Opinião

Dialeticidade recursal e má-fé por deturpação de fatos

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16 de agosto de 2023, 19h37

O cânone da incidência una, direta e total do ordenamento jurídico é comezinha questão teórica de Direito [1].

Contudo, é natural que as turbulências do cotidiano e a complexidade do emaranhado normativo moderno distraíam o jurista da visualização e aplicação [2] de todas as normas atraídas pelo mesmo fato jurídico (em abstrato; tatbestant).

No Processo Civil tal fenômeno pode ser observado quantos às normas sobre a má-fé processual (artigo 79 e seguintes, CPC) e a dialeticidade recursal cujo núcleo principal [3] está no artigo 932, III, do CPC:

"Artigo 932. Incumbe ao relator:[…].

III – não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida;".

Como se sabe, o princípio da dialeticidade recursal, há tempos, está introjetado na orientação jurisprudencial pátria [4].

No âmbito doutrinário não é diferente, como se vê nas lições de Scarpinella Bueno, de que todo e qualquer recurso ter de

"[…]. combater a decisão jurisdicional naquilo que ela o prejudica, naquilo que ela lhe nega pedido ou posição de vantagem processual, demonstrando o seu desacerto, do ponto de vista procedimental (erro in procedendo) ou do ponto de vista do próprio julgamento (error in judicando)" [5].

E categoricamente afirma que:

"Não atende ao princípio aqui examinado o recurso que se limita a afirmar a sua posição jurídica como a mais correta. É inepto o recurso que se limita a reiterar as razões anteriormente expostas e que, com o proferimento da decisão, ainda que erradamente e sem fundamentação suficiente, foram rejeitadas. A tônica do recurso é remover o obstáculo criado pela decisão e não reavivar razões já repelidas, devendo o recorrente desimcumbir-se a contento do respectivo ônus argumentativo" [6].

O que se vê, tanto em demanda entre particulares, quanto às que envolvem a administração pública é o crescente número de recursos  principalmente apelações  que mal tangenciam os autos, não dialogando com nada: nem com a sentença, nem com as provas e, não raro, nem com o estilo das peças apresentadas em 1º grau de jurisdição.

Arrisca-se a atribuir tal fato à forte segmentação de trabalho contencioso que se espalha entre as procuradorias e mesmo em escritórios de advocacia de certo porte: dificilmente quem redigiu e protocolou a petição inicial, a contestação e as demais peças de instrução será quem redigirá o recurso.

Claro, na maioria dos casos, isso não é problema, porém, quando, por qualquer motivo, olvida-se de importantes nuances dos autos, há o grave risco de faltar com dialeticidade.

Pior, de faltar com a boa-fé processual.

Convém um singelo exemplo.

Imagine um corriqueiro caso de danos morais envolvendo a administração pública. Estudante do ensino fundamental em escola pública é agredido nas dependências da escola em horário de aula. Passa no pronto-socorro; dores na cabeça; receitam-no apenas um analgésico pelas dores. Na escola, o corpo diretivo-docente diz não ter visto a briga. Entra-se com a ação judicial. Na petição inicial menciona-se que permanecem as dores na cabeça, principalmente perto do olho esquerdo. Trâmite processual. Perícia constata o dano (nessa altura, aparentemente módico), o nexo e diz que pode ter agravamento. Após a perícia noticia-se nos autos: houve necessidade de retirada do olho esquerdo do autor.

A sentença concede danos morais fundamentando-se fortemente no drástico dano: o autor perdeu um olho em razão da briga.

Pois bem. Hora do recurso fazendário.

Qual não é a surpresa quando o recurso apresenta todas as teses processuais e dogmáticas já apresentadas em contestação e nas impugnações intermediárias, mas… diz, firmemente, que não houve grave dano ao autor, que, aliás, como, consta na inicial e na perícia, só apresenta dores persistentes, mas moderadas…

Não, não são raros casos assim. O recurso, provavelmente feito com base em um breve resumo oferecido por um colega, sem a detida análise dos autos e mesmo da sentença. Culpa lata dolo aequiparatur.

E aqui surge também a incidência do artigo 80, I e II, do CPC:

"Artigo 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:

I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II – alterar a verdade dos fatos; […]".

O resultado é: recurso sem dialeticidade e que não atingiu o mínimo de boa-fé processual por ignorar de tal maneira fato importantíssimo dos autos que se considera que foram distorcidos fatos incontroversos.

Difícil afirmar que todos os casos de ausência de dialeticidade impliquem automaticamente em reconhecimento de má-fé. Todavia, quando há ausência de dialeticidade por ausência de fundamentação recursal especifica sobre fato incontroverso usado na fundamentação do decisum recorrido, parece ser inescapável a incidência concomitante das normas processuais aventadas.

A resposta judicial deve ser uma: não se conhece do recurso por ausência de dialeticidade e resta aplicada a penalidade por má-fé processual.

 


[1] No início do célebre Tratado de direito privado, tomo I, já alertava firmemente PONTES DE MIRANDA: "INCIDÊNCIA E APLICAÇÃO: – […]. (a) é falsa qualquer teoria que considere apenas provável ou suscetível de não ocorrer a incidência das regras jurídicas (o homem não organizou a vida social deixando margem à não-incidência, porque teria sido o ordenamento alógico, em sistema de regras jurídicas em que essas poderiam não ser" (destaques no original. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, 3ª ed.,  p. 4).

BECKER, ao falar do cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico, esclarece que a lei "[…] age sobre as demais leis do sistema, estas, por sua vez, reagem; a resultante lógica é a verdadeira regra jurídica da lei que provocou o impacto inicial ". (BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Noeses, 2018, 7ª ed., p. 122; destaques no original).

[2] Lembrando que são inconfundíveis a incidência e aplicação. A norma jurídica incide infalivelmente, por ter natureza eminentemente lógica. A aplicação, por envolver diversos fatores meta ou ajurídicos até, pode, indevidamente, transbordar da lógica normativa.

[3] As normas que indicam conteúdo necessário de recursos inevitavelmente ressaltam a necessária dialeticidade recursal, por exemplo, o artigo 1.010, do CPC, que versa sobre a apelação.

[4] Exemplificativamente, bastam as Súmula nn. 182-STJ ("É inviável o agravo do artigo 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada"), 284-STF ("É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia") e 287-STF ("Nega-se provimento ao agravo, quando a deficiência na sua fundamentação, ou na do recurso extraordinário, não permitir a exata compreensão da controvérsia").

[5] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2016, 2ª ed., p. 671; destaques no original.

[6] Idem.

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