Opinião

Consequências da aposição de condição em negócios jurídicos não condicionáveis

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13 de fevereiro de 2023, 11h17

A condição é uma modalidade do negócio jurídico, isto é, um elemento acidental [1], que provém da vontade das partes, e subordina a eficácia do negócio a evento futuro e incerto. É, portanto, um limitador da vontade, como afirma San Tiago Dantas, acompanhado majoritariamente pela doutrina [2]. No entanto, nem toda condição pode ser aposta ao negócio jurídico, bem como nem todo negócio jurídico é condicionável.

A primeira hipótese — condições impossíveis, ilícitas e outras — está fora do escopo desse trabalho. Quanto à segunda, Vicente Ráo afirma que existem dois tipos de atos incondicionáveis: os que, de algum modo, violem "o sentimento moral ou o interesse público", ou as declarações unilaterais receptícias (que exigem certo nível de certeza pela afetação ao patrimônio alheio) [3]. No mesmo sentido estão Beviláqua [4] e Carvalho Santos [5], e no direito estrangeiro, Cunha Gonçalves [6].

Em continuidade, Ráo afirma que os negócios jurídicos, em regra, são condicionáveis, com exceções que estão vinculadas à natureza do ato [7]. O brilhante doutrinador enumera três principais ocasiões de negócios que não podem ser condicionados: os que envolvem direitos da personalidade, os que são direitos-dever e os que, por conta de sua função, não comportam elementos de incerteza [8].

Francisco Amaral, destoando pontualmente, defende que as exceções à aposição de condição em negócios jurídicos são os atos unilaterais que devem ter eficácia imediata e os atos jurídico em sentido estrito, que têm efeitos decorrentes da lei [9]. Estes, segundo a nomenclatura de Amaral, denominam-se atos puros.

O autor pontua que a aposição de condição é um exercício da autonomia privada. Sendo assim, em campos do direito no qual há pouco espaço para sua manifestação, como no direito da família, essa modalidade não é admitida [10]. Veja trecho no qual o autor sintetiza seu pensamento:

"Pode-se assim dizer, sinteticamente, que são incondicionáveis: a) os negócios jurídicos que, por sua função, inadmitem incerteza; b) os atos jurídicos lícitos; c) os atos jurídicos de família, em que não atua o princípio da autonomia privada, salvo reduzidas exceções, pelo fundamento ético-social existente; d) os atos referentes ao exercício dos direitos personalíssimos". (AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução [livro digital]. 10 ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2018). 

Salvio de Figueiredo Teixeira, de modo mais sucinto, afirma que os negócios que envolvam relações de estado das pessoas são incondicionáveis, ao passo que os de cunho econômico são, em quase totalidade, condicionáveis (com ressalva para renúncia à herança, por exemplo) [11]. Essa posição é compartilhada por Carlos Roberto Gonçalves [12].

Silvio Rodrigues, de modo diverso, afirma que atos que não admitem condição são os que necessitam constituir-se desde logo de maneira definitiva, de modo que seria inconveniente permitir que uma condição obste a criação de uma situação permanente [13].

Cumpre pontuar, pois, que não parece haver uniformidade na doutrina quanto aos negócios e atos jurídicos incondicionáveis, de modo que, para nós, deve haver uma análise casuística da situação, de modo a analisar se o caso concreto pode ser encaixado em alguma das exceções. Para nós, contudo, os autores parecem convergir para a distinção de atos condicionáveis/incondicionáveis a partir de uma ideia dualista de interesse público e privado.

Uma vez que há negócios que não podem ser submetidos a cláusula condicional, portanto, devemos nos perguntar qual o efeito sobre a validade e eficácia dos negócios jurídicos incondicionáveis nos quais, porém, foi aposta condição.

Ráo explica que em negócios que envolvam direitos da personalidade a condição considera-se não escrita, de forma que eles "conservam sua eficácia plena (…) desaparece a condição, não o direito" [14]. No segundo contexto, envolvendo direito-dever, Ráo defende que o negócio deve ser considerado nulo caso condicionado, bem como não produz qualquer tipo de efeito. Já na terceira situação, na qual o negócio não comporta aumento de incerteza devido à sua natureza, o autor defende que a condição deve ser considerada como não escrita, e conservar o restante do negócio — como em casos de reconhecimento de filhos e emancipação.

Francisco Amaral, de forma mais sucinta, sustenta que a regra é de que a condição deve não ser considerada, subsistindo o restante do ato. Há negócios, porém, que são invalidados, como o casamento e a adoção. O autor, como os demais outros, não estabelece critérios para aferir qual consequência irá recair em cada caso. Em uma análise de seus exemplos, porém, podemos aferir que negócios jurídicos que estejam cercados de certo interesse público sofrem com a invalidade, e não a desconsideração da condição.

Silvio Rodrigues, seguindo a tendência da doutrina, não oferece critérios objetivos, mas enumera que casos como o casamento e aceitação de herança estão sujeitos à nulidade caso condicionados, ao passo que a condição na emancipação é considerada não escrita [15].

Carlos Roberto Gonçalves e Salvio de Figueiredo se limitam a afirmar que existem negócios incondicionados, sem explicar quais seriam os resultados da aposição de condições neles.

Paulo Duarte, ao falar da designação condicionada de um árbitro, defende que se deve considerar sempre a autonomia privada e vontade das partes em um negócio jurídico. Dessa forma, em negócios condicionados nos quais não se aceita essa modalidade, ela deve ser tida como não escrita, conservando o negócio [16]. Ressalva-se, porém, questões de ordem pública e de cunho ético-moral, como anotou Vicente Ráo, pois o ordenamento jurídico não admite a sobreposição da autonomia privada ao interesse público.

Desse modo, parece-nos que o negócio jurídico não condicionável no qual foi aposta condição pode ter dois destinos: 1) a desconsideração da condição, conservando o restante do negócio como se ela não fosse escrita; e 2) a nulidade e ineficácia do negócio por inteiro. As possíveis consequências, no entanto, não parecem ter sido tratadas na doutrina de forma geral e abstrata, cuidando mais os autores a tratarem de casos específicos e, a partir daí, determinar o possível resultado da aposição de condição.

Sendo assim, parece-nos que a aposição de condição em negócio que não a admite deve ser analisada casuisticamente, levando em consideração qual a razão de o negócio não admitir acréscimo de incerteza para, a partir daí, afirmar se devemos desconsiderar a cláusula acidental ou nulificar o negócio [17]. A doutrina, com destaque para Vicente Ráo e Salvio de Figueiredo Teixeira, parece adotar, porém, uma linha que relaciona a nulidade do ato às questões que envolvem algum nível mais elevado de relevância social.

 


[1] Sobre a nomenclatura, Caio Mário da Silva Pereira explica que "[c]omo não integram o esquema natural do negócio, dizem-se acidentais  accidentalia negotii , não no sentido de que concretamente o negócio se desenvolva sem elas, pois que na verdade o vinculam para sempre, mas na acepção de que a figura abstrata do ato negocial se constrói sem a sua presença". (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: Introdução ao direito civil – Teoria geral de direito civil [livro digital]. 34 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022).

[2] "Estes fatos, estas circunstâncias, as quais pode ficar subordinada a eficácia de um ato jurídico, chamam-se — modalidade dos atos jurídicos. São as autolimitações da vontade. Há três espécies de modalidades (…) A condição é um evento qualquer, futuro e incerto, do qual se faz depender a eficácia de um ato jurídico". (DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. Edição histórica. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 303-304)

[3] RÁO, Vicente. Ato jurídico. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 251.

[4] BEVILÁQUA, Clóvis. Theoria geral do Direito Civil. 1953, p. 296; Comentários ao Código Civil, v. 1. 1940, p. 368.

[5] SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado. 1958, v. 3, p. 15.

[6] GONÇALVES, Luiz Cunha. Tratado de Direito Privado, 1956, v.4, t. 2, p. 576.

[7] RÁO, Vicente. Ato jurídico. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 251.

[8] RÁO, Vicente. Ato jurídico. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 251.

[9] "Não comportam, assim, condição, os negócios jurídicos unilaterais que devam ter eficácia imediata, não admitindo incerteza, como a aceitação e renúncia de herança (CC, artigo 1.808, 1a parte), ou de legado (…) Outra categoria, a dos atos jurídicos em senso estrito, em que é irrelevante o intento das partes, também inadmite a condição, precisamente porque os efeitos são determinados em lei, diversamente do negócio jurídico, cuja eficácia é ex voluntate". (AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução [livro digital]. 10 ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2018).

[10] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução [livro digital]. 10 ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2018

[11] "A condição, o termo e o encargo implicam certas restrições, obstando a aquisição do direito, impedindo seu exercício, determinando a perda de sua eficácia, ou, ainda, importando em imposição ao que, em virtude do negócio, se torna titular do direito. Ora, isso não se compatibiliza com os atos relativos ao estado das pessoas, como o casamento, a adoção ou a emancipação.

Em regra, são admissíveis nos que tenham um conteúdo econômico, mas, mesmo em relação a esses, se há de fazer uma ressalva, pois a aceitação e renúncia da herança não admitem condição nem termo (artigo 1 .808)".

(TEIXEIRA, Salvio de Figueiredo (Coord). Comentários ao código civil. Rio de Janeiro: Forense, v. 2, 2008, p. 298-299).

[12] "As condições são admitidas nos atos de natureza patrimonial em geral, com algumas exceções, como na aceitação e renúncia da herança, mas não podem integrar os de caráter patrimonial pessoal, como os direitos de família puros e os direitos personalíssimos. Não comportam condição, por exemplo, o casamento, o reconhecimento de filho, a adoção, a emancipação etc".

(GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro [livro digital]. 20 ed. São Paulo: Saraiva, v.1, 2022)

[13] "Negócios há, entretanto, que por sua natureza repelem a idéia de condição. São atos geralmente ligados ao Direito de Família ou ao Direito das Sucessões e que devem, desde logo, constituir-se de maneira definitiva, criando uma situação permanente. Seria inconveniente permitir que a presença de uma condição, que representa um elemento de incerteza, pendesse sobre tais atos, ameaçando sua eficácia". (RODRIGUES, Silvio. Direito civil – parte geral. 32 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 242).

[14] RÁO, Vicente. Ato jurídico. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 253.

[15] RODRIGUES, Silvio. Direito civil  parte geral. 32 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 243.

[16] "O legislador presume, naturalmente, que as partes só aceitam vincular-se condicionalmente, e que, por conseguinte, não valendo a condição, não estão dispostas a obrigar-se. Ora, no caso da designação de árbitro sujeita a condição, é evidente para qualquer um que a vontade presumível do declarante (aquela vontade que qualquer declaratário normal lhe atribuiria), para o caso de não poder valer a condição, vai no sentido da manutenção da designação, pois é óbvia a preferência de qualquer litigante (preferência reconhecível para um declaratário normal) por um colégio arbitral que integre um árbitro designado por si, em vez de outro que seja nomeado pelo tribunal. O que corresponde, de resto, como vimos, ao modo supletivo de determinação de árbitros. Da nulidade da condição aposta ao acto de designação de árbitro não resultaria, pois, a nulidade deste último, que ficaria ileso, dando-se aquela como não escrita. Note-se, de resto, que, como lucidamente observa MENEZES CORDEIRO, ob. cit., p. 719, é essa a solução que o legislador estabelece em várias hipóteses em que estão causa condições apostas em actos jurídicos em relação aos quais não assiste ao declarante 'liberdade de estipulação' (o que é próprio dos simples actos jurídicos)". (DUARTE, Paulo. A intervenção do tribunal judicial no processo de constituição do tribunal arbitral e o princípio do contraditório. In: Revista da faculdade de direito da ULP, v.1, n.1, 2012, p. 9. Disponível em < https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/2970>).

[17] Nesse sentido: "[q]uestão que não pode ser resolvida uniformemente é a que diz com as conseqüências de impor-se a um ato ou negócio jurídico a cláusula não admissível. Variam essas conseqüências, dependendo da cláusula e da natureza do ato ou negócio". (TEIXEIRA, Salvio de Figueiredo (Coord). Comentários ao código civil. Rio de Janeiro: Forense, v. 2, 2008, p. 299).

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