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Consultor Jurídico

Andréia Meneses: Shakira, Miley Cyrus e Daniel Alves

12 de fevereiro de 2023, 17h09

Por Andréia Alvarenga de Moura Meneses

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As redes sociais parecem ser o termômetro dos assuntos a serem debatidos na sociedade. O papel que antes era quase que exclusivo da imprensa, agora se apresenta opaco. Entre opiniões baseadas e aquelas sem base nenhuma, o que a garotada convencionou chamar de "vozes da minha cabeça", embora capacitista, o termo "pegou" entre os mais jovens de nós. Memes, fake news e debates aprofundados e inusitados, enfim, os trend topics mudam a cada hora.

Divulgação
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Mas alguns assuntos teimam em pular das redes sociais para as rodas de conversas, para os corredores dos escritórios e grupos de whatsapp do trabalho.

Nas últimas semanas, surgiram duas músicas muito representativas. Em 13/1/2023, data do aniversário do ex-marido, o ator australiano Liam Hemsworth, a multimídia cantora Miley Cyrus lançou a música Flowers (Flores), um tributo-resposta à canção When I Was Your Man (Quando Eu Era Seu Homem), interpretada por Bruno Mars, de 2012, que seria a música escolhida por Hemsworth na época da separação do casal [1].

Dois dias antes, em 11.01.2023, Shakira, ícone pop latina, lançou a música-desabafo P'á Tipos Como Tu (Pra Sujeitos Como Você), revelando as mazelas do fim do relacionamento com o jogador de futebol Gerard Piqué [2]. A cantora teria descoberto a traição do então marido após constatar que a sua geleia de morango estava sumindo da geladeira, o que demonstraria que uma terceira pessoa estava consumindo o produto, pois nem os filhos nem Piqué gostam de geléia de morango.

Mas o que esses acontecimentos têm de relevante para o pensamento jurídico em especial?

A resposta é tudo e nada ao mesmo tempo. O fato de duas mulheres empoderadas manifestarem publicamente suas insatisfações com relacionamentos afetivos ainda causa controvérsia. Por um lado, as manifestações negativas nas redes sociais foram evidentes, como em toda "pauta de costumes". Mas isso demonstra que o mundo ainda tem muito a debater sobre a agenda feminina e  por que não?  feminista.

Mas não devemos cair na armadilha de um pensamento no sentido de que isso não tem nada a ver com o Direito ou com o conhecimento das disciplinas complementares que devem permear as decisões políticas e também as judiciais.

Aprendemos que, na tomada de decisões das políticas públicas, por exemplo, o Direito não pode vendar os olhos para as demais áreas do conhecimento humano, sob pena de políticas ineficazes e desconectadas da realidade, o que não é raro.

Se somos uma sociedade com altíssimos índices de feminicídio, apesar de todo o bloco de legalidade que envolve a Lei Maria da Penha, um avanço necessário, sem dúvidas, estamos falhando em algo, como diz o professor doutor Emerson Moura [3] em suas aulas. Mas em que estamos falhando? Como a maioria da população é feminina e a nossa agenda é silenciada, quando não prejudicada por retrocessos?

Revisitando os posts nas redes sociais, é possível observar que tanto Miley quanto Shakira eram muito tolhidas por seus maridos. Cutucadas quando sorriam, quando acenavam, quando falam algo "inadequado", até mesmo quando colocavam a língua para fora. Até que ponto os maridos acham que estão "protegendo" as mulheres delas mesmas?

Note que Miley e Shakira são mulheres brancas, independentes financeiramente, os ícones mundiais de suas áreas de atuação e, no entanto, alguma coisa faz com que sua atitude seja censurada em algum momento. Não há apoio nem empatia.

Simone de Beauvoir [4], na sua icônica e quase nunca lida obra O Segundo Sexo faz uma linha do tempo muito útil para tentarmos ao menos entender essa situação.

Nos tempos ancestrais, em que mulheres e homens estavam submetidos aos caprichos da natureza, o feminino imperava. No clã, na tribo, a linhagem da mulher ditava o futuro das pessoas. Mas a partir do momento em que o homem, com mais força física, passou a domar o conhecimento do manejo do metal, a essência do masculino perpassa todas as relações sociais, e isso vem até hoje.

A mulher saiu da liderança do clã e do sacerdócio e só teve dois lugares na escala social a partir de então: ou num pedestal inalcançável de veneração e respeito, ou na subalternidade da inferioridade que lhe é atribuída por muitas falácias sociais.

Homens, domando o fogo e o metal, fixando a moradia e tomando conta da coletividade, determinaram que à mulher cabia, na divisão do trabalho, a lida doméstica. Não que essa divisão não seja justa, o problema é que socialmente o trabalho doméstico da mulher, em sua constância para manter a família e a tribo, passou a ser estigmatizada como inferior. Ao homem cabia a exploração, a inovação, a guerra, à mulher, a manutenção de sempre, o trabalho doméstico que nunca acaba e consome o tempo inteiro.

Como o ser humano aprendeu desde sempre que "a propaganda é a alma do negócio", determinou-se que a mulher seria um ser de segunda categoria, ao argumento falacioso de que ela é mais fraca e tem a desvantagem de gerar e menstruar todo mês.

Mas as mulheres só fazem reclamar? Longe disso. Embora haja uma grande muralha para as pautas femininas e feministas  a questão etimológica é uma delas  as mulheres sempre tiveram que lutar muito por sua sobrevivência e para ocupar os espaços sociais. Shakira e Miley são ricas e brancas, mas sofrem das mesmas mazelas das mulheres pardas, negras, indígenas, brancas da classe trabalhadora, mesmo as de classe média. Se buscarmos na nossa memória, cada uma tem uma lembrança de um ato sexista sofrido, na simples "cutucada" do pai, do irmão, do namorado, para "se comportar", até as atrocidades dos crimes sexuais e, por fim, o feminicídio, o crime máximo de calar a mulher para sempre.

Em 23/1/2023, o jogador de futebol Daniel Alves foi detido na Espanha, acusado de suposta prática de crime de estupro perpetrado dentro de uma boate [5]. A repercussão foi, como esperado, muito grande. O que não espanta é o número de detratores da vítima, que teve que renunciar a seu direito de obter uma indenização do ofensor para provar seu ponto.

A sobrevivente, no caso, só foi capaz de reportar o crime às autoridades graças a um protocolo de segurança das mulheres, uma política pública implementada pela Comunidade de Barcelona em casas noturnas, para combater os estupros nas boates, o que foi muito noticiado e avaliado positivamente.

No Brasil, o estado de São Paulo promulgou a Lei 17.621, de 3/2/2023, que procura estabelecer um protocolo semelhante nas casas noturnas, o que é uma excelente iniciativa.

Mas a ideia da mulher gold digger, linda, mas interesseira e maldosa, que quer fama e fortuna às custas de um jogador de futebol bem-sucedido e ingênuo, é outro exemplo da propaganda sexista, baseada, no dizer de Beauvoir, no sentido imagético dado à viúva negra, que mata o macho da espécie após a cópula. Devemos nos perguntar até que ponto vamos culpar a vítima.

Lembro-me das palestras de Angela Davis [6], no sentido de que a vítima é acusada de ter o corpo errado, a pele errada, no lugar errado e com a roupa errada. Todo o erro está na vítima, tenha ela dois ou 90 anos de idade, o fato é que os crimes sexuais de sexuais não têm nada, mas refletem uma relação de poder.

O homem que busca sexo consensual, pago ou gracioso, não tem interesse em cometer o crime de estupro, que está relacionado à perpetuação de uma violência mais simbólica no sentido de opressão do que outra coisa.

É evidente que, no plano individual, as consequências para a sobrevivente são horríveis, há uma marca na alma a partir da violência sofrida. Mas do ponto de vista do crime e de suas relações sociais inerentes, a questão tem essa zona cinza de perpetuação de estamentos de poder do homem sobre a mulher, sobre os corpos das mulheres.

O nível mais leve é a censura pública, Shakira e Miley sorriem e encantam o mundo, acenam para ele, mas os maridos as detêm, como que "para sua própria proteção".

Apesar de todas as conquistas femininas, no Brasil passamos de seres relativamente incapazes à Presidência da República em 100 anos, o aspecto foucaltiano do poder sobre os corpos femininos exercidos por pais, irmãos, namorados, maridos, pelo Fiscal, pelo Juiz, pelo Deputado, pelo Estado, enfim, todos querem tolher os corpos femininos.

Em um estudo da década de 2000 [7], o Cepal já destacava o papel das mulheres na melhoria da qualidade de vida da população. Devemos nos perguntar se esse papel desempenhado pela mulher na sociedade, alinhado à novel acepção do desenvolvimento "feminino" na economia [8], e se o dever de cuidado doméstico delegado (ou relegado) às mulheres revela, enfim, a vocação para a sustentabilidade inerente à condição humana feminina.

Cabe à comunidade acadêmica perquirir e analisar todas essas questões sociais que perpassam pelo feminino.

Que venham novos debates.


[3] Coordenador do PPGD UNIRIO.

[4] BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, Volume 1: Fatos e Mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 5ed., 2019.

[6] DAVIS, Angela. Mulheres, Cultura e Política. São Paulo: Boitempo, 2017.

[7] SOSA, Ricardo Sánchez; IBARRA, Alicia Bárcena; La sostenibilidad del desarrollo en América Latina y el Caribe: desafíos y oportunidades. Santiago: CEPAL, 2002.

[8] Referência audiovisual: INCERTEZAS CRÍTICAS. Direção: Daniel Augusto, 1ª Temporada, Episódio  Vandana Shiva, 2012. Curta!On Demand.