Opinião

Direito ao sistema de precedentes e o cancelamento da Súmula 630 do STJ

Autor

  • Luiz Felipe Nascimento

    é graduado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro pós-graduado em Direito público lato sensu Direito Privado Processo civil e Direito Civil Direito Penal e Direito e Cidadania e advogado.

    View all posts

8 de janeiro de 2023, 17h52

Começamos a estudar o sistema de precedentes no processo penal com um lamento: Não há uma disposição expressa no Código de Processo Penal acerca do dever de integridade, coerência e estabilidade das decisões dos tribunais, assim como há no artigo 926, do CPC. Entretanto, apesar da grandeza científica do dispositivo processual civil, não há como estudar somente uma teoria do processo para a ciência penal e para a ciência civil, por isso urge o esforço intelectual e científico do jurista, no sentido da hermenêutica atualizada do código processual penal, concebido em 1941, e o manejo da influência constitucional em tal ciência [1].

Em 1941 as discussões jurídicas não abordavam a complexidade da formação de um sistema de precedentes, o que não implica vedação ao raciocínio jurídico processual penal que descobre o direito fundamental à formação de precedentes. Nesse sentido devemos evidenciar as funções da dogmática jurídico penal, sabemos que a sistematização de bens jurídicos e a criação da teoria do bem jurídico foi uma das maiores contribuições da ciência penal, mas no tema precedentes judiciais, a previsibilidade das decisões judiciais é a mais importante [2].

A previsibilidade de decisões judiciais é, sem pestanejar, um dos pilares da democracia, já que permite o controle endoprocessual e exoprocessual das decisões judiciais. Assim encontramos o papel importante das cortes de vértice na democracia, a estrutura do poder judiciário e as competências constitucionais dos tribunais não estão no capítulo III da Carta maior por um acaso do destino, estrutura judicial, garantias dos magistrados e competências decorrem dos direitos fundamentais individuais [3].

Os pilares da legalidade e anterioridade impõem ao Poder Judiciário a sistematização das decisões judicias, além disso o artigo 5º, da CRFB, traz o princípio da isonomia que ordena aos três Poderes tratamento igualitário a todos que se submetem a jurisdição. Por isso o sistema de precedentes é criado para que os direitos fundamentais do jurisdicionado sejam resguardados, e mais, também para que não haja decisões diferentes entre jurisdicionados que cometerem mesmo ato [4].

A restrição aos direitos individuais é sempre avalizada pelo Poder Judiciário, por isso o Título II da Constituição, que se destina aos direitos e garantias fundamentais, em grande parte da sua extensão, promove limitações e comandos ao judiciário para que não se agigante diante dos direitos individuais, para que respeite os direitos civis e políticos conquistados a partir de uma vitória revolucionária dos indivíduos frente ao Estado.

Nesse sentido surge a dogmática penal, como um escudo de proteção do indivíduo frente ao gigante estatal, a ciência penal e processual penal são as ciências desenvolvidas pela sociedade para que o Estado tenha limites, saiba até onde pode relativizar os direitos fundamentais e qual é o núcleo incorruptível dos direitos fundamentais. Por isso a importância da formação do sistema de precedentes processual penal.

Aqui cabe uma pequena digressão para explicar a atecnia da diferenciação entre direito penal adjetivo e objetivo, prova ilegítima e prova ilegal, não há escalonamento entre garantias fundamentais todas devem ser respeitadas igualmente, não há direito mais importante do que o direito fundamental não violado, a Constituição é didática e clara, o artigo 5º consagra direitos fundamentais penais e processuais penais, quais sejam, isonomia e devido processo legal, sem fazer diferenciação quanto a sua violação [5].

Assim nasce o devaneio jurídico da diferenciação entre a violação de direitos fundamentais, como se fosse possível violar direitos em matéria processual penal e seguir adiante, simplesmente porque alguém disse que não houve prejuízo, pois bem aqui vai um ensinamento histórico: direitos individuais foram criados para proteger o indivíduo e não quem está julgando, por isso o melhor no mundo para dizer se houve prejuízo é o réu.

Passada a digressão que explicou o óbvio, qual seja, não há subterfúgio que guarneça a violação a direitos fundamentais, se foram violados há prejuízo ao indivíduo, passamos à ciência processual penal: O famigerado princípio da congruência ou da correlação, já reconhecido pelo STF, em decisão da segunda turma, segundo tal corte de vértice, somente se refere aos fatos e não à capitulação jurídica em matéria processual penal [6].

Aqui façamos a devida crítica científica a essa idiossincrasia jurídica proferida pela segunda turma do STF, sabemos que há brocardos jurídicos em latim que demonstram que há tempos entregávamos os fatos ao juiz e o mesmo nos dava o Direito, mas já não estamos em tal momento histórico e por isso o processo se tornou um feito coletivo, todos os participantes constroem uma decisão judicial.

O artigo 129, da CRFB, consagra o sistema acusatórioem matéria processual penal, além disso, o artigo 3º-A, do CPP, suspenso cauterlamente por decisão monocrática, que apresenta atecnia bizarra já que se refere ao dispositivo como parte do juiz das garantias, mas na verdade só trata da estrutura acusatória do processo penal, reforça o sitema acusatório matéria processual penal, assim torna o juiz o chamado convidado de pedra, nas palavras do professor Magalhães Noronha [7].

A autorização para que o juiz aplique seus conhecimentos jurídicos aos fatos trazidos pela acusação contra réu não autoriza a piora na situação do réu, ninguém pode entrar em uma ação penal acusado de lesão corporal seguida de morte e chegar na sentença, com a surpresa desagradável, de uma condenação por homicídio. Ação penal não é roleta russa, sorteio da loteria ou concurso de prognóstico, ação penal faz parte de uma ciência lógica desenvolvida para que a sociedade aprimore a solução de ações indesejadas.

A insegurança jurídica criada por esse entendimento do STF quanto ao princípio da congruência, em que o juiz pode capitular o que quiser na sentença, mesmo que não seja o pedido da acusação, torna a acusação inócua, ou seja, a atação do Ministério Público seria meramente descritiva, já que não tem domínio da capitulação penal e dos rumos da ação penal. Além disso, o juiz seria acusador e voltando ao sistema da inquisição, um primor jurídico da idade média.

Assim, passadas as críticas dos super poderes conferidos ao juiz extraídos pelo sofisma imposto ao princípio da congruência, partimos do princípio da congruência, em que o réu só se defende dos fatos e não da capitulação jurídica, para chegar a mais uma aberração jurídica chamada Súmula 630 do STJ, uma quimera saída de uma caverna inquisitória [8].

A Súmula 630 do STJ, um oxímoro por excelência, preconiza que o imputado deve confessar que a droga trazida consigo era pra traficância e não para uso pessoal para que tenha acesso a atenuante da confissão espontânea e assim cria um paradoxo jurídico escatológico, já que o STF assentou que, no processo penal o réu se defende dos fatos e não da capitulação jurídica. Ué se a capitulação jurídica não está em jogo durante a ação penal porque é exigido do réu que ele confesse qual a capitulação jurídica da sua conduta?!

Se houvesse o mínimo de coerência das cortes de vértice no Brasil, bastaria que o imputado confessasse o porte da droga para ter acesso a atenuante da confissão espontânea, já que o princípio da congruência em matéria processual penal somente abarca os fatos e não a capitulação jurídica, assim como preconiza a segunda turma do STF. Se o juiz pode alterar a capitulação jurídica na sentença, fim do processo, e o réu não pode se esquivar disso, porque o que está em debate são os fatos, como explicar o constrangimento para que o réu confesse a capitulação jurídica [9].

As contradições não se encerram aqui, a Súmula 630 do STJ é tão improfícua que exige do imputado, leigo nas ciências jurídicas, que indique precisamente a capitulação jurídica de sua conduta, em contraponto não exige que o membro do Ministério Público faça o mesmo, já que o MP pode passear pela ação penal toda até chegar na sentença com a capitulação errada e o juiz, como cuidador infantil, pode corrigi-lo na sentença [10].

Portanto torna-se necessário, urgentemente, o cancelamento desse escárnio que a Súmula 630 do STJ, já que estamos diante de um notório crime de constrangimento ilegal nas barbas do poder judiciário, que aliás, é o agente constrangedor nesse caso, já que não há dispositivo ou entendimento judicial que obrigue um imputado leigo a conhecer a correta capitulação jurídica.

Por isso reforço a necessidade de um sistema de precedentes hígido, coerente e estável, vemos aqui duas decisões vinculantes de cortes de vértice que se contrapõem para prejudicar o réu de diferentes maneiras e tratam a acusação como um infante começando a andar e o juiz o segura pelas mãos até quando achar necessário, nesse caso até a sentença, ato que põe fim ao processo de conhecimento.

Dessa forma fica constatado que o tratamento dado ao Ministério Público pelas cortes de vértice é de um leigo em estado de letargia, já o tratamento dado ao imputado é de um especialista em capitulações que deve enquadrar sua conduta típica, de maneira correta, sempre que perguntado, sendo permitido ao delegado de polícia que erre em se de inquérito, ao membro do MP que persista no erro e que os dois ainda tenham uma baba chamada juiz para corrigir em sede de sentença.

Não há razão para que, em pleno 2023, o STJ não seja coerente com as decisões do STF e que os dois criem desvarios judiciais em que as suas decisões demonstrem contradições que prejudiquem qualquer ator processual, ainda mais quando estamos em sede de processo penal quando está em jogo o direito à liberdade do indivíduo.

A regulamentação do sistema de precedentes em matéria processual penal evitaria esse tipo de excrescência jurídica e imporia o dever de cancelamento da Súmula 630 do STJ, o que seria uma estratégia para redução de danos ou a revisão do entendimento da segunda turma do STF para que o princípio da correlação em processo penal também a capitulação jurídica dos fatos [11].

Como última análise a sinceridade merece um espaço, cientificamente o mais técnico seria o STF rever sua decisão quanto ao princípio da congruência e todos que fossem acusados pelo MP com capitulações equivocadas seriam absolvidos, mas como em âmbito científico damos um passo de cada vez, somente há o apelo pelo cancelamento da Súmula 630 do STJ, já que não estamos resolvendo todos os problemas do país de uma vez, mas aos poucos avançamos [12].

 


Referências:

ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo de. Sentença Penal: doutrina, jurisprudência e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas alternativas. São Paulo: RT, 1993.

Direito processual penal: estudos e pareceres / Afrânio Silva Jardim, Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim. Imprenta: Salvador, JusPODIVM, 2016. Descrição Física: 729 p. ISBN: 9788544206119. Referência: 2016. Disponibilidade: Rede Virtual de Bibliotecas. Localização: CAM, TJD, TST. 13. ed., atual. e ampliada.

SANDEL, Michael J, Justiça. O que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 14/12/2022.

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em 14/12/2022.

https://processo.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?livre=%28+%28+%28%28%28%28%22000630%22+PROX10+STJ%29+PROX5+SUM%29.REF.+OU+%28%28SUM%24+OU+VERBETE%24+OU+ENUNCIADO%24%29+ADJ4+%28%22630%22%2FSTJ+OU+%22630%22-STJ%29%29+OU+%28%28SUM%24+OU+VERBETE%24+OU+ENUNCIADO%24%29+ADJ2+%22630%22%29%29+COM+%28%28TRIBUNAL+ADJ2+CIDADANIA%29+OU+%28%24EST%3F+ADJ+%28SODALICIO+OU+CORTE%29%29+OU+STJ+OU+%28CORTE+PROX3+SUPERIOR+PROX3+JUSTICA%29+OU+%28SUPERIOR+PROX2+TRIBUNAL+PROX3+JUSTICA%29%29%29+NAO+%28%28%22630%22+OU+%220630%22%29+PROX4+%28VINCULANTE+OU+STF+OU+SUPREM%24+OU+INFORMATIVO%24+OU+EXCELSO%29%29+%29+OU+%28+TRAFIC%24+MESMO+%28DROGA%24+OU+%2211.343%22%24+OU+%2211343%22%24+OU+ENTORPECENTE%24%29+COM+CONFISSAO+COM+%28%28RECONHEC%24+OU+CONFESS%24+OU+MERO%29+PROX6+%28USO+OU+TRAFICAN%24+OU+USUARIO%24%29%29+%29+%29+E+%40DTDE%3E%3D20190424&b=SUMU&tp=T. Acesso em 15/12/2022.

https://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo597.htm. Acesso em 15/12/22.

 


[1] FOLMANN MELISSA E BERWANGER JANE LUCIA. Previdência Social nos 90 Anos da Lei Elói Chaves. Editora Juruá. Publicado em: 03/10/2013

[2] FOLMANN MELISSA E BERWANGER JANE LUCIA. Previdência Social nos 90 Anos da Lei Elói Chaves. Editora Juruá. Publicado em: 03/10/2013

[3] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm Acesso em 14/12/2022.

[5] Sales Jobson e Vesely Thiago. Uma Breve História da Previdência Social: De Bismarck às iniquidades de gênero em previdência, combate à COVID-19 e inclusão (exclusão?) previdenciária dos trabalhadores de aplicativos, 1ª edição (1 fevereiro 2022)

[7] Sales Jobson e Vesely Thiago. Uma Breve História da Previdência Social: De Bismarck às iniquidades de gênero em previdência, combate à Covid-19 e inclusão (exclusão?) previdenciária dos trabalhadores de aplicativos, 1ª edição (1 fevereiro 2022)

[8] FOLMANN MELISSA E BERWANGER JANE LUCIA. Previdência Social nos 90 Anos da Lei Elói Chaves. Editora Juruá. Publicado em: 3/10/2013

Autores

  • é graduado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, pós-graduado em Direito público lato sensu, Direito Privado, Processo civil e Direito Civil, Direito Penal e Direito e Cidadania e advogado.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!