Opinião

O julgamento virtual e secreto nos tribunais

Autor

  • Scilio Faver

    é advogado pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e sócio do escritório Vieira de Castro Mansur e Faver advogados.

    View all posts

9 de dezembro de 2023, 9h23

A Constituição determina a publicidade não apenas das decisões como dos julgamentos. A Carta Magna nos garante que o procedimento do julgamento seja público (artigo 93, IX e incorporado no CPC/15 em seu artigo 11), como verdadeiro ato do processo. Isto é, o rito de pronunciamento e debates que leva a uma decisão colegiada tem que ser público, assim como as decisões advindas deste ato. O próprio dispositivo assinala tal carga de conduta quando enuncia, de forma irretocável, que os “julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos”. E ainda, no mesmo inciso, prevê a exceção — dependente de previsão expressa em lei — de “limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes.” Ainda assim, na exceção prevista, se garante a presença das partes e advogados no ato do processo.

No entanto, o que se tem visto — já há algum tempo — são verdadeiros julgamentos secretos, nos quais apenas a decisão é publicada ao final e disponibilizada para as partes, depois de comunicação interna (à qual sequer é dada publicidade sobre como funciona) entre os julgadores, sem a possibilidade de acompanhamento em tempo real, sequer das partes e dos seus advogados. Os denominados julgamentos virtuais (feitos desta forma) representam uma afronta grave e são realizados na prática dos Tribunais de Justiça e no Superior Tribunal de Justiça. Sedimentam-se à margem da Constituição sem nenhuma preocupação, ao menos aparente, dos tribunais em modificar essa lamentável realidade.

O Supremo Tribunal Federal, no entanto, atento às garantias constitucionais e ao dever imposto de publicidade dos atos processuais, conseguiu, em verdadeiro diálogo com a comunidade jurídica, elaborar um sistema de julgamento virtual. Nele, é possível ao público (seja parte ou advogado no processo) acompanhar em tempo real a votação dos ministros (com a inserção dos seus votos ou posições) com a visualização do inteiro teor do relatório e dos votos inseridos no sistema virtual.

Por meio do sistema eletrônico do STF — frise-se, aberto a todo o público (e não somente às partes e advogados) — é possível verificar, quando do início do julgamento, o inteiro teor do relatório e voto do ministro relator e, no decorrer dos dias, o lançamento dos demais votos dos demais ministros — que podem acompanhar a posição externada pelo relator, apresentar voto escrito também imediatamente disponibilizado para todos, abrir divergência e acompanhar com ressalvas o voto de algum outro julgador.

Também é possível pedir a retirada do caso para julgamento em plenário físico ou até o pedido de vista, que é automaticamente lançado no sistema e disponibilizado para todo o público. Durante o julgamento ainda é assegurado ao advogado enviar questão de fato que é noticiado imediatamente aos ministros do órgão julgador com aviso no sistema.

Além disso, para os casos que permitem sustentação oral é possível o encaminhamento do vídeo ou áudio, pelo prazo assegurado em lei, em que é disponibilizado para todos os ministros e a visualização do arquivo, pelo julgador, é condição para o lançamento do voto. Ou seja, por mais que se argumente — e com razão — que o julgamento virtual acaba por contribuir para um afastamento entre o jurisdicionado e o julgador, precisamente no ato em si, e que deveria não ser a regra absoluta, é verdade que o sistema criado pelo STF não acaba por comprometer a garantia constitucional, sendo uma ferramenta que deve ser utilizada para sistematizar o julgamento de casos rotineiros, sem grande complexidade e que, por vezes, são represados pelo volume de casos gerados pelo acesso à justiça (e que deve ser garantido).

Porém, se de um lado vemos, na prática, a preocupação da Suprema Corte em garantir a publicidade de um ato tão importante como um julgamento colegiado, por outro, lamenta-se a postura de alguns Tribunais de Justiça e do STJ, que implementaram um sistema de julgamento virtual totalmente alijado das garantias constitucionais. Tais julgamentos virtuais dos tribunais possuem uma nulidade flagrante, uma vez que simplesmente são secretos. E são secretos porque não permitem o acompanhamento, em tempo real, da discussão. Ou seja, o ato denominado de “julgamento” é, em si, totalmente inacessível às partes e aos seus advogados.

Simplesmente se pauta o caso numa lista de processos (geralmente com uma enormidade de casos distintos), em sistema interno ao qual apenas os julgadores possuem acesso. Já as partes e os advogados apenas são cientificados de que o julgamento começará em determinada data e que o resultado (ou seja, a decisão conclusiva, pois o ato em si do julgamento não é publicizado) será disponibilizado a partir de tal dia.

Não houve preocupação — e tal prática já vem sendo reiteradamente feita até antes mesmo do atual CPC/15 — com o acompanhamento (ao menos das partes e seus advogados) em tempo real do lançamento dos votos dos julgadores. Não se permite envio de questão de fato, até pelo fato de os advogados sequer conhecerem, durante o julgamento, o voto do relator. Em alguns tribunais, a indicação de que algum julgador irá divergir do voto apresentado pelo relator faz com que o caso seja retirado deste ambiente virtual secreto. Porém, tal situação apenas confirma o quão perverso é essa sistemática. Ou seja, já que estão todos concordes com o relator, não há motivos para a sessão ser pública ou se permitir a participação dos advogados. Esse é o recado que se passa com essa atitude. Nada mais perverso e com teor nitidamente autoritário.

É importante que se diga que uma sessão de julgamento não é um ato de propriedade do tribunal a ponto de poder conferir tratamento exclusivo ou arbitrário. É um ato público e, portanto, compartilhado, onde os julgadores exercem uma função assim como advogados também a exercem neste mesmo ato. Cada sujeito tem o seu poder-dever em busca de um processo cooperativo e, portanto, as sessões de julgamento não podem ser reguladas por ato de disposição do Tribunal como sendo algo de sua incumbência exclusiva.

As sessões de julgamento são, antes de tudo, reguladas em lei, justamente para atribuição de poderes e deveres de todos os sujeitos da relação processual (assim como toda a dinâmica do processo). O julgamento como ato processual interessa a todos pelo fato decorrer da pluralidade de sujeitos. Basta pensar que se o caso chegou até um tribunal é porque um sujeito o levou (e esse sujeito não é o julgador e muito menos alguém daquele tribunal). Por óbvio, a sua participação direta é indispensável. Logo que foi “idealizada” tal sistemática secreta em regimentos internos dos tribunais ou em resoluções dos órgãos julgadores, ainda se permitia que o caso concreto fosse retirado da dita “pauta virtual” em razão de simples pedido da parte.

Com o passar do tempo, a audácia em desrespeitar regra basilar de um Estado Democrático de Direito foi tanta que, em alguns tribunais, tais pedidos são indeferidos, sob o fundamento de que, se o julgamento de tal recurso não enseja sustentação oral, não haveria, portanto, prejuízo em ser julgado secretamente. Tal fundamento é simplesmente aviltante e confunde conceitos e formas sabidamente distintos para querer sustentar o insustentável e desconsidera, mais uma vez, que o ato denominado de julgamento não é algo que seja exclusivo dos julgadores (muito menos de livre disposição dos seus integrantes).

Havendo ou não possibilidade de sustentação oral, é necessário dizer o óbvio, o julgamento sempre deverá ser público, isto é, o rito de tomada de decisões deve ser público. Confundir o ato em si com a decisão que ele produz é confusão que apenas intenta disfarçar aquilo que não quer se dizer: que esses julgamentos virtuais, em que não se permite o seu acompanhamento real (ainda que virtual), é totalmente afrontoso à garantia constitucional. É urgente que isso seja cobrado e percebido institucionalmente pelas cortes de Justiça e pelo STJ.

É deveras tormentoso institucionalmente que a mais alta corte do Brasil tenha corretamente ordenado um sistema eletrônico que garante a publicidade, mas que até hoje, os tribunais e o STJ ainda não tenham seguido tal caminho para implementarem, na prática, igual sistemática.

Tal fato revela muito da institucionalidade frágil e de um sentimento até egocêntrico dos órgãos do Poder Judiciário em não perceberem — na prática — que a falta de uniformidade, não apenas das decisões, mas também nos seus rituais, abalam a confiança da sociedade e a própria consecução da justiça. A falta de, no mínimo, sensibilidade e percepção de que os atos processuais são cooperativos e que o processo nada mais é do que uma verdadeira comunidade de trabalho, espelham uma justiça que se afasta da sociedade e do seu objetivo. O julgamento virtual, da forma que vem sendo praticada, sem a possibilidade de acompanhamento sequer pelas partes interessadas, durante o julgamento, revela-se totalmente afrontoso e precisa de uma urgente reflexão.

A 3ª Jornada de Direito Processual Civil, promovida pelo Conselho de Justiça Federal, aprovou enunciado que merece aplausos e que deve ser imediatamente observado (ainda que se saiba que os enunciados não possuem vinculação e que funcionam com elemento de persuasão), pois representa uma mensagem direta e crítica da doutrina e de juristas preocupados com a qualidade da prestação jurisdicional. Ementado sob o nº 188, assevera que “Os votos proferidos nos julgamentos virtuais dos tribunais devem ser publicizados em tempo real, à medida que forem sendo disponibilizados pelos julgadores.”

Portanto, não se condena a possibilidade de julgamentos virtuais em busca da celeridade e efetividade das tutelas jurisdicionais. Também não se pode admitir a cegueira de que fosse possível, hoje, manter um sistema apenas convencional para resolução de tantas demandas que chegam ao judiciário onde certamente a morosidade seria ainda pior. Porém, não se pode admitir o estrangulamento de garantias constitucionais a ponto de criarem julgamentos, como já ocorrem em montes, secretos. O ato de julgar num órgão colegiado é público e não pode dispensar a participação do público, pois a confiança decorre dessa publicidade.

O ato processual denominado de julgamento não é algo que pertença ao tribunal, pertence ao processo, e por sua vez, processo é uma relação jurídica do qual o Judiciário integra com poderes e deveres, mas que não se pode conceber como sendo um proprietário absolutista. O Supremo percebeu, desde logo, essa problemática e a enfrentou elegantemente com um sistema virtual que atende às garantias constitucionais. A Corte Suprema, guardiã da Constituição, percebeu e agiu. Causa perplexidade que a sua ação (e, portanto, sua voz) não seja percebida — ouvida — pelos demais órgãos do Judiciário.  Como diz a canção imortal do grande Gonzaguinha: “Chega de tentar, dissimular e disfarçar e esconder, o que não dá mais pra ocultar, e eu não posso mais calar (…) Não dá mais para segurar…”

Autores

  • é advogado, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e sócio do escritório Vieira de Castro, Mansur e Faver advogados.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!