Opinião

Americanas: na briga de dois Golias, Davi teria lado certo — o do BTG Pactual

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19 de janeiro de 2023, 11h16

Time is money.

E embora tempo seja dinheiro sempre, poucas coisas revelam tão vividamente esse adágio quanto a iminência da quebra de uma empresa: afinal, pela mesmíssima premissa que governa (ou deveria governar) quase tudo neste mundo — a escassez —, o credor que chegar primeiro ao insolvente patrimônio do devedor terá maiores chances de não sofrer prejuízo ou de sofrer um prejuízo menor, enquanto aquele que se demorar inexoravelmente ficará a ver navios.

A divulgação pelas Americanas, na última semana, de que um erro contábil teria causado um rombo de mais de R$ 20 bilhões em suas contas (fala-se, agora, em até R$ 40 bilhões) varreu a Faria Lima com calafrios do tipo que se deve sentir ao se testemunhar a ressaca marítima que precede um grande tsunami. E quem não corresse para as montanhas, isto é, quem não fizesse tempestivamente a lição de casa necessária para assegurar sua fatia sobre o patrimônio da varejista, não só ficaria a ver navios como muito provavelmente seria engolido com eles.

Pelo que consta de documentos judiciais, o instinto de sobrevivência do BTG Pactual estava afiado: o banco comunicou às Americanas que reputava o fato noticiado causa suficiente para a deflagração de cláusulas contratuais de antecipação de vencimento de obrigações e, com aparente fundamento contratual, utilizou recursos da companhia que estavam sob sua custódia para amortizar as dívidas agora vencidas. Era isso ou, (1) na melhor das hipóteses, encarar com a maior exposição possível um previsível pedido de recuperação judicial que muito provavelmente se converteria num imbróglio de difícil solução; (2) na pior das hipóteses, assistir ao patrimônio das Americanas ser devorado pelos demais credores ou esvaziado pelos acionistas.

E o desdobramento mais provável se confirmou: as Americanas apresentaram ao Judiciário fluminense um pedido de tutela cautelar preparatória para o requerimento da recuperação judicial. Incluído na Lei de Recuperação de Empresas (Lei nº 11.101/2005) pela reforma de 2020 (Lei nº 14.112/2020), em regra, esse instituto funciona assim: para que não tenha que embarcar imediatamente num processo de recuperação judicial — sempre gerador de alguns riscos particulares —, ou para que possa preparar esse embarque sem atabalhoamento, a empresa em crise que preencha os requisitos para eventualmente pedir recuperação judicial pode requerer ao Judiciário que suspenda todas as execuções promovidas por seus credores pelo prazo de até 60 dias, para que haja estímulos de parte a parte para negociar.

Contudo, ao que consta, o pedido das Americanas ia além do que autoriza a lei: a companhia queria que, além das execuções judiciais, o Judiciário suspendesse também medidas extrajudiciais de satisfação de créditos (como a compensação) e determinasse aos credores que já tivessem tomado tais medidas — caso do BTG — que devolvessem os recursos que tivessem embolsado. E em que pese fossem carentes de fundamento legal, esses pedidos foram acolhidos pelo Judiciário, e o BTG deveria imediatamente pagar R$ 1,2 bilhão às Americanas.

O banco se enfureceu. No (contundente) recurso de agravo de instrumento que interpôs perante o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, dois argumentos se destacam: o de que a decisão determinaria uma expropriação de R$ 1,2 bi com total desrespeito ao devido processo legal, e, principalmente, o de que a recuperação judicial (e, portanto, seus atos preparatórios) somente poderia socorrer empresas que caíram em crise por razões imponderáveis e escusáveis — e esse, para o BTG, não seria o caso das Americanas, que apenas teriam se complicado porque enveredaram por um caminho que tem um nome tão antigo quanto o Direito: o da fraude contra credores.

Em que pese a desembargadora sorteada para relatar o recurso do BTG não tenha atendido o pedido do banco de tutela de urgência para suspender a decisão de primeiro grau, há notícia de que uma nova decisão liminar de segunda instância, proferida em sede de mandado de segurança impetrado pela instituição financeira, determinou que o banco não terá de devolver o montante compensado imediatamente, mas o valor deverá permanecer intocado em conta bancária até o julgamento do agravo de instrumento.

Fato é que, qualquer que seja o desfecho da disputa judicial, o BTG parece estar coberto de razão.

É verdade que a costumeira multiplicidade de causas para a crise de uma empresa pode incluir, e geralmente inclui, alguma medida de culpa da gestão. Tanto assim o é que a Lei de Recuperação de Empresas optou por não fazer dessa dimensão de culpabilidade um impeditivo à recuperação judicial não só porque geralmente é difícil cravar qual fator tenha sido determinante para a derrocada — uma coisa leva a outra, e outra leva a uma, e de repente a empresa está insolvente –, mas igualmente porque o legislador entendeu que deve haver uma mínima participação da sociedade no risco do negócio se essa mesma sociedade dele se beneficia.

O caso das Americanas, porém, é diferente. Ao que tudo indica, a companhia tem caixa e recebíveis para se sustentar, e tem, indiscutivelmente, acionistas de lastro. O único fator que desencadeou a crise de múltiplas execuções e medidas protetivas dos credores, as quais meteram a companhia numa situação de insolvência atual ou iminente, foi, exclusivamente, a publicização da má-gestão contábil — e uma má-gestão que, se não foi dolosa, no mínimo decorreu de uma negligência inescusável a uma companhia do porte das Americanas e que tem, direta ou indiretamente, acionistas relevantes que já estiveram envolvidos em confusões matemáticas semelhantes.

Daí porque, de um ponto de vista jurídico, não parece exagerado que o BTG chame a tudo isso de fraude, e porque tenha razão ao sustentar que, por essa razão, as Americanas não podem se socorrer da recuperação judicial e de seus favores preliminares. É princípio geral de direito que a ninguém é dado se beneficiar de sua torpeza, e, além disso, a própria Lei de Recuperação de Empresas prevê, ainda que em posição topográfica inadequada (artigo 51-A, § 6º, isto é, entre as disposições relacionadas aos atos de constatação do estado da empresa que o juiz pode determinar previamente ao deferimento do pedido de recuperação judicial — o que, de toda forma, não impede a sua aplicação analógica ao caso das Americanas) que o juiz indeferirá o pedido de recuperação judicial se constatar propósito fraudulento. Com efeito, parece-nos que o Judiciário não pode permitir que as Americanas e seus acionistas, que se beneficiaram ao longo de anos de uma contabilidade anômala que inflava resultados em benefício próprio, pretendam agora transferir as consequências de seus atos a seus credores por meio do processo de recuperação judicial enquanto desfrutam os dividendos artificialmente produzidos.

Finalmente, o BTG também está corretíssimo ao dizer que a decisão de primeira instância determina uma expropriação de bens sem o devido processo legal. A compensação realizada pelo banco com recursos das Americanas custodiados pelo próprio BTG tinha, aparentemente, fundamento contratual. Como, portanto, as dívidas foram pagas (por meio de compensação), em fato jurídico perfeito e acabado (artigo 368 do Código Civil), os recursos passaram a integrar o patrimônio do BTG; desse modo, a decisão que determina ao banco que "devolva" os valores não teria natureza restitutiva, mas (des)constitutiva, isto é, expropriatória ou condenatória de pagamento. Em qualquer caso, uma vez que proferida em via inadequada e sem observar os procedimentos legais necessários à expropriação ou à condenação ao pagamento, viola diversos dispositivos do Código de Processo Civil de 2015 e mesmo da Constituição Federal — notadamente, o artigo 5º, incisos LIV e LV.

Nessa briga de dois gigantes Golias, portanto, em benefício da segurança jurídica e até mesmo da decência empresarial, Davi teria lado certo: o do BTG Pactual.

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