-tempos-de-canetas-apagadas-25052022.

[2] Ainda que seja este o campo em que a análise jurídica se faz mais presente, é comum que sejam necessários insumos de outras áreas do conhecimento para que se determine se determinado evento pode ou não ser caracterizado como um dos eventos cujo risco é distribuído pelo contrato/lei. Por exemplo, uma análise econômica e estatística pode ser necessária para determinar se a variação dos preços de determinado insumo necessário a uma concessão pode ser considerada como extraordinária e imprevisível, de modo a atrair a incidência do risco relativo aos conceitos (jurídicos) afetos à chamada álea extraordinária, alocado, como regra, ao poder concedente.

[3] A exposição do problema dos reequilíbrios incompletos e a sugestão de como esse problema pode ser resolvido foram objeto do seguinte artigo, de um dos autores deste texto: "Reequilíbrios incompletos de contratos de concessão e PPP: reequilíbrio econômico (que não caracteriza reequilíbrio financeiro) e reequilíbrio financeiro (que não caracteriza reequilíbrio econômico)". O artigo, de autoria de Maurício Portugal Ribeiro, pode ser lido em https://www.portugalribeiro.com.br/wp-content/uploads/reequilibrios-incompletos.pdf.

[4] É o caso dos contratos de concessão das rodovias BR-163/MT; BR-116/465/493/RJ/MG; BR-116/101/SP/RJ e BR-153/TO/GO, BR-080/GO, BR-414/GO.

Autores

  • é advogado especializado em contratos de concessões e PPPs, sócio de Portugal Ribeiro Advogados e autor do livro Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos (Editora Atlas, São Paulo, 2011) e Comentários à Lei de PPP – Fundamentos econômico-jurídicos (em coautoria com Lucas Navarro Prado; Malheiros Editores, São Paulo, 2011).

  • é advogado e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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