Opinião

Inteligência artificial e Judiciário: os dois lados da moeda

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  • Eduardo Helaehil

    é advogado especializado em propriedade intelectual e novas tecnologias pela FGV sócio do Jacinto Law e diretor do Digital Rights.

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17 de fevereiro de 2023, 12h11

No último mês de janeiro, um juiz chamado Juan Manual Padilla, da Colômbia, fundamentou uma sentença de uma ação de direito à saúde com as respostas do ChatGPT [1], uma inteligência artificial (IA) desenvolvida pela OpenAI que ganhou notoriedade ao redor do mundo nas últimas semanas.

Para sustentar o uso do ChatGPT, Padilla argumentou que a Lei nº 2.213 de 2022 [2] da Colômbia permite o uso de tecnologias em processos judiciais, incluindo ferramentas como IAs.

Embora Padilla tenha declarado em entrevista que "juízes precisam estar atentos à evolução da justiça e da tecnologia" [3], o caso gerou um misto de empolgação e preocupação em juristas de todas as nações.

Não é de hoje que tecnologias são implementadas nos Judiciários de diversos países para otimizar a velocidade e eficiência de julgamentos. O que preocupa, é que ao transferir a carga analítica à uma IA, o resultado da ação estará sujeito ao viés da própria IA, que nem sempre acerta a partir das inferências que recebe.

Como exemplo de um viés por parte de uma IA, leia adiante uma história que também repercutiu na mídia recentemente.

Na década de 1980, um empresário de nome George Winward adquiriu um quadro pintado entre o século 16 e 18 que retrata Jesus no colo de Maria. Apesar da obra não ter uma identificação clara de autoria, Winward sempre acreditou que o pintor responsável seria o renascentista Rafael Sanzio.

A hipótese dele nunca foi confirmada por historiadores, mas o professor Hassan Ugail, da Universidade de Bradford do Reino Unido, diz ter solucionado o mistério.

Com o uso de uma IA, Ugail fez uma comparação entre a obra de autoria desconhecida e a obra conhecida como Madona Sistina, uma pintura famosa que Rafael fez em 1512 e que se parece muito com o primeiro quadro.

A partir da comparação, a IA concluiu que existe 97% de semelhança entre as Marias e 86% entre as crianças que representam Jesus. Por ser a semelhança maior que 75%, um percentual elevado considerando o nível de precisão da tecnologia, Ugail considerou que as pinturas são idênticas e, portanto, a autoria das duas obras é do italiano Rafael [4].

Ocorre que alguns especialistas em arte não concordaram com a conclusão da IA e defenderam que a primeira obra se trata de uma cópia da Madona Sistina, feita por algum pintor desconhecido, não por Rafael.

Apesar do resultado positivo da comparação da IA, em virtude das divergências de especialistas em arte, que consideraram fatos históricos e não apenas elementos objetivos das pinturas, a autoria da obra ainda não foi atribuída oficialmente ao Rafael.

Independentemente de quem está correto, só o fato de existir uma dúvida já causa desconforto. Agora reflita que o mesmo pode ocorrer com o uso de IAs pelo Judiciário, inclusive em processos que envolvem direitos fundamentais.

Ao inspecionar inferências e evidências de uma ação (da mesma forma como foram inspecionados os elementos dos dois quadros), uma IA pode concluir equivocadamente pela aplicação ou não de um direito (assim como a IA do professor Ugail concluiu que a pintura seria do Rafael mesmo diante do posicionamento contrário de especialistas).

Fatos e contextos podem mudar o resultado de uma ação e, por enquanto, nenhuma IA é capaz de analisá-los como um juiz humano. Mas acalme-se, isso não quer dizer que IAs não possam ser usadas pelo Judiciário nacional.

Na realidade, considerando que o Brasil tem mais de 77 milhões de processos em trâmite, conforme o relatório "Justiça em Números" publicado pelo CNJ em 2022 [5], toda IA que colaborar com a velocidade e a eficiência do Judiciário deve sim ser implementada, mas com cautela, para que direitos não sejam suprimidos por análises objetivas que não interpretam contextos.

Toda história tem dois lados da moeda.

E caso se pergunte sobre a regulação de IAs no Brasil, saiba que o PL nº 21/2020, que propõe a criação de um Marco Regulatório sobre o tema, já foi aprovado na Câmara dos Deputados em 2021 e está no Senado para votação. Em breve certamente o projeto avançará.


[1] Acesse o ChatGPT em chat.openai.com

[2] No artigo 1º, a Lei tem o objetivo de "implementar el uso de las tecnologías de la información y las comunicaciones en las actuaciones judiciales y agilizar el trámite de los procesos judiciales ante la jurisdicción ordinaria".

[5] Acesso ao relatório "Justiça em Números 2022" em www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/11/justica-em-numeros-2022.pdf

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