Opinião

Prorrogação dos prazos dos contratos de programa no saneamento

Autor

  • Caio Freitas

    é advogado da Saneamento de Goiás S/A (Saneago) com atuação especializada em Direito Regulatório e das Concessões especialista em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Ambiental e aluno do MBA em Saneamento do IDP.

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24 de fevereiro de 2023, 15h26

Tema espinhoso tem sido a possibilidade de prorrogação dos prazos dos contratos de programa atualmente vigentes, firmados pelas companhias estaduais de saneamento básico com municípios em que atuam, para fins de reequilíbrio contratual.

Após a aprovação do novo marco legal do saneamento, foi vedada a celebração de novos contratos de programa, sendo a concessão, precedida de licitação, a forma padrão de contratação de tais serviços doravante (artigo 10 da Lei 11.445/07).

As opiniões divergem. Estudiosos do tema já escreveram sobre o ponto [1], entendendo que não seria admissível a prorrogação do prazo dos contratos por contrariar o espírito da Lei 14.026/20, que seria vedar a celebração desse tipo de vínculo, ainda que para reequilibrar o contrato.

Respeitando as valiosas contribuições dos que defendem essa posição, penso de outra maneira.

Ao se analisar friamente o texto da Lei 14.026/20, não se vê dispositivo algum que indique a proibição de prorrogação desses vínculos com o objetivo de reequilibrá-los. Pelo contrário: a lei preservou expressamente os contratos de concessão e de programa existentes na data de sua publicação, garantindo a vigência deles até seus respectivos termos contratuais (artigo 17 da Lei 14.026/20).

A primeira discussão que se põe é: o que seria o "termo contratual", mencionado na lei? Boa parte de tais contratos possui cláusula que prevê a possibilidade de prorrogação de seus prazos, previsão também contida nas respectivas leis autorizativas da delegação do serviço. Entendo que o termo compreenderia o prazo original do contrato, acrescido de eventual prorrogação.

Há que se diferenciar a proibição de celebração de novos contratos com a prorrogação de contrato já celebrado. No primeiro caso, há celebração de novo negócio jurídico. No segundo, há mera extensão de prazo de vínculo já existente, celebrado validamente sob a legislação da época, com eventual alteração na equação econômico-financeira.

Me parece que interpretações que busquem negar a eficácia de tais previsões em virtude do conteúdo de lei posterior ferem a garantia do ato jurídico perfeito, prevista no artigo 5º, XXXVI, da CF/88.

Além do mais, o Decreto 10.710/2021, que regulamentou o procedimento de capacidade econômico-financeira, proibiu a extensão de prazo dos contratos como mecanismo de reequilíbrio contratual para os fins da mencionada comprovação (artigo 7º, § 3º, I).

Como ato infralegal regulamentador, o decreto precisou trazer expressamente essa vedação, que não consta do texto da Lei 14.026/20, indicando que esse limite só existe por força de ato infralegal e, portanto, pode ser eliminado por outro ato de igual hierarquia (no caso, a expedição de novo decreto).

Há autores, inclusive, que defendem a inconstitucionalidade e a ilegalidade dessa previsão, a exemplo de Fernando Vernalha Guimarães[2]:

"[…] A norma regulamentar, a meu juízo, afigura-se contrária ao direito, por ilegalidade e inconstitucionalidade. Em primeiro lugar, analisando-se o mérito da regulamentação em si, parece-me inexistir uma relação de pertinência lógica entre a limitação desta forma de reequilíbrio econômico-financeiro e o propósito de comprovação da capacidade econômico-financeira do contrato. […]

Parece-me que uma norma de efeitos secundários como o regulamento não poderia, para os fins a que se propõe, ir a ponto de vedar a utilização pelas partes contraentes de uma forma de reequilíbrio contratual admitida implicitamente pela legislação nacional e explicitamente por leis regionais e locais, como referido atrás." (grifos nossos)

No que diz respeito ao mencionado espírito da lei, que teria por objetivo extirpar os contratos de programa do mundo jurídico, penso ser necessário avaliar o artigo 2º da Lei 11.445/07, com as alterações da Lei 14.026/20. O dispositivo consagra os princípios fundamentais do serviço público de saneamento básico, e o primeiro deles é exatamente a universalização do serviço.

Esse, me parece, é o mote da lei, a sua força motriz. Muito comum no Direito Público, a ponderação de princípios poderia ser aplicada aqui, para enunciar a universalização como o supraprincípio a orientar a aplicação da lei e dos demais princípios que ela positivou.

Questões sobre os atores que irão atingir a universalização, os instrumentos jurídicos que utilizarão, entre outros aspectos, cedem importância à meta em si. Ela é a linha mestra de interpretação e aplicação da lei, seu princípio fundamental. Tanto é que a legislação permite também a prestação direta pelo titular, não sendo compulsória a celebração de contrato de concessão para o exercício da atividade.

Além do mais, é discutível o uso da vontade do legislador como técnica hermenêutica [3] vinculante ao intérprete. Sua aplicabilidade irrestrita impediria fenômenos jurídicos amplamente admitidos, como a mutação constitucional, e daria ao legislador a palavra final sobre o sentido de qualquer texto legal, privando os demais atores de interpretá-lo adequadamente.

Poderia, ainda, discutir-se sobre o veto ao artigo 16 da Lei nº 14.026/20, que trazia a possibilidade de prorrogação dos contratos de programa e de reconhecimento como tal das situações de fato, admitindo-se a extensão de tais vínculos por mais 30 anos. O dispositivo foi vetado e o veto foi mantido pelo Parlamento, de modo que a regra não foi incorporada ao texto da lei.

No entanto, a ausência do dispositivo no corpo legal não impede que a interpretação de outros dispositivos da mesma lei possa levar a conclusões similares. Como dito, não há na Lei 14.026/20 dispositivo que vede a prorrogação do prazo dos contratos de programa como forma de reequilibrar tais vínculos, e essa vedação decorre de ato infralegal regulamentador da lei.

Ainda, o dispositivo vetado previa não só a prorrogação dos contratos de programa, mas também o reconhecimento de situações precárias como tal (prestação sem vínculo formal ou com contrato vencido). Não havia, também, qualquer condicionamento às tais prorrogações, remetendo à ideia da prorrogação discricionária. Sobre o tema, leciona o professor Egon Bockmann Moreira [4]:

"Grosso modo, a prorrogação pode decorrer de escolha discricionária ou ser método de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro. No primeiro caso, o poder concedente avaliará a conveniência de se manter a concessão sob a gestão do atual concessionário e poderá, atendidos aos limites da lei e do contrato, alargar o prazo original. […] Para essa ordem de prorrogações ordinárias, exige-se a cláusula contratual desde o edital de licitação ou previsão que assim expressamente autorize, eis que lastreadas em decisão discricionária do concedente (acolhida pelo concessionário).

A segunda categoria é também uma das escolhas disponíveis, mas com grau mais intenso de vinculação: o poder concedente deve zelar pelo equilíbrio econômico-financeiro do contrato e, no cumprimento desse dever legal, pode definir a prorrogação. […]

Por fim, merece menção o fato de que a Lei nº 8.987/1995 não estabeleceu limites (mínimos ou máximos) para a fixação do prazo contratual de concessão. […] Porém, a ausência de piso ou teto legal para o lapso contratual não significa a validade de concessões com prazos desproporcionais, mas, sim, apenas o tempo estritamente necessário para o fiel cumprimento do objeto do contrato." (grifos nossos)

Assim, é válido extrair que se buscou vedar a prorrogação discricionária com o veto ao artigo 16, o que não guarda relação com a prorrogação para fins de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Por fim, destaco que no universo de contratos de programa existentes no setor de saneamento, a maioria deles passou pela comprovação da capacidade econômico-financeira. São contratos vigentes e regulares, portanto.

Eventuais casos destes contratos em que não houve a celebração do termo aditivo posteriormente deve ser avaliada pela lente da encampação, pois a irregularidade do vínculo ocorreu por ato imputável ao poder concedente. Nessa hipótese, deverá indenizar ampla e previamente o prestador pelos investimentos não amortizados e pelos lucros cessantes decorrentes do encerramento antecipado da concessão, bem como pelos prejuízos relacionados com essa extinção prematura (art.igo 37 da Lei 8.987/95).

Tais contratos, por já terem passado pelas condições de regularidade criadas a posteriori pela Lei 14.026/20, poderiam ser reequilibrados, a fim de comportar o volume de investimentos necessários para o alcance da meta de universalização em 2033. E nesse caso, a forma menos custosa de reequilibrar esses vínculos é exatamente a dilação de seus prazos, pois se evita o impacto na tarifa, que oneraria os usuários.

Ressalto que, salvo melhor juízo, essas considerações se aplicariam aos contratos de programa vigentes e com capacidade econômico-financeira comprovada. Situações como a dos contratos vencidos e/ou sem essa comprovação demandam análise própria, que escapa do propósito do presente artigo.

 


[2] GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Apontamentos sobre o Decreto nº 10.710 e a comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviço de saneamento básico para viabilizar a sua universalização. In: GUIMARÃES, Fernando Vernalha (coord.). O novo marco legal do saneamento básico: estudos sobre o novo marco legal do saneamento básico no Brasil (de acordo com a Lei nº 14.026/2020 e respectiva regulamentação). Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 167-194.

[4] MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das concessões de serviço público. Belo Horizonte, Fórum, 2022, p. 135-140.

Autores

  • é advogado da Saneamento de Goiás S/A (Saneago) e especialista em Direito Regulatório e das Concessões, em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Ambiental.

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