Opinião

Um programa democrático para as Forças Armadas (parte 2)

Autor

  • Antônio Carlos Will Ludwig

    é professor aposentado da Academia da Força Aérea pós-doutor em Educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)

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7 de janeiro de 2023, 6h32

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Supervisão Parlamentar: A Câmara dos Deputados de nosso país possui uma área denominada Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional. Um exame das propostas e relatórios feitos pelos seus integrantes revela que seus parlamentares tem realizado muitas ações que cabem a ela por determinação legal. Entretanto, pelo exame de tais documentos verifica-se que a mesma se volta apenas para o desenvolvimento de funções burocráticas rotineiras.

Observe-se que em alguns países do mundo há uma representação no parlamento que cuida de assuntos militares e desenvolve outros tipos de ações. Na Alemanha, por exemplo, existe a figura do Wehrbeauftragten des Deutschen Bundestages ou o Comissário Parlamentar das Forças Armadas atualmente exercido por Eva Högl. Essencialmente ele é um defensor dos interesses dos militares. Uma de suas principais funções é tomar as medidas cabíveis se constatar violação dos princípios de desenvolvimento de liderança e educação cívica ou de direitos básicos do Bundeswehr. Note-se que qualquer fardado, desde o soldado raso até o general, tem a opção de levar suas queixas diretamente ao Comissário Parlamentar das Forças Armadas sem aderir à cadeia de comando. O titular desta comissão está sempre se empenhando para obter informações detalhadas sobre as forças. Todos os anos costuma visitar vários locais onde se encontram quartéis das forças armadas. Durante suas visitas recebe informações não apenas de líderes militares, mas também em conversas diretas com os demais. O Comissário deve garantir o cumprimento dos exércitos ao Innere Führung, que é, em primeiro lugar, o conceito de soldado cidadão e militar totalmente integrado numa democracia liberal e numa sociedade pluralista.

Na Bósnia e Herzegovina, o principal objetivo perseguido pelo comissário da defesa é de fortalecer o estado de direito, os direitos humanos e as liberdades dos militares conforme garantido pela Constituição e convenções internacionais ratificadas pelo país. Na Austrália existe a figura do ombudsman encarregado de receber denúncias de abuso praticados contra integrantes das Forças Armadas e investigar reclamações sobre medidas administrativas tomadas em instâncias superiores. A comissão de defesa brasileira poderia ampliar suas atividades e incluir a figura do comissário parlamentar, semelhante ao germânico, para se dedicar aos interesses dos fardados em relação à carreira, às condições de trabalho e ao salário bem como atentar aos seus reclamos e expectativas, colher opiniões, identificar concepções, monitorar suas ações e encaminhar suas reivindicações.

Relações Com os Civis: Desde a criação dos Estados nacionais que geraram as Forças Armadas persiste a preocupação dos paisanos em relação aos fardados quanto à possibilidade de eles usarem seu poder para esmorecer e até inviabilizar a dinâmica do regime político. Para evitar a ocorrência de eventuais intervenções, os estudiosos do assunto propuseram duas alternativas básicas. Uma delas se centra na concessão pelos civis de autonomia profissional aos militares, na subordinação deles aos líderes políticos civis, na não intervenção dos mesmos na política e na não ingerência política nas Forças Armadas por parte dos civis. A outra é assentada no conceito de civilinização que é entendido como a presença ativa de civis nas instituições bélicas e o emprego nelas de noções civis. Sustenta que o avanço da tecnologia é o responsável pelo fenômeno da civilinização o qual aproxima cada vez mais os paisanos dos fardados, e desfaz a distinção entre civis e militares e suas organizações.

A primeira alternativa, voltada para a persecução do apoliticismo, desde há muito tempo, vem tentando guiar a grande maioria das Forças Armadas, particularmente a nossa, entretanto ela tem se mostrado muito vulnerável devido não se coadunar com a realidade objetiva. Nos Estados Unidos o US Cyber Command tem sido utilizado na segurança eleitoral. Seus integrantes tem trabalhado para embotar campanhas de influência e determinar o que conta como conteúdo político aceitável e inaceitável. Ademais, em seu esforço para reprimir provocadores estrangeiros, inadvertidamente restringem a liberdade de expressão, especialmente quando agências de inteligência forasteiras supostamente vêm atraindo americanos de forma sorrateira, para escrever posts em sites falsos.

Em Israel já foi evidenciado que reina uma falsa percepção quanto ao traço apolítico dos militares. De fato, os mesmos se vêm como um corpo profissional que atua segundo uma concepção apartidária. Acreditam que fazem parte de um exército cidadão que se apresenta como a nação em armas pois reflete os matizes da sociedade civil haja vista que os fardados são oriundos de todas as camadas sociais. Não visualizam as Forças Armadas pelo ângulo do profissionalismo militarista e sim segundo a ideia de Mamlachtiyut, que diz respeito a um ethos nacional estatista combinador da noção de pertencimento à mesma comunidade, condutas comuns e engajamento para o bem de Israel.

Outrossim, em algumas nações europeias a proposta da profissionalização se revelou inconsistente. Veja-se o caso da França, que, na década de 60 do século passado, estava envolvida em uma guerra contra a Argélia. Receosa de perder mais uma colônia, chamou o general de Gaulle para administrar o conflito. Após conceder autodeterminação aos argelinos, emergiu a República da Argélia. Muitos franceses sentiram-se traídos e fundaram a denominada Organização do Exército Secreto que junto com alguns generais tentaram dar um golpe, porém fracassaram. Recentemente, emergiu um manifesto encabeçado por generais, contendo milhares de assinaturas, advertindo que frente ao crescimento do caos no país as Forças Armadas logo seriam convocadas para conter uma guerra civil. Após algumas semanas, apareceu outro de caráter anônimo, mas seus autores declararam ser militares da ativa. O conteúdo acusava o governo de se mostrar incapaz para enfrentar o avanço do islamismo, da imigração e da violência interna. Agregue-se também o caso da Grécia em 1967 quando emergiu o Plano Prometheus elaborado pelos militares com base na justificativa de salvar a nação de um suposto regime comunista que sustentou a alcunhada ditadura dos coronéis.

Essa proposta do apoliticismo militar, que tem guiado a ação dos servidores de uniforme do nosso país desde há muito tempo, defendida por governantes, parlamentares, jornalistas, intelectuais e estudiosos de assuntos militares, não possui um mínimo de sustentação empírica. Não detém também nenhum suporte teórico. Note-se que a ideia do apoliticismo se ancora no pressuposto da neutralidade o qual não encontra base nem na Ciência e nem na Filosofia. Nesta somente a área da fenomenologia admite a epoché, que é a possibilidade da suspensão do juízo apenas no início de uma investigação científica. Esse alvitre é resultante da falsa concepção de estabilidade social, da criticável ideologia conservadora, da fragilidade do raciocínio assentado nos princípios da lógica formal e da insustentável cosmovisão funcionalista.

Tendo em vista uma melhora radical nas relações civis-militares, é imprescindível abandonar de vez essa infundada teoria do apoliticismo, que teima em segregar inutilmente os militares no interior dos quartéis para se dedicarem inteiramente aos afazeres da defesa do país. Vale dizer que é esse isolamento que facilita a elaboração por parte deles de soluções muitas vezes nada democráticas para os problemas nacionais. É crucial abandonar também o uso do princípio da identidade, o qual induz a ideia de que militar é militar e civil é civil, bem como o pensamento de que essa ideia tem que persistir, haja vista que cabe a cada um deles tarefas pertinentes e específicas. Faz-se necessário ainda civilinizar cada vez mais as Forças Armadas, pois a civilinização é o destino inexorável das instituições castrenses nos países regidos pela democracia. A visível aproximação cada vez maior dos fardados aos paisanos, bem como de suas organizações, está contribuindo decisivamente para o desaparecimento das diferenças entre uns e outros até o ponto em que provavelmente ocorrerá o ato da fusão, cujo exemplo mais aproximado é a figura do citizen in uniform existente nos países da Europa, o qual é profissionalmente regido pela Carta Social Europeia voltada aos civis.

Exercício do Comando: Muitas Forças Armadas do planeta e todas as pertencentes aos países autocráticos adotam um estilo linear de condução da tropa, isto é, na forma de uma estrutura piramidal em cujo vértice se encontra a autoridade máxima preservadora da unidade de comando. Assim sendo, é centralizadora, poucos mandam, haja vista que a quase totalidade das ordens são oriundas de uma só chefia. Nos escalões mais baixos, os indivíduos não se comunicam livremente, necessitam da intervenção dos respectivos chefes para a troca de informações. Cada setor age com autonomia, sujeitando-se somente em relação à autoridade de linha, ou seja, na vertical. Observe-se que não deve ter sido fácil para as nações do leste europeu que quiseram adentrar à comunidade europeia, após a queda do muro de Berlim, substituir o modo linear de comando em suas tropas. Nos Estados Unidos, o Exército usa a Gestão de Qualidade Total, que exige o emprego da técnica do brainstorming, requerente da busca de consenso entre ideias e opiniões. Na Suíça, os fardados empregam uma ferramenta da Gestão de Pessoas denominada liderança transformacional, cujo relacionamento é construído por meio do contato entre os integrantes da equipe. É um estilo de ação em que dirigentes e dirigidos se ajudam de forma mútua em busca de objetivos comuns.

Em diversos países democráticos, a liderança dos agrupamentos militares se mostra bem diferente da forma linear. Na Alemanha o comando se assenta no estilo denominado Auftragstaktik, ou missão dada pela finalidade, o qual possibilita que todos os integrantes da pirâmide hierárquica, desde o soldado raso até o general comandante, exercitem seu espírito crítico, sua faculdade de julgamento, sua conduta autônoma e sua capacidade de tomar a iniciativa. O militar, qualquer que seja sua graduação, pode, até mesmo em circunstâncias especiais, modificar ou deixar de cumprir as tarefas que lhes foram confiadas por superiores hierárquicos, se ele considerar que isso está de acordo com a intenção do comandante responsável pela ordem expedida.

Novamente citando os Estados Unidos, verifica-se, desde alguns anos, que vem sendo posto em prática um procedimento de liderança alcunhado de shared leadership, o qual pode ser traduzido como liderança compartilhada. Em tal modo de direção grupal, inexiste a figura de um indivíduo específico responsável pelo encaminhamento do grupo. A ênfase recai na interação dos membros da equipe, para possibilitar o exercício do comando coletivo, no qual a conduta de todos é resultante de protagonismos alternados. Ele se mostra bem adequado em operações militares carregadas de alto risco para todos os integrantes que participam dessas operações. Outro estilo também utilizado e empregado pelas tropas da Otan, o qual foi repassado de modo exitoso aos fardados da Ucrânia, se baseia no conceito de decentralized warfare. Ele confere agilidade aos agrupamentos combatentes porquanto possibilita aos líderes das pequenas e dispersas unidades pensarem e agirem por conta própria observando a opinião dos subordinados hierárquicos.

Em nosso país o exercício do comando, de forma predominante, segue o modelo linear, embora não seja incomum a prática da inquirição aos subalternos para tomar decisões que pode não a levar em conta e a promoção do incentivo à tomada de iniciativa por todos os integrantes da escala hierárquica. É um estilo de liderança que acentua a tradicional conduta de imediata obediência às ordens expedidas. Tal automatismo comportamental não se coaduna com a natureza atual do combate exigente da avaliação pessoal relativa à busca das melhores respostas a determinados tipos de perigos. Portanto, se mostra necessário rever esta forma de gerenciamento de pessoas, no sentido da adoção cada vez mais ampla e intensa de procedimentos participativos, os quais, sem dúvida, estão em sintonia com a essência do regime político democrático.

 

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Autores

  • é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de "Democracia e Ensino Militar" (Cortez) e "A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania" (Pontes).

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