Opinião

​​​​​​​Caso Lojas Americanas: reflexões à luz do Direito Penal e do Processo Penal

Autores

  • Rômulo Monteiro Garzillo

    é advogado sócio-fundador do Garzillo de Azevedo Marques Advogados mestre em filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) doutorando em Direito do Estado pela USP e professor de Direito Constitucional da Faculdade Nove de Julho.

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  • Laura de Azevedo Marques

    é advogada e pós-graduada em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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15 de fevereiro de 2023, 18h14

A crise financeira nas Lojas Americanas inevitavelmente nos remete ao trágico ano de 2001: não pelo atentado às torres gêmeas, mas pelo escândalo da companhia de energia Enron Corporation, cujo faturamento havia alcançado a casa dos US$ 100 bilhões. As razões do colapso da Enron  que culminaram na maior concordata dos EUA  foram bastante semelhantes às que levaram a empresa brasileira a entrar com pedido de recuperação judicial na última quinta-feira, quais sejam: malabarismos contábeis utilizados como meio de maquiar as dívidas da empresa. Assim como o caso brasileiro, a quebra da Enron gerou um abalo sísmico na economia norte-americana, causando prejuízo a investidores e demissões em massa.

Nos EUA as consequências penais foram levadas a cabo pelo Departamento de Justiça, que não poupou os chefes executivos Ken Lay e Jeffrey Skilling de diversas condenações por fraude bancária, declarações financeiras falsas e fraudes com ações, contra acionistas e autoridades governamentais. Voltando os olhos para a justiça brasileira, resta saber como o Direito Penal e o Processo Penal pátrio serão aplicado às pessoas físicas responsáveis pela derrocada da varejista brasileira.

Em primeiro lugar, busquemos compreender com maior clareza os poucos elementos fáticos que temos à disposição, a fim de que possamos realizar um breve esboço das possíveis respostas penais in casu.

Em síntese, a origem de todo o problema decorreu de um tipo específico de operação financeira, realizada pelas Lojas Americanas, conhecido como operação forfait, ou simplesmente risco sacado. Trata-se de mera operação triangular em que as vendas são antecipadas pelos fornecedores via empréstimo bancário que, por seu turno, são quitados mediante o pagamento de juros compostos. A lógica de tal operação é simples: ela serve para que o fornecedor dos produtos receba antes, porém tal pagamento se dá mediante empréstimo bancário realizado pela varejista.

A "falha" contábil que gerou o que as Lojas Americanas chamaram de "inconsistências em lançamentos contábeis" teria decorrido de "erro" no momento do registro das dívidas. Isto é: ao invés da varejista registrar o passivo como "dívidas bancárias"  e, logo, majoradas pelos juros  fazia-o como se fossem simples despesas com o fornecedor. A suposta desatenção contábil, ao longo de anos, teria gerado o rombo milionário. O que chama a atenção, contudo, é o fato de uma grande companhia  que inclusive contratava uma auditoria especializada para analisar sua contabilidade e detectar qualquer tipo de incongruência  não ter notado o imenso buraco-negro que engolia a própria empresa.

A pergunta que fica é: houve conivência? Má-fé? Fraude?

Muito se tem falado da existência de supostas "fraudes". Com as investigações ainda no início é difícil dizer qual dos diversos tipos penais poderiam incidir no presente caso. Por exemplo, pode ter havido fraude tributária (artigo 1º, da Lei nº 8.137/90); fraude contra a economia popular (incisos VII e X do artigo 3º da Lei nº 1.521/51); fraude contra o Sistema Financeiro Nacional (artigo 6º, da Lei nº 7.492/86), bem como o famigerado crime de insider trading (artigo 27-D, da Lei nº 6.385/76), que nada mais é que o uso de informações privilegiadas como meio de obter vantagem indevida no mercado de capitais.

Das tantas fraudes previstas no longo cardápio de tipos penais, um, em especial, nos chama atenção: o crime de fraude a credores (ou estelionato falencial), previsto no artigo 168 da Lei de Falências, que prevê pena de três a seis anos para quem "Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem".

Não obstante, o §1º do artigo 168 ainda prevê o aumento de pena de 1/3 (um terço) a 1/6 (um sexto) se o agente: "I – elabora escrituração contábil ou balanço com dados inexatos; II – omite, na escrituração contábil ou no balanço, lançamento que deles deveria constar, ou altera escrituração ou balanço verdadeiros". Outro elemento do tipo  que alguns autores consideram desnecessário, à luz do artigo 29 do Código Penal  está na explícita previsão da possibilidade de punir coautores contratados pela empresa, como é o caso de auditores, ao dispor, no §3º do mesmo artigo que "Nas mesmas penas incidem os contadores, técnicos contábeis, auditores e outros profissionais que, de qualquer modo, concorrerem para as condutas criminosas descritas neste artigo, na medida de sua culpabilidade".

Em tese, os dirigentes das Lojas Americanas poderiam ter calculado o momento exato para veicular publicamente o rombo contábil para, em seguida, entrarem com o pedido de recuperação judicial, a fim de resguardarem seu patrimônio dos credores que, em sua maior parte, são bancos. E foi justamente o que aconteceu. Dias após a publicização do rombo, as Lojas Americanas entraram com pedido liminar de recuperação judicial, concedido pela 4ª Vara Empresarial da Capital do Rio de Janeiro. Em sequência, ao perceber a movimentação da varejista, o Banco BTG entrou com petição no Tribunal de Justiça Fluminense, visando reverter a liminar. Segundo os advogados do Banco BTG "Os três homens mais ricos do Brasil (…), ungidos como uma espécie de semideuses do capitalismo mundial ‘do bem’, são pegos com a mão no caixa daquela que, desde 1982, é uma das principais companhias do trio. Dois dias depois, têm a pachorra de vir em Juízo pedir uma tutela cautelar, preparatória de uma recuperação judicial, para impedir os credores de legitimamente protegerem o seu patrimônio à luz da maior fraude corporativa de que se tem notícia na história do país".

Olhando agora para o campo do processual penal, nos preocupamos com a excessiva exposição midiática do caso. É inquestionável que a crise nas Lojas Americanas  e suas nefastas consequências para a economia popular, sobretudo em razão das milhares de demissões que ainda estão por vir  exige ampla cobertura dos meios de comunicação, a fim de melhor comunicar e informar a sociedade civil. Por outro lado, é preciso cuidado para não transformar a informação jornalística em sanha punitivista, termo cunhado como populismo penal. O populismo penal já deixou marcas na sociedade brasileira, como ocorreu com a operação "lava jato", quando o Processo Penal foi muito além de punir criminosos e acabou afetando a economia brasileira. No caso, em nome de um sentimento justiceiro, houve a destruição de todo o importante e tradicional setor de engenharia voltada à construção da infraestrutura brasileira.

Nesse sentido, defendemos uma investigação que respeite o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência. Outrossim, é imperioso que as diligências levadas a cabo pelas autoridades consigam analisar com precisão a existência (ou não) de elementos de autoria e materialidade. Muitas vezes, em crimes societários, há quem defenda que a denúncia possa ser mais genérica quanto a individualização das condutas, por tratar-se, em tese, de crimes de maior complexidade. Entretanto, essa não tem sido a interpretação tanto do STJ como do STF [1], sendo sempre necessário que a investigação seja cautelosa e aponte, com acurácia, a conduta de cada agente.

Assim, mesmo diante de crime complexo e de alto destaque midiático, defendemos que o processo penal seja pautado nos limites da lei e em respeito às garantias processuais, para além de toda pressão midiática. As cicatrizes da operação "lava jato"  que abusou de prisões, buscas e outras cautelares, em nome do populismo penal  devem servir como importante reflexão no caso das Lojas Americanas: não basta punir, é preciso punir dentro dos limites do Direito.

 


[1] Vide STJ, RHC 19.764; STJ, RHC 2.882/MS; STJ, REsp 302.543/SP; STJ, HC 56.058/SP; STJ, HC 43.210/SP; STF, HC 79.399/SP.

Autores

  • é advogado, sócio-fundador do Garzillo de Azevedo Marques Advogados, mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutorando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP e professor de Direito Constitucional da Faculdade Nove de Julho.

  • é advogada, sócia-fundadora do Garzillo de Azevedo Marques Advogados, pós-graduada em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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