Opinião

A juridicidade da portaria de criação da polícia institucional do MPU

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11 de janeiro de 2023, 15h17

Como delimitação do objeto deste artigo, realizar-se-á uma análise do poder regulamentar do procurador-geral da República (PGR) para a edição da Portaria PGR/MPU nº 202, de 31 de dezembro de 2022, segundo a qual criou e regulamentou a polícia institucional no âmbito do MPU, aduzindo, como conclusão, a (in)existência de substrato normativo autorizador para a confecção deste regulamento.

A teoria do poder regulamentar é secular, prevista, por exemplo, já na constituição do Império. Nascida no seio do Poder Executivo, haja vista a função precípua de execução das leis, hodiernamente é indubitável o uso da teoria pelos demais atores institucionais.

Não há como precisar especificamente o ano de criação do Estado-nação, mas desde tempos imemoriais que estudiosos dos mais variados quilates estudam a sua estrutura interna e qual a melhor forma de executar as suas ações. A semente germinadora pode ter sido plantada pelo filósofo Aristóteles, com o princípio de trias politica, mas foi com Montesquieu, na sua teoria da separação dos poderes, que se teve a primeira ideia de como cada função deveria ser exercida e quais os contornos a ser dado.

Em que pese o longo período de transformação desde o Espírito das Leis até os dias atuais, observa-se atualmente, na grande maioria das constituições espalhadas pelo mundo, que cada Estado tem três funções ou poderes constituídos para reger o país: Legislativo, Executivo e Judiciário.

O Ministério Público, a depender do ordenamento, está inserido dentro da estrutura do Poder Executivo — modelo presente até a promulgação da constituição de 1988 — ou funcionando como instituição sui generis, dotada de autonomia funcional, administrativa e financeira.

Com a delimitação clara do que cada poder/função pode realizar, surge a preocupação de como concretizar o que foi pensando e normatizado em lei para trazer para o campo da aplicabilidade. O Poder Executivo, o Poder Judiciário e até mesmo o Ministério Público não podem, como regra geral, editar lei modificando o ordenamento jurídico, com a criação de direitos e obrigações. Cabe a esses atores editarem atos infralegais para destrinchar o que foi abstratizado pelo legislador, atuando dentro do círculo permitido pela lei.

É a partir dessa ideia, que se complementa como uma fechadura perfeita, que surge o regulamento e as suas diversas espécies: a ligação entre dois pontos — entre o que é pensado pelo legislador e o que precisa ser executado pelos atores institucionais.

Nessa senda, é possível entender o regulamento administrativo como verdadeira fonte do direito, estando abaixo da lei [1]. Para Ana Raquel Gonçalves Moniz, professora da Universidade de Coimbra, os regulamentos possuem "notas definidoras", sendo caracterizados como atos normativos, "com um valor infra-legal («força de regulamento»), já que […] os regulamentos administrativos consubstanciam normas […]" [2].

Diogo Freitas do Amaral, por seu turno, afirma que o regulamento possui um papel essencial nos Estados modernos, desincumbindo o parlamento de ações específicas, deixando a cargo do executivo, e dos demais atores institucionais, a tomada de decisões técnicas para adaptação das mudanças constantes [3].

Nessa veste, é possível, a partir do contorno delineado, traçar a diferença entre lei e regulamento. Na lei, além de advir do parlamento, possui densidade normativa muito maior, com a capacidade de mudar e estabelecer novas regras jurídicas de forma ampla. Já o regulamento, não possui densidade normativa e muito menos deve inovar no ordenamento jurídico. Além disso, a fonte de onde se extrai a sua força é diferente: na lei, a Constituição é o suporte e delimitador da atuação do legislador; já no regulamento, a lei é o retrovisor orientador da Administração para as regras (técnicas) formuladas para reger situações específicas. Sobranceira a essa lógica, quando o regulamento é editado sem qualquer habilitação legislativa prévia, nos deparamos com os regulamentos autônomos [4].

Após uma longa análise sobre os principais aspectos dos regulamentos, Jorge Manuel Coutinho conceitua regulamento administrativo como sendo "norma escrita, geral e abstrata, por via de regra, subordina à lei, emanada por uma autoridade administrativa, ou por uma entidade privada no desempenho de uma função público-normativa" [5].

Já para Luiz Pedro Pereira Coutinho, a questão que se coloca é saber qual a verdadeira relação entre a lei e os atores institucionais, e qual a justificativa de se construir uma relação "positiva" e "negativa" de subordinação da administração em relação à lei [6].

Na visão do professor Luiz Pedro Pereira Coutinho, as respostas dessas indagações passam pela compreensão do verdadeiro significado do princípio da legalidade administrativa, "daquilo que se exprime e concretiza e, por isso, daquilo que exige" [7].

Não é de hoje a problemática do alcance normativo dos sujeitos institucionais em relação ao seu poder regulamentar, sobretudo em relação à autonomia (independência) do quanto se pode fazer, tendo cada ordenamento constitucional construído uma resposta [8].

A compreensão dessa problemática passa pela análise de duas tradições constitucionais: "a revolucionária francesa" e a "monarquia limitada germânica". Isso porque na França existia o movimento de subordinar toda e qualquer atividade da administração à lei, enquanto na Alemanha observa-se que o movimento foi em sentido contrário [9]. Além disso, observa-se que na França o princípio democrático e da lei passam a ter predominância em razão da quebra com o regime monárquico absolutista. Já na Alemanha, em vez de ruptura, o regime monárquico vai se adaptando progressivamente ao regime democrático e sendo limitado pela lei [10].

Noutro giro, na competência genérica de expedição de regulamentos, praticamente todas as constituições brasileiras dispuseram sobre essa atribuição — Constituição de 1891 (artigo 48, 1º), Constituição de 1934 (artigo 56, 1º), Constituição de 1937 (artigo 74, a), Constituição de 1946 (artigo 87, I), e a Constituição de 1967/69 (artigo 81, III). Até mesmo a Carta do Império possuía orientação na mesma linha, dispondo como atribuição do Imperador "expedir os decretos, instruções e regulamentos adequados à boa execução das leis" (artigo 102, XII) [11].

Com a Constituição brasileira de 1988, o poder regulamentar restou consolidado no artigo 84, inciso IV, em que pese a opinião dissonante do professor Edilson Pereira Nobre Júnior [12].

Perlustrando a Portaria PGR/MPU nº 202, de 31 de dezembro de 2022, o Procurador-Geral da República (PGR) usa como fundamento de validade do seu poder regulamentar para editar a dita portaria as seguintes bases normativas: artigo 26, inciso XIII, da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993; artigo 9º, §1º, II da Lei nº 12.694, de 24 de julho de 2012; as disposições da Resolução nº 156, de 13 de dezembro de 2016, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP); a Resolução Conjunta nº 4, de 28 de fevereiro de 2014, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP); a Resolução nº 344, de 9 de setembro de 2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ); o decidido no Pedido de Providências nº 00128/2021-60, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP); e o teor do Procedimento de Gestão Administrativa nº 1.00.000.017341/2022-82.

Ao que interesse a este artigo, cabe trazer ao conhecimento as disposições do artigo 26, inciso XIII, da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, segunda a qual vaticina:

Art. 26. São atribuições do Procurador-Geral da República, como Chefe do Ministério Público da União:

XIII – exercer o poder regulamentar, no âmbito do Ministério Público da União, ressalvadas as competências estabelecidas nesta Lei Complementar para outros órgãos nela instituídos. (grifos acrescidos)

O do art. 9º, §1º, II da Lei nº 12.694, de 24 de julho de 2012, por sua vez, dispõe:

Art. 9º. Diante de situação de risco, decorrente do exercício da função, das autoridades judiciais ou membros do Ministério Público e de seus familiares, o fato será comunicado à polícia judiciária, que avaliará a necessidade, o alcance e os parâmetros da proteção pessoal.

§ 1º. A proteção pessoal será prestada de acordo com a avaliação realizada pela polícia judiciária e após a comunicação à autoridade judicial ou ao membro do Ministério Público, conforme o caso:
I – pela própria polícia judiciária;

II – pelos órgãos de segurança institucional; (grifos acrescidos)

Em derradeiro, a Resolução nº 344, de 9 de setembro de 2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é replicada pelo PGR. Esta Resolução cria, perante o Poder Judiciário, a política de segurança institucional, mediante o exercício de poder de polícia administrativa dos magistrados, bem como estabelece diretrizes de competência dos inspetores da polícia judicial.

O artigo 26, inciso XIII, da Lei Complementar nº 75/93, como não poderia ser diferente, não diz o que será regulamentado, mas apenas que o chefe do Ministério Público da União possui poder regulamentar. Dispositivo redundante de certa forma, haja vista a teoria do poder regulamentar, além de ser de bom alvitre a demonstração do ato primário antecedente delineando o contorno do que será regulamentado.

Da mesma forma, não se pode afirmar que o artigo 9º, §1º, II da Lei nº 12.694/12, na sua singela redação, por ter citado de forma en passant "órgãos de segurança institucional", teve como propósito autorizar a criação de um novo cargo, possibilitando a regulamentação de uma da carreira de agente de polícia institucional, em nada se confundindo com a competência da polícia judiciária.

Na verdade, a leitura do §1º, II do artigo 9º da Lei nº 12.694/12 deve ser feita levando em consideração a vinculação que possui com o seu próprio caput, o qual trata do risco da segurança das autoridades judiciais ou membros do Ministério Público e de seus familiares, com a necessária comunicação à polícia judiciária, que avaliará a necessidade, o alcance e os parâmetros da proteção pessoal. Não se trata, portanto, de criação de uma nova carreira no âmbito de órgãos autônomos como Judiciário ou MPU, muito menos autorização para que os chefes dessas instituições dêem um passo maior do que o permitido, regulamentando uma carreira que não existe, com atribuições de duvidosa legalidade.

Com efeito, pela teoria do poder regulamentar, falta juridicidade à portaria editada pelo PGR, por violar dispositivos diretos da constituição e infraconstitucionais. Nesse sentido, a portaria vai muito além de regulamentar ato primário anterior, funcionando, na verdade, como regulamento à deriva, já que não possui amparo nos diplomas que cita, muito menos no texto constitucional. Poderíamos até afirmar que a Portaria PGR/MPU nº 202, de 31 de dezembro de 2022 sequer pode receber a classificação de um regulamento independente ou autônomo, extraindo a sua força editiva diretamente do texto constitucional.

Na Constituição, a criação de cargo, bem como a discriminação de suas competências e organização não prescinde de lei específica, conforme inciso II do artigo 37 da CRFB/88 (e reiterado pelo artigo 3º da Lei nº 8.112/90). Também parece ser forçoso afirmar que a criação e/ou regulamentação da polícia institucional encontra guarida nos artigos 27, § 3º, artigo 51, lV e artigo 52, Xlll da CRFB/88, como leva a crer Leandro Caetano [13].

De mais a mais, trabalhando-se com a hipótese de as atribuições da polícia institucional já existirem na estrutura de cargos do Ministério Público da União, o rearranjo promovido pela Portaria do PGR parece esbarrar no parágrafo único do artigo 84 da CRFB/88, demandando delegação por parte do presidente da República para promover uma organização e funcionamento da administração federal do Ministério Público, naquilo que possuir pertinência com o MPU, já que os seus servidores também estão submetidos ao regime jurídico único da Lei nº 8.112/90.

E, por fim, poder-se-ia trabalhar com o argumento de que a atual Lei nº 13.316/16, segunda a qual regulamenta as carreiras dos servidores do Ministério Público da União e as carreiras dos servidores do Conselho Nacional do Ministério Público, em seu parágrafo único do artigo 3º, teria atribuído ao PGR poder regulamentar suficiente para dispor sobre as atribuições dos cargos ali discriminados.

No entanto, atento as balizas da Lei nº 13.316/16, observa-se que existem apenas dois cargos criados pela referida lei: analista de nível superior; e técnico, de nível médio. Destrinchando as suas atribuições, o PGR editou a Portaria nº 84, de 30 de agosto de 2017 e nela não há nenhuma referência à polícia institucional, muito menos atribuições que estão dispostas na atual Portaria PGR/MPU nº 202, de 31 de dezembro de 2022.

Na verdade, em rápida digressão à Lei nº 9.953/2000 [14] — já revogada pelos diplomas posteriores até chegar na Lei nº 13.316/16 — no seu anexo, sequer havia a discriminação da área segurança/polícia institucional, voltada para preservação institucional e de seus membros, com poder de investigação, auxílio em inquéritos instaurados ou uso de brasão específico para a sua rápida identificação, entre outras competências, como o faz o ato editado pelo PGR.

Sobraria, ainda, no exercício imaginativo, o argumento segundo o qual a atual Lei nº 13.316/16 teria conferido poder normativo ao PGR por meio do artigo 17, caput, e § 1º do artigo 27, já que tais dispositivos citam "segurança institucional" em suas redações. No entanto, mesmo de duvidosa constitucionalidade — pelo que já foi susomencionado, tais artigos não autorizam a sua regulamentação para esquadrinhar sobre a carreira de polícia institucional, muito menos asseveram que as atribuições dessa função serão discriminadas em regulamento a ser editado. Há, na verdade, mediante a portaria analisada, a criação de uma nova carreira, com um amplo leque de atribuições e com possível planejamento para que novos agentes ingressem por concurso público para a função específica criada [15].

Com isso, é natural concluir que a atual portaria de criação da polícia institucional do MPU extrapola, e muito, o poder regulamentar do procurador-geral da República, irradiando efeitos sem farol normativo que autorize a sua edição.

 


[1] NASCIMENTO, Marília Aguiar Ribeiro – Os Regulamentos Independentes em face da separação de poderes: uma análise à luz das constituições, brasileira e portuguesa. Revista Dat@venia V.5. [Em linha]. N.º 2 (2013), [Consult. 03 jan. 2023]. Disponível em file: https://issuu.com/esmpgo/docs/1-artigo25_revista24okeletronica_layout_1.

[2] MONIZ, Ana Raquel Gonçalves – Estudo sobre os Regulamentos Administrativos. 2.ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2016. p. 31-32.

[4] JÚNIOR, Edilson Pereira Nobre – Direito Administrativo Contemporâneo: Temas Fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 134.

[5] ABREU, Jorge Manuel Coutinho de – Op. Cit. p. 45.

[6] COUTINHO, Luiz Pedro Pereira – Regulamentos Independentes do Governo. In MIRANDA, Jorge, Org. – Perspectivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976. Vol. III. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. p. 980.

[7] COUTINHO, Luiz Pedro Pereira – Op. Cit. p. 981.

[8] Idem – Ibidem.

[9] Idem – Ibidem.

[10] COUTINHO, Luiz Pedro Pereira – Op. Cit. p. 982.

[11] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira – Curso de Direito Constitucional. 11.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 973.

[12] JÚNIOR, Edilson Pereira Nobre – Op. Cit. p. 141.

[13] CAETANO, Leandro. A Constitucionalidade da Polícia Judicial. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2020/a-constitucionalidade-da-policia-judicial. Acesso em: 7 jan. 2023.

[14] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9953.htm. Acesso em: 7 jan. 2023.

[15] Entrevista concedida ao site ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-01/aras-cria-policia-institucional-ministerio-publico-uniao. Acesso em: 9 jan. 2023.

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