Levante antidemocrático

Bolsonaristas podem ter cometido crimes contra instituições democráticas

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9 de janeiro de 2023, 21h00

Os bolsonaristas que praticaram atos de violência, vandalismo e depredação de patrimônio público em Brasília neste domingo (8/1) podem ter cometido crimes contra as instituições democráticas, previstos nos artigos 359-L e 359-M, do Código Penal, apontam criminalistas ouvidos pela ConJur. Porém, não há consenso se os manifestantes de extrema-direita devem responder pelo delito de terrorismo. 

Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
Extremistas bolsonaristas deixaram rastro de destruição no domingo (8/1), em Brasília
Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Com notório atraso, as forças de segurança conseguiram restaurar a ordem pública e prender 1,2 mil pessoas, que foram conduzidas à Polícia Federal. Com parte considerável dos responsáveis pela barbárie detidos, a ConJur ouviu advogados para entender exatamente quais crimes podem ser imputados aos responsáveis pelos atos que devastaram prédios dos três poderes. 

Para a criminalista Dora Cavalcanti, a responsabilização dos autores, mandantes e partícipes é medida fundamental. "Em uma análise preliminar, vejo possíveis crimes contra o Estado Democrático de Direito, em especial os previstos nos artigos 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado) do Código Penal", explica.

A advogada ressalta, contudo, que é preciso identificar as pessoas que ativamente orquestraram os atos, bem como avaliar eventual omissão ou mesmo apoio disfarçado de autoridades públicas. "A punição apenas dos executores seria mais um exemplo da seletividade do Sistema de Justiça Criminal", critica.

Para Daniella Meggiolaro, os atos podem configurar não só crimes contra a democracia, recentemente introduzidos no ordenamento jurídico, "mas também os crimes de dano ao patrimônio público (art. 163, III, do Código Penal, com penas de 6 meses a 3 anos de detenção), dano ao patrimônio histórico e cultural (art. 62, II, da Lei 9605/98, com penas de 1 a 3 anos de reclusão), dano às edificações protegidas por lei (art. 63 da Lei 9605/98, também com penas que variam de 1 a 3 anos de reclusão) e, finalmente, organização criminosa (art. 2º da lei 12850/13, com penas de 3 a 8 anos de reclusão)". 

Ainda segundo ela, a somatória de todas as sanções, ainda que aplicadas em seu patamar mínimo, poderia implicar em "situação bastante gravosa a seus autores". 

"E não haveria de ser por menos: o que vimos neste fatídico 8 de janeiro de 2023 merece, garantidos aos seus autores os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, uma resposta enérgica do Estado, para que fatos lastimáveis como estes nunca mais se repitam em nosso país", concluiu. 

O advogado e professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo Pierpaolo Cruz Bottini, integrante da equipe de transição do presidente Lula (PT), também enxerga a possível prática do delito do artigo 359-L do Código Penal — "tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais" —, com pena de- reclusão de quatro a oito anos. 

Além disso, Bottini analisa que os bolsonaristas podem ter cometido o crime do artigo 359-M do Código Penal, consistente em "tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído". O delito é punido com reclusão de quatro a 12 anos, sem contar a pena correspondente à violência.

"Aqueles que incitaram incorrem nós mesmos crimes E as autoridades que tinham o dever e a possibilidade de impedir e não impediram também", destaca o professor.  

A criminalista Flávia Rahal afirma que não há dúvidas sobre os crimes cometidos pelos invasores que depredaram as sedes dos três poderes da República.

"Foi clara, assim, a ocorrência do crime de abolir o Estado Democrático de Direito, nos termos do que dispõe o artigo 359-L do Código Penal, não se podendo, ainda, afastar a ocorrência, entre outros, dos crimes de golpe de Estado e de dano ao patrimônio público, previstos respectivamente nos artigos 359-M e 168 do Código Penal. Comete o crime não só quem invade, mas também quem financia a invasão e a formação da organização criminosa que os executou", opina.

Já o advogado Daniel Bialski enxerga infrações como dano a patrimônio público, incitação ao crime (artigo 286 do Código Penal), formação de quadrilha (artigo 288), desacato (artigo 331), resistência (artigo 329) e periclitação de vida (artigo 132)) e ato de terrorismo contra a paz social (Lei 13.260/2016).

Em artigo publicado na ConJur, o advogado Fernando Augusto Fernandes ressalta que, além dos delitos contra as instituições democráticas, bolsonaristas podem responder por pertencimento e financiamento a organização criminosa, previstos, respectivamente, nos artigos 1º e 2º da Lei 12.850/2013. 

"Além do crime de tentativa de golpe, a acusação pode vir acompanhada, em cada caso, de diversas imputações conjuntas, como a agressão ao cavalo de um policial (artigo 32, Lei 9.605/85), a lesão corporal ao próprio policial (artigo 129 do Código Penal), além  do crime de dano (artigo 163). Neste último, a pena a base de um a seis meses é agravada por ter sido cometido com (i) violência e (iii) contra o patrimônio da União, sendo majorada para seis meses a três anos", destaca.

Fernandes também estaca possíveis delitos cometidos por militares. "Para aqueles que participaram e que desrespeitarem as ordens superiores, há desde motim (artigo 149 do Código Penal Militar, pena de quatro a oito anos), organização de grupo para prática de violência (artigo 150) e conspiração (artigo 152), até os mais leves, como insubordinação (artigo 163, com pena de um a dois anos)".

Terrorismo ou não?
Camila Lima das Neves, vice-presidente da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, classifica os bolsonaristas que participaram do quebra-quebra em Brasília de "terroristas". 

"Segundo o disposto na Lei 13.260/2016, que disciplina e reformula a organização terrorista, a penalização é de 12 a 30 anos de reclusão", diz.

A especialista também aponta a existência de outros delitos como dano ao patrimônio público e cultural e pertencimento a associação criminosa com um único objetivo de cometer crimes. Este último delito, elencado no artigo 288 do Código Penal, é punido com reclusão de um a três anos.

"O interessante na Lei Antiterrorismo é que ela não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios. Penso que o legislador acreditou em manifestações e liberdades de expressão que estão insculpidas em nossa Constituição Federal. Porém, isso não se confunde com discurso de ódio", sustenta.

Priscila Pamela Santos, advogada criminalista e coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, por sua vez, acredita que não é possível classificar o que aconteceu em Brasília como uma série de atos terroristas. 

"Nos termos da Lei 13.260/2016, os atos que não tenham motivação xenófoba, discriminatória ou preconceituosa (raça, cor, etnia e religião) não podem ser abarcados pela legislação específica. O que tivemos foram ações voltadas à abolição violenta do Estado Democrático de Direito e ao golpe de Estado", sustenta.

"Para além de eventuais crimes contra o Estado Democrático de Direito, diversas outras ações que podem caracterizar crimes que foram supostamente perpetrados pelo grupo de bolsonaristas radicais, como associação criminosa, incitação ao crime, constituição de milícia privada, furto e dano qualificados, crimes contra a honra, lesão corporal, dentre outros, que também reclamam a devida apuração", diz.

Por seu turno, a advogada Joyce Roysen acredita que, para o correto enquadramento dos atos dos bolsonaristas como crime de terrorismo, há que se demonstrar que referidas condutas criminosas tiveram como motivação xenofobia, discriminação ou preconceito, nos termos do artigo 2º da Lei 13.260/2016.

"Sem a necessidade da conexão de tais fatos com as motivações mencionadas, já temos diversos crimes praticados contra o patrimônio e de dano, além dos crimes previstos nos artigos 359 L e 359 M. Ademais, a forma como os crimes foram executados, se enquadram perfeitamente na definição do crime organização criminosa previsto na lei 13.850/13", explica.

Simone Henrique, advogada especialista em compliance, lembra que a  Lei 13.260/2016 define o conceito de terrorismo como sendo a "prática de atos destrutivos, praticados por uma ou mais pessoas, movidas por xenofobia ou qualquer forma de discriminação ou preconceito, com o fito de instigar terror na sociedade ou de modo generalizado".

"A lei não faz uso da expressão 'terrorismo doméstico'. Porém, o termo foi importado dos EUA e serve para definir os delitos praticados por nacionais de um Estado contra o seu próprio povo. Também há uma relação entre lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo", aponta.

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