Opinião

Aline Sousa, MNCR e a luta dos catadores por reconhecimento

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  • Antonio de Maia e Pádua

    é defensor público federal coordenador da área cível da Defensoria Pública da União junto ao Superior Tribunal de Justiça membro dos grupos de trabalho Pop Rua e Catadores doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e mestre em Constituição Direito e Estado pela Universidade de Brasília.

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11 de janeiro de 2023, 21h13

Aline Sousa colocou a faixa no presidente Lula. Nesse ato, repleto de significados, espero que esteja também o recado de que as portas do governo federal foram abertas para as catadoras e os catadores de recicláveis.

Quando a cerimônia estava sendo transmitida, os repórteres e comentaristas não souberam dizer de imediato quem era aquela mulher negra que trazia em suas mãos o símbolo da passagem do poder. Não sabiam seu nome, nem como se sustenta. Sabiam apenas o óbvio. Estava ali uma mulher preta mostrando ao mundo que, pelos próximos quatro anos, Lula será o presidente do Brasil. Fossem um pouquinho mais ligados às lutas sociais, poderiam ter reconhecido a camiseta que Aline usava. O círculo azul, contendo o mapa do Brasil em verde e a imagem estilizada de um catador e sua carroça revelava que Aline é ligada ao Movimento Nacional dos Catadores de Recicláveis (MNCR).

Infelizmente, para os profissionais da televisão a camiseta da Aline não dizia muita coisa. O MNCR não é tão conhecido pelos brasileiros em geral, inclusive repórteres e comentaristas. MST e MTST, por exemplo, têm marcas muito mais fortes. Certeza que se estivesse na rampa do palácio um militante usando a camiseta de qualquer desses dois movimentos, quase todos seriam capazes de afirmar imediatamente o vínculo. Minha confiança no acerto do que digo é tamanha que nem me dei ao trabalho de escrever as palavras que a siglas abreviam. MST e MTST são já substantivos próprios, com significados prontamente reconhecidos. Mas catadoras e catadores ainda lutam por reconhecimento, e o fato de pouca gente ter identificado na hora que uma catadora segurava a faixa presidencial é uma parábola valiosa.

Não demorou, é verdade, para que repórteres e comentaristas, provavelmente informados por alguém do cerimonial da presidência, dissessem ao país que era Aline, catadora, filha e neta de catadoras, aquela mulher preta que passou a faixa para o Lula. E, é exatamente no ato de dar a conhecer ao mundo quem era e o que faz Aline que quero acreditar existir um sinal de que o poder público federal está pronto para tirar catadoras e catadores de recicláveis da invisibilidade.

E quem são as catadoras e os catadores? São, em sua maioria, mulheres que tiram seu sustento coletando, separando, armazenando e comercializando papel, papelão, plásticos, alumínio, metais e vidro descartados nos centros urbanos. São, portanto, um grupo de pessoas definido pela ocupação que exercem.

Identificados que são pelo trabalho, constituem uma categoria profissional que exerce atividade anotada no Catálogo Brasileiro de Ocupações (CBO). Pouco importa para caracterizar o pertencimento ao grupo a falta de preocupação do poder público em regulamentar a profissão. Apesar do que possa parecer a muitos desavisados, as profissões não são criadas por leis, nem dependem da fiscalização por um conselho federal qualquer para existirem.

A transitoriedade ou permanência na atividade tampouco é relevante para afirmar o pertencimento ou não de alguém à categoria profissional de catadora ou catadora de recicláveis. As pessoas podem mudar e mudam de ocupação ao longo da vida. Quem hoje é catador amanhã pode estar trabalhando com outra coisa, quem tem outra atividade qualquer pode vir a trabalhar como catador e assim por diante.

Ter mais de uma atividade econômica é outra circunstância que não retira da catadora e do catador o direito de ser reconhecido como tal, afinal é perfeitamente possível exercer uma profissão. Fazer bicos, acumular ocupações, conciliar empregos, ou seja, ter uma outra fonte de renda qualquer não impede que alguém seja, também, catador ou catadora de material reciclável.

Da mesma forma, uma circunstância pessoal com interseção nas qualificadoras de outros grupos vulnerabilizados não infirma a qualificação como catador ou catadora. Há catadores e catadoras em situação de rua? Sim, óbvio, mas a falta de moradia cumulada com uma profunda desestruturação econômica e familiar não retira essas pessoas em situação de rua do conjunto daquelas que tem por ocupação profissional coletar, triar, armazenar e comercializar material reciclável descartado como resíduo sólido.

Aliás, está aí um outro movimento social que não é facilmente reconhecido pela maior parte dos brasileiros. Houvesse subido a rampa Eduardo de Matos, vestindo sua camiseta vermelha do Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua (MNPR), é certo que veriam nele um militante do MST. Estranhariam o mapa do Brasil em amarelo sobre o círculo azul claro, mas se deixariam conduzir pela familiaridade com o vermelho da blusa para chegar à conclusão equivocada.

Pessoas em situação de rua que trabalhem como catadores e catadoras são, claro, catadores e catadoras. Mas não é preciso que catadores e catadoras estejam em situação de rua para serem percebidos como um grupo de pessoas que demandam atenção especial do poder público.

Catadoras e catadores reinserem no circuito produtivo e dão aproveitamento econômico a recursos descartados, realizando trabalho imprescindível para a disposição adequada dos resíduos e, consequentemente, para alcançar e manter o equilíbrio ambiental com a conservação de matéria prima, água e energia, e o controle e redução da poluição ambiental. Ocorre que, na imensa maioria das vezes, para não dizer em todas, o descarte de recicláveis se dá junto ao de resíduos orgânicos e de rejeitos irrecuperáveis, sujeitando catadoras e catadores a serem machucados e contaminados. É, portanto, a um só tempo, ocupação ambientalmente essencial e perigosa, que beneficia toda a comunidade às custas de arriscar a saúde e a integridade física de quem a exerce.

Só pela natureza da atividade em si catadores e catadoras já fariam jus a cuidados especiais pelo poder público. Exigência e fiscalização do uso de equipamentos de proteção individual, jornada e proteção previdenciária diferenciadas, instalações e maquinários seguros, atenção rotineira à saúde, e daí por diante. No entanto, a realidade é outra.

As contingências que levam alguém a se tornar catadora ou catador de recicláveis decorrem quase sempre da falta de outras oportunidades. Não precisa ser assim, mas o fato é que, hoje, como também ontem, será difícil que não o seja ou não o tenha sido. Coube às pessoas jogadas para fora do mercado de trabalho considerado formal sobreviver do reaproveitamento de recursos com valor econômico descartados e tratados como lixo pela sociedade e pelo poder público. Não bastasse, essa mesma sociedade e esse mesmo poder público sustentam e perpetuam um preconceito profundamente discriminante e excludente que marginaliza catadores e catadoras.

Da associação entre a profissão e a estigmatização de quem a exerce resulta uma situação de absoluta injustiça, em que a comunidade e o poder público se apropriam do trabalho de catadores e catadoras, deixando-os, ainda por cima, desamparados na defesa do conservacionismo ambiental socialmente consciente e na negociação do material que comercializam com grandes empresas especializadas em reciclagem.

Basta refletir um pouco que logo se mostra o horror do tratamento que catadores e catadoras recebem dos demais brasileiros. Catadoras e catadores são super explorados. De um lado, trabalham de graça na limpeza urbana e para a disposição adequada dos resíduos sólidos; do outro têm sua sobrevivência constantemente ameaçada por quem não consegue compreender que não há preservação da natureza sem inclusão social, e pelo desequilíbrio negocial que resulta invariavelmente na subvalorização do material que comercializam.

Tomara que Aline, ao passar aquela faixa verde e amarela, se torne o símbolo de tempos mais justos para a categoria profissional que ela, sua mãe Nívea, e sua vó Adriana fazem parte. Reconhecimento, proteção social e retribuição adequada pelo trabalho é o que o país deve a elas e a todas as outras catadoras e catadores de recicláveis.

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