Ambiente Jurídico

Crueldade contra animais: um breve resumo de questões suscitadas em juízo

Autor

11 de fevereiro de 2023, 17h29

A interação do humano com os animais apresenta pontos de tensão e de difícil enquadramento legal; ao lado de carinho e cuidado sobrevivem práticas ligadas ao uso dos animais domésticos, domesticados e silvestres que podem ou não ser vedadas pela legislação. Faço aqui um breve resumo de questões suscitadas em juízo.

Spacca
A questão constitucional decorre da ponderação de três dispositivos: o artigo 5º inciso VI, que entre os direitos e deveres individuais diz ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; o artigo 215 [1], que garante a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional; e o artigo 225 § 1º inciso VI, que atribui ao poder público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. Tais dispositivos foram analisados pelo Supremo Tribunal Federal em diversas ocasiões.

No RE nº 153.531-SC, 1997 [2], que analisou a denominada "farra do boi" de Santa Catarina (em que um animal é perseguido pelas ruas por uma multidão e atingido por varas e objetos, culminando com sua morte), a 2ª Turma entendeu inadmissíveis manifestações culturais que submetam animais à crueldade [3]. Na ADI nº 2.514-SC, 2005 [4] e ADI nº 1.856-R J[5], referentes a leis que regulamentavam as brigas de galo, o tribunal afirmou que a sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição Federal e que a "submissão de animais a atos de crueldade cuja natureza perversa, à semelhança da 'farra do boi' (RE 153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente folclórico". Na ADI nº 4.983-CE, 2016 [6], referente à lei cearense que regulamentou a prática da vaquejada, após uma longa discussão (o acórdão tem 150 páginas), foi reafirmado que a Constituição veda a prática de crueldade contra animais, ainda que inseridas em manifestações culturais. No RE nº 494.601-RS, 2019 [7], referente a lei gaúcha que excluiu, como infração administrativa, o sacrifício ritual de animais em rituais religiosos de matriz africana, o tribunal considerou que a proteção à liberdade religiosa e os cuidados adotados no ritual afastavam a proteção contra a crueldade. Na ADPF nº 640-DF, 2021 [8], o tribunal declarou ilegítima a interpretação dos dispositivos legais indicados que autorizam o abate de animais apreendidos em situação de maus tratos ante a vedação constitucional à crueldade.

Essa evolução demonstra, salvo no caso dos rituais africanos (em que prevaleceu a liberdade de religião), uma reiterada afirmação da proteção contra a crueldade no caso de manifestações culturais. Mas não é tão simples. Logo após a decisão de 6-10-2016 que vedou a prática da vaquejada foi editada a LF nº 13.364/16 de 29-11-2016, depois alterada pela LF nº 13.783/19, que reconhece o rodeio, a vaquejada e o laço e suas respectivas expressões artísticas e esportivas como manifestações culturais nacionais, eleva essas atividades à condição de bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro e dispõe sobre modalidades esportivas equestres e sobre a proteção ao bem estar animal conforme regulamento a ser aprovado pelas respectivas associações [9]; em seguida foi promulgada a EC nº 96/17 de 6-6-2017 que acrescentou o § 7º ao inciso 1º do artigo 225 da Constituição Federal, de semelhante teor [10]. A LF nº 10.220/01, que regulamenta o rodeio, LF nº 13.364/16 e a EC nº 96/17 são objeto das ADI nº 5.728-DF e 5.772-DF, sem liminar e ainda não decididas [11].

Boa parte dos casos concretos cuida dos rodeios, estes divididos nas provas de salto, nas provas de laço e derrubada e, mais recentemente, nas provas de destreza e velocidade (três tambores, por exemplo). As Câmaras Ambientais de São Paulo vêm convalidando as provas de salto, afastado o uso dos instrumentos excluídos pela LE nº 10.359/00 e LF nº 10.220/01 tais como choques elétricos, esporas pontiagudas ou com rosetas, sedém fora das especificações indicadas [12]; há controvérsia quanto às provas de laço e derrubada e destreza, com acórdãos reconhecendo a prática cruel e outros admitindo a realização com base nas leis editadas [13].

O Supremo Tribunal tem ultimamente admitido as provas em questão com base na EC nº 96/97 e LF nº 13.364/16, em vigência e no aguardo de uma análise maior nas ADI nº 5.728-DF e 5.772-DF, ainda em andamento; mas há manifestação admitindo, em decisão ainda isolada, a validade das normas [14] ao entender não provado o maltrato e a prática cruel, aliada à permissão constitucional e legal. Há duas questões relacionadas, que examinarei em artigo vindouro: (a) se pode a lei definir se há ou não crueldade, um fato que independo do plexo normativo; e (b) se é ampla a liberdade do legislador para qualificar uma prática como bem cultural, bem imaterial integrante do patrimônio cultural, como foi feito no assunto aqui tratado. Em outras palavras e antecipando a apreciação a ser feita em Brasília, tal emenda e lei são constitucionais?

 


[1] O art. 215 está inserido no Título VIII – Da Ordem Social, Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do Desporto, Seção II – Da Cultura, com a seguinte redação: Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º. O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. […] O patrimônio cultural brasileiro, mencionado nos art. 215 § 3º inciso I e 216, é constituído pelos bens de natureza material e imaterial, individuais ou em conjunto, com referência à identidade, ação, memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, entre eles os modos de criar, fazer e viver.

[2] APANDE – Associação Amigos de Petrópolis Patrimônio Proteção aos Animais e Defesa da Ecologia e outros v. Estado de Santa Catarina, RE nº 153.531, STF, 2ª Turma, 3-6-1997, rel. Francisco Rezek, maioria.

[3] Na ementa: "A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do art. 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade".

[4] Procurador Geral da República v. Assembleia Legislativa de Santa Catarina, ADI nº 2.514-SC, STF, Pleno, 29-6-2005, rel. Eros Grau, unânime.

[5] Procurador Geral da República v. Assembleia Legislativa e Governador do Rio de Janeiro, STF, Pleno, 26-5-2011, rel. Celso de Mello, unânime.

[6] Procurador Geral da República v. Assembleia Legislativa e Governador do Ceará, ADI nº 4.983-CE, STF, Pleno, 6-10-2016, rel. Marco Aurélio, maioria. A vaquejada consiste na perseguição de um boi por dois cavaleiros que, cavalgando um de cada lado, derrubam o boi pelo rabo. A marcação dos pontos exige que o boi termine com as quatro patas no ar. Consta na ementa: "A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada".

[7] Ministério Público do Rio Grande do Sul v. Assembleia Legislativa e Governador do Rio Grande do Sul, RE nº 494.601-RS, STF, Pleno, 28-3-2019, Rel. p/ acórdão Edson Fachin, maioria. Consta da ementa: “A prática e os rituais relacionados ao sacrifício animal são patrimônio cultural imaterial e constituem os modos de criar, fazer e viver de diversas comunidades religiosas, particularmente das que vivenciam a liberdade religiosa a partir de práticas não institucionais”.

[8] Partido Republicano da Ordem Social – PROS, Referendo na MC-ADPF nº 640-DF, STF, Pleno, 20-9-2021, rel. Gilmar Mendes, unânime. A ação visava a impedir o abate de galos de briga aprendidos em criadouros em precárias condições de saúde.

[9] Nos termos do art. 3º, são consideradas expressões artísticas e esportivas do rodeio, da vaquejada e do laço atividades como: montarias, provas de laço, apartação, "bulldog", provas de rédeas, provas dos três tambores, "team penning" e "work penning" e outras provas típidas, como a Queima do Alho, concurso do berrante e apresentações folclóricas e de músicas de raiz. E são consideradas modalidades esportivas equestres tradicionais (art. 3-A) o adestramento, atrelagem, concurso completo de equitação, enduro, hipismo rural, salto e volteio; apartação, time de curral, trabalho de gado, trabalho de mangueira; provas de laço; provas de velocidade (cinco tambores, maneabilidade e velocidade, seis balizas, três tambores); argolinha, cavalgada, cavalhada e concurso de marcha, julgamento de morfologia, corrida, campearada, doma de ouro e freio de ouro; paleteada e vaquejada; provas de rodeio; rédeas; polo equestre; paraequestre.

[10] Art. 225 § 7º: Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. (NR)

[11] Procurador Geral da República v. Presidente da República e Congresso Nacional, ADI nº 5.772-DF, STF, rel. Roberto Barroso, conclusos em 3-2-2021.

[12] Naturae Vitae Sociedade de Proteção Animal e Ambiental v. Prefeitura de Macatuba, AC nº 1000944-63.2017.8.26.0333, 1ª Câmara Meio Ambiente, 4-10-2028, Rel. Torres de Carvalho. APAASFA — Associação Protetora dos Animais de Americana São Francisco de Assis v. Prefeitura de Ibirarema, AC nº 1001494-40.2016.8.26.0415, 2ª Câmara Meio Ambiente, 11-5-2020, rel. Luiz F Nishi.

[13] Associação Nacional do Laço de Bezerro v. APAASFA, 1ª Câmara Ambiental, 25-2-2021, rel. Torres de Carvalho. O apelo foi enviado ao Grupo de Câmaras em assunção de competência ante a controvérsia existente, com julgamento suspenso em 23-6-2022 no aguardo do julgamento do RE nº 926.944-SP, já julgado pela 1ª Turma com resultado favorável à realização das provas.

[14] Ministério Público de São Paulo v. Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Quarto de Milha – ABQM, AgRg no AgRg no RE nº 926.944-SP, STF, 1ª Turma, 14-3-2022, rel. Dias Toffoli. A decisão reformou acórdão de nossa relatoria que havia vedado a realização de provas de laço descritas na inicial (calf roping, bulldog, bareback, team roping ou, em vernáculo, laçada de bezerro, laçada dupla, pega garrote e derrubada de bezerros) afirmando a inexistência de prova do maltrato ao animal e a permissão concedida na lei citada.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!