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Considerações sobre o right to repair no contexto jurídico brasileiro

Autor

  • Marina Giovanetti Lili Lucena

    é pesquisadora no Legal Grounds Institute e no grupo Empresa Desenvolvimento e Responsabilidade (EDResp UFJF) administradora da página no Instagram @direitocivilporelas doutoranda em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) graduada em Direito pela UFJF com período de intercâmbio acadêmico na Università degli Studi di Camerino (Itália).

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7 de fevereiro de 2023, 8h00

O desenvolvimento tecnológico hoje vivenciado possibilita que as pessoas utilizem, seja para uso pessoal, de trabalho ou na indústria, inúmeros dispositivos móveis e duráveis. São exemplos os celulares, computadores, carros, dentre diversos outros. É comum que esses bens também sejam falíveis, ou seja, que apresentem problemas durante a sua vida útil, os quais podem dificultar ou impossibilitar o seu funcionamento.

ConJur
Nesse contexto desenvolve-se o chamado right to repair (direito de reparar ou direito de executar reparos). A ideia principal defendida por esse direito é a escolha dos proprietários sobre como e com quem reparar seus bens. Isso significa utilizar formas de reparo não autorizadas ou não oficiais, bem como reparar por si mesmo.

Os Estados Unidos têm protagonizado esse debate. A questão já foi, inclusive, objeto de legislação no estado de Massachusetts, que exige a disponibilização de informações para a reparação automotiva [1]. Em maio de 2021 o Federal Trade Commission (FTC) também se manifestou sobre o assunto em um relatório [2]. Mais recentemente, a administração Biden já tomou ações que parecem mostrar apoio ao direito de reparar [3].

A questão vem ganhando força também na Europa. No Reino Unido há regras que exigem legalmente que os fabricantes disponibilizem peças para os compradores. Já há discussões na Europa para ampliar esses direitos para smartphones, tablets e laptops [4].

Válido salientar que existe um potencial conflito de interesses e direitos entre as partes que discutem o right to repair. De um lado no embate estão os proprietários de bens e profissionais independentes que realizam reparo. Do outro lado estão os fabricantes, que querem ser os únicos aptos a realizarem os mais diversos consertos.

A discussão é complexa porque, muitas vezes, é necessária a atuação da sociedade empresária fabricante para disponibilizar peças ou informações, essenciais para que o reparo seja feito. Ao exemplificar formas de dificultar ou impedir o reparo, o já mencionado relatório do FTC cita a indisponibilidade de peças e informações para o reparo; o próprio design dos produtos, que pode tornar o reparo difícil ou menos seguro; políticas que direcionam os consumidores para as redes de reparo dos fabricantes, dentre outras questões [5].

Os argumentos utilizados pelos fabricantes para impedir os reparos independentes são diversos. Um dos mais comuns é que os consertos realizados por terceiros podem causar problemas para a segurança dos bens e, consequentemente, pode afetar a proteção dos usuários. Em outros casos argumenta-se que o compartilhamento de informações privadas violaria a propriedade intelectual do fabricante. No entanto, o relatório da FTC, nos EUA, concluiu [6] que há poucas evidências das justificativas dos fabricantes para restrições de reparo.

Salienta-se que tais riscos, especialmente o da segurança dos consumidores, não podem ser desconsiderados. O Código de Defesa do Consumidor estabelece em vários dispositivos, a exemplo do caput do artigo 4º, a obrigatoriedade de defesa da segurança dos consumidores. No entanto, a defesa da segurança não pode ser utilizada como argumento abstrato, um salvo-conduto, sem comprovações técnicas de que o reparo independente de fato pode causar lesões à parte hipossuficiente. Caso o risco seja demonstrado, não há dúvidas de que o reparo independente deve ser coibido.

Um dos grandes exemplos de sociedade empresária contra o direito de executar reparos é a Apple. Há o caso polêmico da utilização de um parafuso resistente à violação, que não poderia ser removido pelas chaves de fenda disponíveis. O objetivo da utilização desse parafuso parecia ser tornar os reparos difíceis e caros, fazendo com que o consumidor ou terceiros não consigam acessar o dispositivo [7]. Em outro caso, houve um processo legal para que a Apple fosse forçada a oferecer um programa para substituir as baterias [8].

No entanto, a Apple parece ter mudado sua perspectiva e, em abril de 2022, disponibilizou aos seus consumidores a possibilidade de reparo autônomo, inclusive com partes e ferramentas genuínas da empresa. Isso ocorrerá em uma loja de reparos self service da empresa, já disponível nos Estados Unidos e que depois será expandida a outros países [9]. A possibilidade engloba baterias, telas quebradas e outros componentes.

Defendendo o right to repair há algumas iniciativas oriundas da sociedade civil, como a do site iFixit, que ensina as pessoas a realizarem os próprios consertos, estimulando a troca de conteúdo entre os participantes [10]. Na plataforma YouTube, um dos grandes ativistas do right to repair é Louis Rossmann, contando com vários vídeos sobre o assunto [11]. Ele também participa da iniciativa Fight to Repair [12], um grupo que se organiza na luta para a difusão e aceitação do direito de executar reparos.

Percebe-se que o contexto mundial é de discussão do right to repair. Não há, no momento, nenhuma previsão expressa sobre o direito de executar reparos no Brasil. No entanto, sustenta-se que a sua existência pode ser justificada a partir de direitos e princípios já existentes em nosso ordenamento

Inicialmente, menciona-se a própria noção de propriedade. Os indivíduos buscam executar reparos independentes em bens que lhe pertencem. A regra é que, adquirida a propriedade de um bem móvel, o proprietário possa utilizá-lo da maneira que considere a mais adequada. A noção de propriedade, aliás, está prevista na Constituição Federal brasileira de 1988 (CF/88) como direito fundamental, no artigo 5º, XXII. Além disso, o Código Civil brasileiro de 2002 (CC/02) prevê a propriedade como direito real (artigo 1.225, I). O artigo 1.228 do CC/02 estabelece, de maneira expressa, que o proprietário possui a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa. Essa possibilidade de escolha, assim, englobaria a escolha de quem fará o reparo do bem.

Sendo a coisa de propriedade do indivíduo, ele deveria ser apto a realizar o uso que considera o mais adequado, inclusive realizando reparos no bem. A recusa a disponibilização de peças ou informações de reparo (seja para o próprio consumidor ou para executores de reparo independentes) não parece consentânea com a proteção da propriedade.

Em segundo lugar, há a relevante questão de proteção ambiental. Segundo o artigo 170, inciso VI da Constituição brasileira de 1988, a ordem econômica deve observar o princípio de defesa do meio ambiente, inclusive considerando o impacto ambiental dos bens e serviços. Além disso, o artigo 225 da CF/88 garante o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para todos.

A possibilidade de um pequeno reparo ou substituição seria relevante para evitar que sempre fossem necessário novas compras, de novos bens inteiros. Ou seja, ainda que haja somente uma pequena peça com defeito, todo o aparelho fica inutilizado e um novo deve ser adquirido. O impacto ambiental desse consumismo é marcante, principalmente considerando que aparelhos eletrônicos devem ser descartados em locais específicos, muitas vezes ausentes ou de difícil acesso no Brasil.

A geração de lixo eletrônico, o chamado e-waste, aliás, é uma preocupação bastante presente na sociedade atual. Há, com o desenvolvimento tecnológico, o constante descarte de bens considerados obsoletos, com grande dificuldade de descartar de maneira sustentável esse lixo tóxico, principalmente quando produzido em larga escala [13]. O right to repair possibilitaria a diminuição da geração do e-waste, considerando que o aparelho não seria totalmente inutilizado e substituído em caso de defeito. A ideia é justamente de arrumar, não comprar um novo aparelho a cada defeito parcial e específico.

Por fim, terceiro ponto é a questão da instituição de monopólios por parte de sociedades empresárias. Os consumidores e executores de reparo independentes normalmente argumentam que o right to repair "decorre da análise de práticas anticompetitivas de serviços técnicos e de reparos impostos pelos grandes fabricantes" [14].

Um dos princípios do Direito Empresarial brasileiro é justamente a liberdade de concorrência [15]. No entanto, as barreiras para que os consertos não sejam realizados por terceiros acaba possibilitando monopólios de assistência técnica [16]. Assim, quando somente os fabricantes possuem peças ou informações que são essenciais ao reparo, os executores de reparo independentes ficam com seu âmbito de atuação bastante diminuído.

Existe no Brasil a Anfape (Associação Nacional dos Fabricantes e Comercializadores de Autopeças para o Mercado de Reposição). No site da Associação [17] é esclarecido que ela é constituída por várias empresas do setor de autopeças, e que sua missão é garantir a concorrência nas peças de carroceria, para que as indústrias independentes possam competir com as montadoras. Para a Anfape, a limitação de reparos e peças acaba por estabelecer um monopólio no mercado de peças de colisão.

A liberdade de concorrência também se relaciona com a liberdade de escolha do consumidor. O indivíduo deve ser livre para escolher quem irá executar o reparo dos bens de sua propriedade, de acordo com as análises de custo e benefício. Assim, a pluralidade de opções no mercado é benéfica ao consumidor.

Em resumo, percebe-se que as discussões sobre o right to repair têm se ampliado ao redor do mundo, incluindo no âmbito jurídico, sendo necessário analisar com profundidade seus possíveis pontos positivos e negativos. Caso o legislador brasileiro entenda que é a melhor opção prever o direito a executar reparos no Brasil, é necessário estabelecer critérios efetivos de sua aplicação. Com uma intervenção legislativa específica e razoável seria possível assegurar os direitos de empresa, consumidores e executores de reparo independentes.

No entanto, a legislação não deve se apresentar como solução única. A educação e conscientização da população, bem como dos empresários, é essencial para uma maior efetividade desse direito.

 


[1] Chapter 165, Court of the Commonwealth of Massachusetts. Disponível em: https://malegislature.gov/Laws/SessionLaws/Acts/2013/Chapter165. Acesso em: 02 fev. 2023.

[2] NIXING the Fix: An FTC Report to Congress on Repair Restrictions. Maio 2021. Federal Trade Commision. Disponível em: https://www.ftc.gov/system/files/documents/reports/nixing-fix-ftc-report-congress-repair-restrictions/nixing_the_fix_report_final_5521_630pm-508_002.pdf. Acesso em: 02 fev. 2023.

[3] WIENS, Kyle. The Biden administration thinks you should be allowed to fix the things you buy. 13 jul. 2021. The Washington Post. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/outlook/2021/07/13/biden-ftc-right-to-repair/. Acesso em: 2 fev. 2023.

[4] GODWIN, Cody. Right to repair movement gains power in US and Europe. 7 jul. 2021. BBC News. Disponível em: https://www.bbc.com/news/technology-57744091. Acesso em: 2 fev. 2023.

[5] NIXING the Fix: An FTC Report to Congress on Repair Restrictions. Maio 2021. Federal Trade Commision. Disponível em: https://www.ftc.gov/system/files/documents/reports/nixing-fix-ftc-report-congress-repair-restrictions/nixing_the_fix_report_final_5521_630pm-508_002.pdf. Acesso em: 2 fev. 2023, p. 6.

[6] NIXING the Fix: An FTC Report to Congress on Repair Restrictions. Maio 2021. Federal Trade Commision. Disponível em: https://www.ftc.gov/system/files/documents/reports/nixing-fix-ftc-report-congress-repair-restrictions/nixing_the_fix_report_final_5521_630pm-508_002.pdf. Acesso em: 2 fev. 2023, p. 54.

[7] NIXING the Fix: An FTC Report to Congress on Repair Restrictions. Maio 2021. Federal Trade Commision. Disponível em: https://www.ftc.gov/system/files/documents/reports/nixing-fix-ftc-report-congress-repair-restrictions/nixing_the_fix_report_final_5521_630pm-508_002.pdf. Acesso em: 2 fev. 2023.

[8] APPLE iPod Battery Class Action: Consumers prevail in false advertising lawsuit. Girard Gibbs LLP. Disponível em: https://web.archive.org/web/20170731020354/https://www.girardgibbs.com/apple-ipod/. Acesso em: 2 fev. 2023.

[9] APPLE'S Self Service Repair now available. 27 abr. 2022. Apple. Disponível em: https://www.apple.com/newsroom/2022/04/apples-self-service-repair-now-available/. Acesso em: 2 fev. 2023.

[10] Disponível na versão em português em: https://pt.ifixit.com/Info/index.

[12] Disponível em: https://fighttorepair.org/.

[14] LUCENA, Claudio; FREITAS, Cinthia Obladen de Almendra. Consertando o direito de reparar. 17 jul. 2021. Instituto Nacional de Proteção de Dados. Disponível em: https://www.inpd.com.br/post/consertando-o-direito-de-reparar. Acesso em: 02 fev. 2023.

[15] Tal princípio é estabelecido de forma expressa como princípio geral da atividade econômica no artigo 170, inciso IV da Constituição Federal brasileira de 1988. Além disso, a Lei n. 12.529 de 2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, estabelece em seu artigo 1º a livre concorrência como ditame orientador do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.

[17] Disponível em: http://www.anfape.org.br/.

Autores

  • é pesquisadora no Legal Grounds Institute e no grupo Empresa, Desenvolvimento e Responsabilidade (EDResp, UFJF), administradora da página no Instagram @direitocivilporelas, doutoranda em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), graduada em Direito pela UFJF, com período de intercâmbio acadêmico na Università degli Studi di Camerino (Itália).

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