Senso Incomum

Dizer que o Direito é como jogo de beisebol ofende o Direito e os juízes

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28 de dezembro de 2023, 8h00

Volto a um tema sobre o qual escrevi uma coluna em 2017. As frases que me levaram a escrever aquela coluna foram extraídas de uma palestra da qual falarei na sequência: “Os juízes são como jogadores de baseball”. “Seu comportamento pode (e deve) ser estudado, previsto, através de análise de dados.” “O que importa mesmo é saber como os juízes decidem os casos.”

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Essa parece ser, reconheço, a tendência de considerável parcela da doutrina norte-americana contemporânea. Nos EUA há um fascínio pela empiria. E por aqui também. Somos fascinados pela fascinação.

Explicarei as razões expostas acima.

Em 2017, a professora Lee Epstein — pesquisadora da Washington University e representante dessa doutrina — veio ao Brasil, em evento organizado pela USP, para falar sobre essa espécie de revival do realismo jurídico do século 20 (o direito é o que os tribunais dizem que é). Os sites jurídicos, é claro, não hesitaram em, ao falar sobre o evento, dar eco à ideia de que advogados devem conhecer o comportamento real (sic) dos juízes, uma vez que “apenas conhecer regras e teorias jurídicas não basta”.

Sei bem que as pesquisas empíricas têm sido dominantes no Direito norte-americano, assim como estou ciente do reconhecimento que a professora Lee Epstein tem como pesquisadora em seu país. Porém, isso não me impede de tecer alguns comentários, porque me recuso a aceitar que o papel da doutrina seja, repetindo Oliver Wendell Holmes Jr. e sua bad man theory, prever como os juízes vão decidir… e pronto. Convenhamos, sem ofensa ou implicância, isso é fazer pouco de algo complexo como é o Direito. E comparar com beisebol é mais grave ainda, como veremos.

Aqui uma pausa: para saber mais sobre realismo jurídico, sugiro aqui  e aqui.

Enfim, voltando ao ponto: Lee Epstein, discorrendo sobre sua obra The Behavior of Federal Judges (O Comportamento dos Juízes Federais) afirma, em tom elogioso aos realistas (como Karl Llewellyn e Benjamin Cardozo), que pretende, com o auxílio das novas metodologias empíricas, aprofundar sua antiga teoria de que o Direito é meramente aquilo que os tribunais dizem que ele é (guardemos bem essa frase). Diz que não se trata de um realismo jurídico à la Jerome Frank, mas de construir uma teoria comportamental atualizada a partir de suas bases. O termo comportamental, confesso, é por minha conta, mas acho que nem Epstein recusaria o rótulo.

No mesmo link, Epstein diz não estar preocupada em questionar e dizer como os juízes devem decidir os casos, mas, simplesmente, como eles decidem [1]. Então pergunto: não é esse o velho realismo jurídico? Talvez seus métodos empíricos sejam modernos demais para um velho soldado como eu, que insiste em “coisas ultrapassadas como Constituição, Parlamento, democracia, legislação, autonomia do Direito e teoria da decisão…”.

E mais: posturas como a de Epstein desconsideram, abertamente, a distinção filosófica entre behavior (comportamento) e action (ação). Parece que, para ela, isso não tem importância.  De todo modo, explico: a primeira dá conta de nossa dimensão animal e sensitiva; a segunda, de nossa racionalidade. A primeira é analisada por meio de compreensão causal-descritiva. A segunda, por meio de compreensão avaliativa e reflexiva. Por que ressalto isso? Porque, e isso é muito simples, o objeto próprio do direito não é o comportamento, mas a ação.

O empirismo jurídico vai, pois, invariavelmente, sofrer de três graves problemas:

(1) é irracional — porque não há critério disponível e compartilhado por todos para que as respostas apresentadas pelos juízes sejam avaliadas;

(2) é acrítico — porque sua pretensão nega qualquer espaço de reflexão e, com isso, a própria pretensão normativa do direito; e

(3) é antidemocrático, porque, bem, os juízes decidem… como querem…e pronto.

Por óbvio, respeito as pesquisas empíricas da professora Epstein. Como disse, sei bem de sua importância no cenário jurídico norte-americano. Como hermeneuta, sei que eles também têm algo a dizer. Todavia, eu escrevo sobre o direito brasileiro porque luto por ele. E não sei nada de beisebol. A professora, por certo, é expert nesse esporte desconhecido para 99,99% dos brasileiros. E quando a tendência parece ser a de que o neorrealismo cresça cada vez mais por aqui, e se a nova moda agora é importar a empiria pura, sugiro que aproveitemos a ocasião e fechemos as faculdades de Direito.

Sim, para que gastar dinheiro com concursos, professores, pesquisadores? Não é melhor aderirmos ao realismo? Temos de ser pragmáticos, dirão. Vamos aos jogos…! Direito é um jogo. De beisebol, dirá Epstein. Não é isso que pedem as teorias empiristas? Então que estudemos a psicologia behaviorista de uma vez. Não precisamos de Hart, Dworkin, Kelsen… pra quê esses “caras”? Fiquemos com Watson e Skinner. Pronto. Juízes são cães de Pavlov mesmo, dirão os empiristas. E nós, teóricos e cientistas do Direito não servimos para nada, acrescentarão. De minha parte, penso que isso é ofensivo aos juízes. No mínimo. E, também, aos professores…!

Esse é meu ponto, e aqui fica muito claro: o behaviorismo jurídico — e aqueles que parecem endossá-lo aqui no Brasil — são céticos. Mesmo que não admitam ou assumam isso. Eu não sou nem relativista, nem cético (e nem não-cognitivista ético, aqui homenageando sempre a bela obra de Arthur Ferreira Neto). Acredito em uma resposta correta-adequada a Constituição. Acredito em uma doutrina que doutrine, e que não seja mera reprodutora de acórdãos. Ou de comentadoras de teses feitas pelos tribunais. Acredito em doutrina que exerça o duro (e às vezes antipático) papel de constranger as decisões judiciais, e não meramente prevê-las [2].

Alguns dirão que temos de nos render à falácia realista de que “isso é assim mesmo”. Devolvo: mas o que é isso — comportamentalismo? Behaviorismo jurídico faz “profecias sobre o passado”. E às vezes erram, mesmo assim. Deixam de cuidar da aplicação para se tornarem representantes de um “entendimento já tomado…”. E erram.

De minha parte chamaria a isso de pessimismo jurídico. Lamento, mas meu otimismo metodológico não permite que eu subscreva a tese de Epstein e correlatos brasileiros ou estrangeiros. Como jurista, não tenho o direito de desistir do Direito.

E não acredito que, em vez de estudar doutrina e leis, seja melhor, como diz a professora Epstein, estudar o (real – sic) comportamento dos juízes… Se assim for, devemos colocar detetives atrás dos juízes. Perscrutar o que comem no almoço [3]. Para qual time torcem. Usemos ternos escuros… ou claros? Quem sabe… de risca, mais clássico. Bom… e, desse modo, dispensemos os doutrinadores e paremos de escrever livros… Somos dispensáveis. Tudo é um grande jogo…!

E então nos transformemos em coaches. Além, é claro, de decorar as regras do beisebol. Ou, abrasileirando, estudemos o futebol. Problema seríssimo, para o qual a professora não foi alertada pelos seus congêneres brasileiros: é que o futebol é bem mais complexo que o beisebol. Totalmente imprevisível. Esquema de duas linhas de 4, com um centroavante que joga por uma bola… Ou o velho 4-3-3? E o que fazer com o montinho artilheiro?

Numa palavra, faço um alerta: quando aderimos ao(s) pragmatismo(s) em demasia e a esse ceticismo absoluto que nos leva a dizer que, no fim, nada importa mesmo, colocamo-nos, sozinhos, em algumas enrascadas. Tão grandes que expõem, por si, os grandes equívocos que cometem aqueles que compartilham dessa obsessão pelo empírico. Quando — como se diz por aí — a teoria não serve para nada mesmo, acabamos colocando Jeremy Bentham, um positivista normativo que o era antes mesmo da corrente levar esse nome, na mesma prateleira dos realistas (é o que faz a própria Lee Epstein, e, aos que duvidam do que estou dizendo, sugiro apenas que confiram o link que já estava aqui na coluna, acima). Ou acabamos dizendo que Bentham, o chamado Newton da legislação, crítico ferrenho do common law, defendia precedentes [4]. Ora, vejam só. Não é que a teoria serve para alguma coisa?

A propósito, ou fazemos cumprir a lei e construímos critérios para isso ou façamos apostas. No jus cassino.  Cálculos. Estudemos, em vez de leis e boa doutrina, o comportamento de quem vai decidir. Isso. Façamos isso. Sigamos Epstein. Continuemos a fazer isso. Mas, então, não é melhor usar a tese do pintinho da tribo Azembe? Se o veneno não for manipulado (isto é, não for fraudado no seu conteúdo), há sempre 50% de chances para o réu. Simples assim.

Enquanto isso, desprezemos a doutrina e apostemos em behaviorismos [5]. Porém, temos de assumir que isso é estratégia e que não se trata de Direito. E fechar as faculdades. Cursos de gestão, coaching, psicologia, economia etc, substituirão os cursos jurídicos. Bom, de certo modo, isso já está ocorrendo. E que não mais façamos palestras e escrevamos livros falando coisas que o empirismo dominante despreza.

No mais, feliz Ano Novo!


[1] De pronto, deve ficar claro que qualquer tentativa de mera previsão — acrítica — desse quilate não trata(rá) de nada além de mera estratégia advocatícia. Nada contra isso, por óbvio. O agir estratégico, é verdade, faz parte do Direito – desde que respeitados os devidos limites, isto é, que esse tipo de agir seja reservado aos advogados. Esse é o ponto, e talvez seja este o maior problema em que incorrem as teorias behavioristas que dizem não se preocupar com o modo como os juízes devem decidir: pretendem-se teorias “científicas” sobre o Direito, mas são incapazes de levar em conta que juízes têm responsabilidade política e, exatamente por isso, (os juízes) devem agir por princípio. Jamais por estratégia. Esse, fundamentalmente, é nosso desacordo: para o behaviorismo, o juiz escolhe. Eu digo que o juiz decide.

[2] Sobre isso, sugiro os verbetes Constrangimento epistemológico e Resposta Adequada em meu Dicionário de Hermenêutica.

[3] Bruno Torrano faz uma interessante – e correta – crítica às pesquisas empíricas (ver aqui), lembrando que, independentemente dos fatores externos, os juízes têm o dever de considerar as normas jurídicas como razões de sua conduta oficial. Não importa que tenham dormido mal, que tenham exagerado na feijoada, etc.

[4] Aqui remeto-os ao seguinte texto: Desmistificando o positivismo de Jeremy Bentham: sua codificação utilitarista e a rejeição ao stare decisis como autorização para errar por último. STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. In: Revista Brasileira de Direito Processual. Belo Horizonte, ano 25, n. 99, jul./set. 2017.

[5] Por exemplo, só para mostrar que a teoria do Direito e o próprio Direito são mais democráticos e mais confiáveis, lembro que os mesmos números — de uma certa pesquisa — que dizem que os juízes de Israel, perto do meio dia, por estarem famintos, são mais duros com os acusados, também pode mostrar duas coisas: uma, que se o Direito depende do apetite e da satisfação alimentar dos juízes, é um Direito que fracassou; segundo, pesquisas como essa apenas mostram que, no meio da manhã, os tais juízes deveriam comer um bom lanche (aliás, isso se pode depreender do próprio artigo de Daniel Kahnemann que trata do assunto, bem referido por Torrano no artigo que cito na nota 2. Simples assim.

 

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