Opinião

Laços entre as jurisdições constitucionais da África do Sul e do Brasil (parte 2)

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18 de fevereiro de 2023, 9h25

Continuação da parte 1

O caso Port Elizabeth
O segundo caso, Port Elizabeth, guarda relevância com o instituto do compromisso significativo por promover o que Brian Ray descreveu como a procedimentalização do processo estrutural[14], o que pode ser considerado um esboço das medidas que seriam adotadas posteriormente.

Spacca
Neste caso, tratava-se de uma tentativa de despejo de 68 pessoas, das quais 23 eram crianças, que construíram moradias provisórias em terras particulares no Município de Port Elizabeth. Os proprietários e moradores do bairro fizeram uma petição solicitando ao município o despejo contra os ocupantes, o que foi atendido.

A Corte Constitucional fundamentou sua decisão especialmente no PIE (Prevention of Illegal Eviction from and Unlawful Occupation of Land Act). lei que regulamenta relações entre o direito de propriedade e à moradia. Em decisão unânime, entendeu-se que o PIE não permite o despejo de ocupantes ilegais sem uma ordem judicial prévia e sem uma análise da equidade e da razoabilidade da remoção, a qual só pode ocorrer se todos os fatores relevantes forem levados em consideração[15].

Baseada nesse raciocínio, a Corte entendeu que não seria razoável promover o despejo, por diversas razões, dentre elas, a desnecessidade de expulsá-los para tornar a propriedade produtiva, a situação de vulnerabilidade dos ocupantes e a falta de comprometimento do município em dialogar com o grupo.

Para os fins do presente texto, destacamos dois pontos do processo de procedimentalização do litígio estrutural levado a efeito pela Corte nesse caso. Primeiro, ela adota um papel de supervisão, de modo a incentivar negociações entre o setor público e os segmentos populacionais afetados, com destaque dado pelo redator do acórdão, Ministro Albie Sachs, à mediação como forma de resolver conflitos de interesses e de concretizar princípios constitucionais em tensão[16]. Em suas palavras:

Ao procurar resolver as contradições acima, os aspectos processuais e substantivos da justiça e da equidade nem sempre podem ser separados. O papel gerencial dos tribunais pode ter que se expressar de maneiras inovadoras. Assim, um modo potencialmente digno e eficaz de alcançar reconciliações sustentáveis dos diferentes interesses envolvidos é incentivar e exigir que as partes se envolvam em um esforço proativo e honesto para encontrar soluções mutuamente aceitáveis. Sempre que possível, o engajamento face a face ou a mediação conduzida por terceiros devem substituir o combate de oponentes distantes e intransigentes[17].

Além disso, o segundo ponto é que foi enfatizada a relevância da mediação para casos futuros e que os tribunais deveriam ser cautelosos em qualificar uma ordem de despejo como justa e equitativa se não houvesse real diálogo entre o Poder Público e os ocupantes. Esta ideia foi fundamental para a elaboração do compromisso significativo no caso Olivia Road, o qual passamos a expor.

O caso Olivia Road
Com o objetivo de realizar reformar urbanas, de 2002 a 2006, ocorreram diversos e violentos despejos na cidade de Joanesburgo. Assim como outras cidades da África do Sul, durante o regime do apartheid, a segregação no espaço urbano era uma política praticada para confinar as pessoas negras nas periferias das cidades, e as pessoas brancas residiam em regiões mais centrais, mais caras e com melhor infraestrutura. Essa combinação de discriminação racial e espacial reforçou o processo de degradação das regiões periféricas, resultando em concentração populacional, pequena ou inexistente infraestrutura de equipamentos urbanos ou de lazer, bem como a existência de milhares de pessoas negras vivendo em moradias inadequadas[18]. É sobre esta espacialidade que tais políticas pretendiam agir, para reconfigurar a paisagem da cidade, sobretudo de locais degradados.No plano de regeneração de 2004, dentre as justificativas para sua realização, encontravam-se a necessidade de reforma dos prédios insalubres, sobretudo no centro, a viabilização de investimentos e a valorização dos imóveis. Por tais razões, segundo o município, deveriam ocorrer os despejos. Contudo, o plano não tratava sobre como cumprir o art. 26 da Constituição sul-africana, bem como não explicitava o que fazer com as famílias desalojadas. Eis o pano de fundo da controvérsia.

O caso inicia-se com o ajuizamento da ação pelo município no Tribunal Regional de Witwatersrand, no qual foi requerida a autorização para realizar o despejo da região que incluía Olivia Road[19]. Neste Tribunal o pedido foi negado por violar o artigo 26 da Constituição, pois se pretendia realizar o despejo sem providenciar abrigos alternativos. Note-se que tal decisão é consoante com a linha de raciocínio construída nos casos Grootboom e Port Elizabeth ao afirmar o compromisso com o direito à moradia e a necessidade de oferta de abrigos.

O município recorreu à Suprema Corte de Apelação, que cassou a decisão, autorizando o despejo. Determinou, nada obstante, que a cidade possuía o dever de providenciar abrigo àquelas pessoas que perdessem sua residência. Os residentes recorreram à Corte Constitucional, que aceitou o caso em maio de 2007. Em 30 de agosto, a Corte exarou a primeira ordem para que fosse realizado um compromisso significativo entre as partes envolvidas no litígio.

A decisão retoma os fundamentos dos precedentes Grootboom e Port Elizabeth[20], para afirmar que as partes devem se engajar significativamente[21], isto é, devem realizar um compromisso significativo, assim que possível, para resolver os conflitos e as dificuldades expostas na ação à luz dos valores da Constituição, dos deveres constitucionais do município e dos direitos e deveres dos cidadãos. O compromisso é significativo, pois as partes devem participar realmente na elaboração da solução para a situação. Assim, são elas as protagonistas do desate do problema.

Depois de dialogar por alguns meses, as partes entabularam um acordo parcial, segundo o qual o governo municipal não realizaria o despejo e implementaria medidas de limpeza da área residencial, acesso à água e saneamento básico. Outras medidas foram acordadas e a cidade aceitou continuar o diálogo por longo prazo[22].

Encerrada a primeira fase de negociações, as partes retornaram à Corte para que fossem aprovados os termos do acordo e para que fosse proferida decisão sobre a adequação do ajuste aos requisitos do caso Grootboom. A Corte não analisou esta questão, preferindo formalizar o compromisso significativo como um requisito constitucional a ser realizado em todos os futuros casos em que o despejo de residentes pudesse ocorrer[23].

Na decisão a Corte justificou a existência do compromisso significativo nos seguintes dispositivos constitucionais: a seção 152, que trata do engajamento das comunidade locais na resolução de matérias relacionadas à região; a seção 7(2), que fixa o dever estatal de promover e respeitar os direitos fundamentais; a seção 26, que trata do direito à moradia e da importância do diálogo com cidadãos que podem ser despejados, antes que sejam realocados; e a seção 195 que prescreve valores de participação pública nas decisões administrativas[24].

A Corte definiu quatro elementos que devem ser levados em consideração para realizar o compromisso significativo. Primeiro, o compromisso deve seguir um padrão flexível e adaptável aos contextos específicos de cada caso. Segundo, sempre que houver uma política pública de larga escala, como os planos de regeneração urbana, que puderem afetar uma parcela da população, o município deve realizar o compromisso logo no início do planejamento. Vale dizer, o diálogo com os cidadãos deve anteceder a etapa judicial, devendo ocorrer no momento de formulação da política pública. Ainda que isso imponha um custo à Administração, a participação deve ser fomentada para que os grupos afetados sejam participantes ativos na formulação da política e não meros receptores de prestações estatais. Terceiro, reconhece-se a vulnerabilidade dos cidadãos afetados pelos despejos e a necessidade de representação especializada. Por isso, organizações da sociedade podem apoiar as demandas dos grupos e facilitar o processo de negociação, fornecendo informações e contribuindo para que as negociações sejam bem-sucedidas. Quarto, o governo deve manter um arquivo público a respeito de cada compromisso significativo firmado, para que o Poder Judiciário possa analisar não só o resultado das negociações, mas o próprio procedimento utilizado para promover o diálogo entre as partes. Assim, é possível verificar se foram adotadas todas as medidas necessárias para alcançar um acordo com os grupos afetados. Importa frisar que, segundo a Corte, a falha em realizar o compromisso pode ser, per se, razão suficiente para negar um pedido de despejo.

Continua na parte 3

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