Opinião

Violência contra a mulher com deficiência: questão de vulnerabilidade social

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13 de dezembro de 2023, 6h04

A violência doméstica contra as mulheres compõe o grupo de feridas históricas do Brasil. Esse corte não para de sangrar mesmo com a adoção de suturas. Parece que o sangue que jorra do corpo da mulher com deficiência não comove. Por qual razão?

Essas linhas iniciais podem se traduzir nas seguintes palavras: A sociedade e as diversas instituições invisibilizam mulheres com deficiência, ao passo que seus agressores se sentem ainda mais confortáveis a cometer suas inúmeras formas de violências sem preocupações, quando o corpo que eles agridem dentro de suas casas é de mulheres com deficiência. Devem pensar: “Elas não podem fazer nada!”

São essas evidências que conduzirão as nossas discussões neste artigo. Para isso, sustentar-nos-emos em aportes teóricos da Interseccionalidade, compartilhado e atravessado por uma leitura que se elabora no feminismo negro, a partir de Carla Akotirene (UFBA), uma vez que, são as mulheres negras no Brasil as principais vítimas das violências dessa categoria.

Somando-se a isso, as discussões dos campos social e antropológico da deficiência, a partir de Débora Diniz (UnB), em “O que é Deficiência?”, e Anahí Guedes (UFSC), a partir do conceito de suas discussões sobre gênero nas políticas da deficiência e capacitismo e suas múltiplas formas de atuações e intervenções no corpo deficiente. Para argumentação e sustentação no campo jurídico, balizar-nos-emos na Lei Maria da Penha, de nº 11.340/06, em propostas de alterações constitucionais para fomentar política de atenção à violência de gênero, além de refletir sobre de que modo a Lei Maria da Penha representa e se concretiza como uma guinada na garantia de proteção às mulheres brasileiras, principalmente às com deficiência.

Culturalmente, em nossas sociedades modernas, alguns corpos são interpretados como de potência física e intelectual, enquanto outros, subjugados por apresentarem formas e comportamentos que desobedecem a padrões predefinidos por inúmeras instituições das sociedades. As mídias, por exemplo, fazem parte desse arcabouço cultural que impulsiona o consumo e descarte de determinados métodos e valorização de algumas estéticas.

Assim, o agenciamento da construção da normatividade do que é ser mulher perpassa pela existência de uma imagem configurada no campo visual e performático, assim como inúmeros outros estereótipos sociais. Além disso, a construção do imaginário do ser mulher se estabelece na cobrança de um corpo fértil, de tal forma que a sua função na sociedade também foi elaborada para que a mulher seja um terreno que deve ser e estar disponível e preparado para fecundar, produzir e nutrir os frutos de uma relação com um homem.

Nesse sentido, Guedes (2017), vai chamar atenção sobre o que observa Ellen Samuels, quando argumenta que “as feministas não deficientes de fato procuram se distanciar do corpo deficiente em suas perspectivas de análises teóricas, a fim de provar que o corpo feminino não é doente ou deformado”. Logo, a recusa do corpo da mulher com deficiência insere-a numa categoria de segundo grau e todas as questões que interpelam seu corpo, se tornam um problema dela, não só social e político, no caso da violência doméstica.

Isso tensiona a construção da imagem da mulher [com deficiência], pois ela questiona o lugar da normativa do corpo e de gênero. Com isso, pode-se pensar que as configurações anatômicas da deficiência e do regramento que estabelecem o imagético sobre a mulher, além de provocar um dilema, coloca-nos diante do questionamento: serão as mulheres com deficiência – mulheres?

A filósofa francesa Simone de Beauvoir, em Segundo Sexo (1949), faz uma vasta discussão sobre “o que é ser mulher?”, e que mais tarde vai se tornar um marco fundamental para o feminismo do século 20. Como premissa, Beauvoir afirma que a resposta sobre o seu questionamento é resultado de construções sociais e culturais com raízes no sistema do patriarcado e que tem por objetivo principal prover a hierarquização entre os sexos e de educar as meninas para serem submissas aos homens. A ideia de que mulheres correspondem ao sexo frágil e são elas as responsáveis pelas tarefas domésticas, por exemplo, estabelecem-se num organismo social que é adotado até hoje.

Em seu livro, Diniz (2012) estabelece uma discussão dirigida a outra possibilidade do pensamento sobre a deficiência, distanciando-se do modelo biomédico. Para isso, “a aproximação dos estudos sobre deficiência de outros saberes já consolidados, como os estudos culturais e feministas” (2012, p.10), possibilitou a criação de um outro modelo para pensar a deficiência, que ficou conhecido como – modelo social da deficiência – resultado de mobilizações ocorridas e desenvolvidas no Reino Unido e nos Estados Unidos nos anos de 1970, conforme afirma Diniz (2012, p. 9).

Diferentemente do modelo biomédico, estabelecido e “confinado aos saberes médicos, psicológicos e de reabilitação, a deficiência passou a ser também um campo das humanidades” (2012, p.8). Com isso, interessa-nos pensar a deficiência como uma categoria social, da qual é interpelada por sistemas políticos, culturais e históricos, uma vez que “deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente” (2012, p. 10).

Essas podem ser provocações que justificam pensar a deficiência nesse artigo como uma categoria intrínseca ao indivíduo, tal como gênero, sexualidade, raça, etnia, entre outras.

A deficiência é mais uma característica do indivíduo e que não delineia com aquele outro corpo representado como normal. No entanto, “ao contrário do que se imagina, não há como descrever um corpo com deficiência como anormal. A anormalidade é um julgamento estético e, portanto, um valor moral sobre os estilos de vida”, segundo Diniz (2012, p. 8). Logo, é possível flagrar o estabelecimento do questionamento: deficiência como tragédia ou como mais uma das características humana.

Ao tê-la circunscrita no corpo como parte de sua identidade, a pessoa com deficiência passa ocupar um outro lugar social, o da subalternidade. Pois, como já discutimos até aqui, a deficiência é categorizada como uma anormalidade, uma diferença que desordena, que questiona a ideia de belo/feio e que confronta a hegemonia. Assim, “a deficiência passou a ser entendida como uma forma particular de opressão social, como sofrida por outros grupos minoritários, como mulheres ou os negros”. Daí, quando a teórica indiana Gayatri C. Spivak, em “Pode o subalterno falar?” (2014), em sua pergunta-título nos apresenta a questão sobre o subalterno, podemos, então, refletir quais são as forças que emudecem essas vozes, uma vez que, em termos práticos, todos nós, em alguma linguagem, desenvolvemos uma ou mais formas de se comunicar.

O julgamento ao qual Spivak se refere, destacado na citação acima, que se traduz em falar pelo outro, é uma das muitas experiências opressoras que pessoas com deficiência são submetidas. E, quando são as mulheres nesse lugar, ainda há contribuições do patriarcado empreitando. Logo, pessoas com deficiência tentam sobreviver numa rede de opressões que, a todo instante, buscar mediar e interditar seus corpos e suas vozes. Poderíamos, inclusive, reformular a questão de Spivak e perguntar:

Pode a mulher com deficiência falar?

A resposta para essa pergunta está sendo formulada desde o princípio desse artigo. Essa é uma discussão que não começou aqui, tampouco se encerrará ao fim de nosso texto. Seria possível, caso toda uma ordem social fosse reformulada, se os números de violência contra mulheres com deficiência não fossem uma realidade

A discussão até aqui tentou percorrer por pontos isolados, embora, muitas das vezes, tenhamos vacilado, tal como a linguagem. Mas, agora, vamos pensar essas identidades atuando em conjunto, organicamente. Para esse método, nos alimentaremos com o pensamento do feminismo negro, a partir da intelectual Carla Akotirene, em Interseccionalidade, conceito que ela colaborou para a difusão nos últimos anos no Brasil.

O pensamento desenvolvido neste conceito articula como prática correspondente às minorias políticas ou à diversidade (AKOTIRENE, 2019). E, destaca que a interseccionalidade resulta de um dispositivo ancestral, lócus em que o feminismo negro é construído.

Diante disso, a interseccionalidade não fragmenta o sujeito com suas inúmeras subjetividades, embora os identifiquem, compreende-o como um todo, e de que forma, esse todo implicará nas respostas da sociedade para esse corpo. Daí, pensarmos de que/quais forma/s mulheres com deficiência é/são vista/s e considerada/s nos diversos espaços políticos, sociais e culturais. O questionamento tornar a repetir: mulheres com deficiência são consideradas mulheres?

Buscamos para esse artigo não respostas, mas observar de que maneira esses questionamentos se convertem em dados coletados pelo Estado brasileiro, tal como os divulgados no relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher (CPMIVCM), de julho de 2023. Daí, pensarmos sobre condições e maneiras esses números são/serão utilizados para fomentar políticas públicas para assegurar que corpos de mulheres com deficiência, silenciados em seu território, em suas comunidades, em seus lares, consigam sair vivas das práticas violentas em que foram mergulhadas.

A interseccionalidade ampara-nos teoricamente para refletir sobre como os conjuntos de marcações de identidades menorizadas de um determinado corpo acentuam a disparidade de vulnerabilidade entre outro, inserido, aparentemente, no mesmo espaço. Tal como, mulheres negras com deficiência com deficiência ficam mais suscetíveis à violência de que outras mulheres negras sem deficiência.

Segundo Anahí Guedes, em entrevista para o Senado, em Anahí Guedes e o debate sobre deficiência e gênero, quando questionada sobre o enfrentamento às formas de violência de gênero e o capacitismo, ela afirma que “mulheres com deficiência têm dificuldades de acessar os serviços de denúncia e atenção às vítimas de violências de gênero devido à falta de acessibilidade”, fazendo com que essas mulheres permaneçam sob os cuidados de seus próprios agressores.

Guedes ainda observa que “os poucos estudos nacionais, amparados em referências internacionais, evidenciam o argumento da maior vulnerabilidade de mulheres com deficiência a sofrer violências na esfera doméstica e familiar”, confirmando a implicância do gênero mediante a qualidade de vida que a pessoa com deficiência experiencia. Entretanto, sinaliza que durante seu processo de pesquisa no mestrado constatou que “as violências contra mulheres com deficiência ora são uma expressão do gênero, ora são motivadas pela deficiência ou ainda são o produto da polarização entre gênero e deficiência. Então vai depender do contexto e da descrição de cada caso”, daí a importância de tentar perceber quando a interseccionalização das identidades tem maior implicância ou não, embora defendamos que determinados marcadores só aprofundam a crise da vulnerabilidade social.

Anahí Guedes ainda afirma que no âmbito de uma relação conjugal contra a mulher com deficiência, há a implicação de um terceiro elemento, além da possível dependência emocional e financeira, que fazem com que essas mulheres desistam ou não denunciem os seus agressores, a maioria homens, mediante a pergunta: “Quem vai cuidar de mim?”. Com isso, ela comenta que “‘essa “rede de cuidados’ geralmente inclui pessoas de sua rede de parentesco, majoritariamente mães, pais, irmãos, irmãs, filhos e filhas que, em maior ou menor grau, cuidam ou deveriam cuidar da/do sua/seu filha/filho, irmã/irmão e mãe/pai com deficiência”.

Refletimos até aqui sobre questões inerentes às mulheres com deficiência, sendo a principal entre elas, a violência física e psicológica por agressores que se aproveitam de construções hegemônicas que as colocam numa condição de vulnerabilidade social. Compreendemos que o problema da deficiência não se inaugura na pessoa que a tem como uma característica, mas de uma rede que captura suas vidas e não viabiliza condições ideias de vivências digna e sem ameaças de seu bem estar social, condicionando essas mulheres com deficiência à sobrevivência (até quando?) às inúmeras formas de violência que a cometem. Assim, mulheres com deficiência se encontram, muitas das vezes, em convivência com os seus principais agressores. Isso é grave!

 

REFERÊNCIAS:
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo. Ed. Polén, 2019.

CÂMARA DOS DEPUTADOS DO BRASIL. Disponível:< https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2260907>. Acesso em: 05 de setembro de 2023.

_______. Disponível:< https://www.camara.leg.br/noticias/721736-projeto-inclui-mulher-com-deficiencia-no-rol-exemplificativo-da-lei-maria-da-penha/>. Acesso em: 05 de setembro de 2023.

DF: Presidência da República, [2023]: Disponível:< http://www4.planalto.gov.br/ipcd/entrevistas/anahi-guedes-de-mello-e-o-debate-sobre-genero-e-deficiencia>. Acesso em: 25 de agosto de 2023.

DINIZ, Debora. O que é deficiência. São Paulo. Ed. Brasiliense, 2012.

GUEDES, Anahí. Gênero nas políticas da deficiência, deficiência nas políticas para mulheres: uma análise de documentos oficiais sobre violência contra mulheres com deficiência. In: MORAES, Marcia; MARTINS, Bruno Sena; FONTES, Fernando; MASCARENHAS, Luiza Teles. (Orgs.). Deficiência em questão: para uma crise da normalidade. Ed. Nau. Rio de Janeiro, 2017.

_______. GUEDES, Ahaní; NUERNBERG, Adriano Henrique. Gênero e Deficiência: Intersecções e Perspectivas. Disponível em:< https://www.scielo.br/j/ref/a/rDWXgMRzzPFVTtQDLxr7Q4H/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 23 de agosto de 2023.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 2014.

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