Opinião

Necessidade de critérios idôneos de diferenciação entre traficante e usuário

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15 de agosto de 2023, 13h13

Em 2/8/2023 o STF deu continuidade ao julgamento do RE 635.659, que discute a descriminalização do uso da maconha. Na oportunidade, o ministro Alexandre de Moraes apresentou voto embasado em impressionante pesquisa da Associação Brasileira de Jurimetria, que analisou 656.408 ocorrências policiais ente 2003 e 2017 no estado de São Paulo.

Ao concluir o voto, o ministro propôs cinco teses [1]. A principal proposta foi adotar uma presunção relativa, considerando a atual arbitrariedade ao se decidir quem é usuário e quem é traficante: é usuário quem possuir até entre 25 a 60 gramas de maconha e traficante quem possuir mais que isso.

Relembre-se que o ministro Luís Roberto Barroso apresentou proposta semelhante, presumindo como usuário o indivíduo que porta de até 25 gramas de maconha, mas em quantidades mais elevadas ainda seria necessário apurar se a droga é destinada para uso próprio.

De pronto, ressalte-se que os efeitos da criminalização das drogas são imensuravelmente danosos, inclusive para o usuário. Salo de Carvalho menciona, em relação aos custos da criminalização pra os consumidores e dependentes: a ausência de controle sobre a composição química, a qualidade, os efeitos e a dose da droga; o estigma sobre o usuário, que o afasta da assistência médica e social; a incompatibilidade com políticas de redução de danos, o que propicia a propagação de doenças como HIV e hepatite e maior dano à saúde dos indivíduos; entre outros [2].

Portanto, este texto não discute se o STF estará correto em declarar a inconstitucionalidade do uso da maconha, adotando isso como premissa. O objetivo é compartilhar preocupações e contribuir para o aperfeiçoamento da discussão, principalmente no que diz respeito à caracterização do tráfico.

Adotar critérios para a diferenciação entre usuário e traficante, como proposto pelo ministro Alexandre de Moraes, é importante. Por outro lado, não pode haver uma inversão do ônus probatório a quem porta mais de meras 60g de maconha, já que a Constituição determina como única presunção a de inocência. Assim, o tráfico só deve ser considerado quando existirem elementos que demonstram o intuito de comércio ou quando a quantidade da droga for tão grande que evidencie que ela não é destinada a consumo próprio.

O estabelecimento de uma presunção relativa de usuário na hipótese de portar até 60g desde que inexistam outros elementos que caracterizem o tráfico não representa nenhuma evolução: apenas reafirma o que já deveria valer e prejudica quem é encontrado com mais de 60g.

Pode-se mencionar caso julgado pelo STJ em que houve apreensão de 74g de maconha, 8,2g de cocaína e 3,7g de crack. Pelos critérios propostos, na ausência de "comprovação de tratar-se de usuário", o indivíduo seria considerado traficante pela quantidade de drogas. Entretanto, a conclusão da 6ª Turma do STJ foi que "a quantidade de entorpecentes apreendidos não é capaz de evidenciar, por si só, sua destinação comercial" e que "não foram mencionados elementos que demonstrem, de modo satisfatório, a destinação comercial da droga localizada com o acusado" [3].

Existem muitos outros exemplos, mas este basta para perceber o potencial retrocesso e que não deve haver presunção relativa de tráfico, salvo quando a quantidade evidenciar, por si só, que a droga possui essa destinação. Como o relator afirmou em seu voto, a finalidade comercial de uma tonelada de maconha não demanda esforço argumentativo. Todavia, excluídos casos extremos, sempre deve ser necessário prova que demonstre o objetivo do tráfico.

Por outro lado, é possível criar uma cláusula de barreira de criminalização, determinando que o porte ou armazenamento de até determinada quantidade sempre será uso, nunca tráfico  regra que poderia não ser aplicada a determinados verbos do tipo, como "vender". Mas, para quantidades maiores, a avaliação da destinação da droga deve continuar imprescindível. A ideia de cláusula de barreira é adotada em outros países e é proposta ao Brasil por Salo de Carvalho nestes termos, sem que constitua inversão do ônus probatório [4].

Ademais, para além da quantidade de droga, é importante o STF estabelecer qual é o standard probatório necessário para caracterizar a destinação comercial da droga. O ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, menciona, na quarta tese proposta: "a forma de acondicionamento, a diversidade de entorpecentes, a apreensões de outros instrumentos como balança, cadernos de anotação, celulares com contatos de compra e venda (entrega 'delivery'); locais e circunstâncias de apreensão".

Primeiramente, deve-se questionar a idoneidade do critério "a diversidade de entorpecentes". Isso porque traficantes podem vender apenas uma droga e usuários podem utilizar várias, assim como indivíduos fazem uso simultâneo de drogas lícitas, como o cigarro e o álcool (relembre-se do precedente do STJ, HC 457.433, em que foram apreendidas três drogas e o indivíduo foi considerado usuário). A não ser que a variedade de drogas seja tamanha que evidencie a impossibilidade de ser destinada a uso próprio (dezenas, por exemplo), não deve ser um critério para caracterizar o tráfico.

Em relação à "forma de acondicionamento", também é circunstância inconclusiva, já que o usuário compra a droga com a embalagem que o traficante entrega. É possível, por exemplo, que um usuário interessado em 65g de maconha receba ela fracionada de um traficante que só possui porções de 5g. Se esse usuário é abordado virando a esquina, segundo os critérios propostos, seria considerado traficante em razão da quantidade, da forma de acondicionamento e do local, se for um conhecido ponto de venda de drogas.

Por outro lado, quando o suspeito é encontrado com material para embalagem ainda não utilizado, evidenciando que ainda iria fracionar e embalar a droga no futuro, isso pode ser um indício da destinação comercial, que entraria no que o ministro Alexandre de Moraes chamou de "outros instrumentos". Apesar disso, balanças não são instrumentos exclusivos de traficantes, já que o usuário pode pesar a droga para saber se obtém a quantidade acordada. Por isso, a presença delas é um elemento nebuloso, ainda mais se desacompanhado de outras circunstâncias que indiquem a destinação comercial da droga.

Quanto às circunstâncias da apreensão, também podem denotar, por si só, se é caso de tráfico, por exemplo na hipótese de o indivíduo ser visto entregando pacotes para várias pessoas. Todavia, qual o standard probatório para provar essas circunstâncias? Vale apenas a palavra do policial de que avistou o indivíduo entregando drogas, ou são necessários outros elementos, como fotos, vídeos e testemunhas?

No caso, se apenas a palavra do policial continuar sendo acatada é difícil imaginar alguma mudança efetiva. Principalmente uma alteração no perfil de quem é criminalizado de forma mais intensa, jovens negros e pobres, que continuarão reféns da boa-fé policial.

O julgamento pelo STF é um passo importante. Contudo, para além disso é preciso uma mudança de mentalidade, pois, assim como ocorre em relação à Lei 12.403/11, sobre as medidas cautelares, aplicar a Lei de Drogas como se fosse um mero instrumento de criminalização não soluciona os complexos dilemas sociais por trás da questão e contraria o intuito do legislador, de diminuir a quantidade de prisões.

Em conclusão, a proposta do ministro de Alexandre de Moraes de fixar tese estabelecendo critérios para diferenciar o usuário e o traficante deve ser louvada, visto a insuficiência do genérico §2º do artigo 28 da Lei de Drogas e a prática judiciária atualmente. Este texto teve como objetivo de salientar a necessidade de o STF se aprofundar ainda mais na questão, estabelecendo de forma clara 1) quais circunstâncias são idôneas (e quais não são) para caracterizar o tráfico e 2) as provas necessárias para comprovar essas circunstâncias  notadamente, se basta a palavra dos policiais que realizam o flagrante.

 


[1] As teses propostas são as seguintes, segundo o voto em elaboração do ministro:

"1. Não tipifica o crime previsto no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, a conduta de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, a substância entorpecente “maconha”, mesmo sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

2. Nos termos do §2º do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, será presumido usuário aquele que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trazer consigo, uma faixa fixada entre 25,0 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas, dependendo da escolha mais próxima do tratamento atual dados aos homens brancos, maiores de 30 anos e com nível superior;

3. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas mesmo quando a quantidade de maconha for inferior à fixada, desde que, de maneira fundamentada comprovem a presença de outros critérios caracterizadores do tráfico de entorpecentes;

4. Nas hipóteses de prisão em flagrante por quantidades inferiores a fixada no ítem 2, para afastar sua presunção relativa, na audiência de custódia, a autoridade judicial, de maneira fundamentada, deverá justificar a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva e a manutenção da persecução penal, apontando, obrigatoriamente, outros critérios caracterizadores do tráfico de entorpecentes, tais como a forma de acondicionado, a diversidade de entorpecentes, a apreensões de outros instrumentos como balança, cadernos de anotação, celulares com contatos de compra e venda (entrega 'delivery'); locais e circunstâncias de apreensão, entre outras características que possam auxiliar na tipificação do tráfico;

5. Nas hipóteses de prisão em flagrante por quantidades superiores a faixa de 25,0 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas, dependendo da escolha mais próxima do tratamento atual dados aos homens brancos, maiores de 30 anos e com nível superior, na audiência de custódia, a autoridade judicial deverá permitir ao suspeito a comprovação de tratar-se de usuário".

[2] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 183-205.

[3] HC nº 457.433/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, DJe 03/04/2019.

[4] "Ocorre que a introdução de dados quantitativos forneceria a possibilidade de excluir, a priori, discussão (instrução cognitiva) acerca de casos irrelevantes ou a avaliação de graduação do comércio. O estabelecimento de critérios específicos individualizados relativos à quantidade das principais drogas de consumo criaria presunção legal ou jurisprudencial sobre os limites das condutas, sem excluir os elementos relativos ao dolo e as demais circunstâncias do artigo 28, §2º, da Lei de Drogas. Se se utilizar, por exemplo, o critério espanhol das 50 gramas de haxixe ou maconha para definição do porte ou armazenamento para uso pessoal, estaria estabelecida cláusula de barreira que implicaria duas consequências: (1ª) até o limite haveria presunção legal ou jurisprudencial de uso, sendo as condutas tratadas no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, aplicados os institutos inerentes (transação penal e suspensão do processo); (2ª) a partir do parâmetro quantitativo, para definição da tipicidade seriam avaliadas a finalidade (art. 28, caput, Lei 11.343/26) e as demais circunstâncias da conduta (art. 28, § 2º, Lei 11.343/06)". (CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 286-287).

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