Inconstitucionalidade por vexame

Instrução normativa do Rio Grande do Sul viola dignidade de familiares de presos

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13 de agosto de 2023, 7h37

Uma instrução  normativa da  Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) — órgão do governo do Rio Grande do Sul — tem provocado indignação entre advogados, defensores dos Direitos Humanos, presos e seus familiares.

Pastoral Carcerária | Reprodução
Instrução normativa do governo do Rio Grande do Sul tem provocado protestos
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Trata-se da Instrução Normativa 014/2023 que, entre outras coisas, estabelece que mulheres e adolescentes menores de idade menstruadas deverão trocar de absorvente na frente da policial penal.

O texto também determina que crianças deverão trocar de fraldas na frente das agentes, assim como idosos que utilizam o item por problemas de saúde. 

As exigências para que familiares possam visitar seu parente apenado são tantas que criaram até um novo mercado de roupas. "Antes mesmo da instrução normativa entrar em vigor, as pessoas que visitavam seus familiares começaram a receber orientações de que no futuro pessoas trajadas com roupas com zíper, bolsos ou bordados não iriam entrar. Chegou-se ao cúmulo de uma costureira começar  a fazer roupas nos moldes das orientações cujo valor era de R$ 1.600", explica a advogada Márcia Almeida, que acompanha com a também advogada Ariane Deves algumas pessoas que estão mobilizadas em protesto contra as novas regras. 

Márcia, ao lado da advogada Andréa Garcia Lobato, assina um pedido de providências que pede a garantia do direito dos familiares de visitarem seus parentes presos. Na petição, as advogadas apresentam detalhes sobre o comércio do "kit da cadeia". "Esse pedido foi feito em 27 de julho. É muita falta de diálogo", lamenta a advogada. 

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Famílias vulneráveis chegaram a gastar R$ 1.600 para se adequar as exigências da instrução normativa do governo gaúcho
Acervo pessoal

O artigo 118 da instrução normativa determina que as peças dos visitantes deveriam ser da cor azul, vermelha, rosa ou amarela, em tom claro, impondo aos familiares uma espécie de uniforme. 

A instrução normativa foi publicada no último dia 10 de julho com prazo de 30 dias para ser implementada. Algumas casas prisionais do estado já começaram a implementar as exigências. 

Inconstitucionalidade por vexame
A pedido da ConJur, o jurista e advogado Lenio Streck analisou a instrução normativa e foi enfático ao apontar a inconstitucionalidade da iniciativa do governo gaúcho. 

"A portaria cria um novo instituto jurídico: a inconstitucionalidade por vexame. Viola a dignidade dos visitantes. Ora, a vigilância deveria ser feita no preso depois da visita. E não no visitante. Há uma inversão no 'sistema'. O estado acha mais fácil avexar os visitantes do que revistar o preso depois da visita. E isso que o sistema prisional foi declarado um Estado de Coisas Inconstitucional. Imagina se não fosse", resumiu. 

Márcia Almeida explica que as regras impostas na instrução normativa também afetam até o Poder Judiciário gaúcho. "A portaria proíbe até o juiz fiscalizador da unidade prisional de visitar o local que ele fiscaliza sem marcação prévia. Isso não existe", afirma. 

O advogado e professor de Direito de Execução Penal José Flávio Ferrari engrossa o coro contra a norma que limita a atuação de juízes. "O artigo 88 desta instrução normativa é um absurdo jurídico. É o governo estadual determinando como um juiz deve agir. O juiz corregedor tem a competência conforme o artigo 66 da Lei de Execução Penal de inspecionar as casas prisionais. E isso vale também para o Ministério Público e para a Defensoria Pública. Eles podem fazer isso a qualquer tempo. Sem prévio ajuste ou prévia informação." 

Restrição alimentar
Diante das imposições da portaria, uma parte dos presos do estado entabulou um protesto pacífico em que se negavam a consumir alimentação fornecida pelo estado. Também se negaram a comparecer a audiências e receber atendimento médico. "Não era uma greve de fome. Era uma manifestação pacífica. É bom que se diga que a alimentação fornecida pelo Estado é insuficiente. O governo do Rio Grande do Sul além de não fornecer a quantidade adequada de comida quer piorar o que é ruim, já que deseja restringir o que os familiares levam", explica Márcia. 

Como retaliação, a Susepe confiscou todos os alimentos levados aos detentos por seus familiares. O que as famílias compraram e levaram aos apenados foi tirado. "É quase uma apropriação indébita. Um furto. Eu diria até roubo porque foi feito por grave ameaça", lamenta a advogada.

Diante do confisco alimentar, a juíza Priscila Gomes Palmeiro determinou a devolução dos gêneros alimentícios. "Na Constituição Federal há o recado, não há como legitimar ilegalidades disfarçadas, nem ilicitudes com 'aparência de legalidade'. Na verdade, nenhum poder está imune ao controle", diz trecho da decisão.

A magistrada questiona o fato de o Poder Judiciário não ter sido informado sobre a sanção imposta aos presos que aderiram ao protesto. 

"Com efeito, se os princípios que informam a execução da pena e a responsabilidade por faltas disciplinares são a individualização e a responsabilidade individual, não é possível que, sem nenhum tipo de procedimento, o preso sofra sanção aplicada sem que seja apontado exatamente em que sua conduta pessoal violou as normas de ordem e disciplina da execução penal", registrou.

A Susepe alegou falta de pessoal para cumprir a decisão no prazo estipulado e quando devolveu os gêneros alimentícios levados pelos familiares aos presos já se encontrava estragada. 

Transferência por manifestação
Outro ponto de atrito entre a Susepe e o Poder Judiciário gaúcho ocorreu com o juiz da central de transferências, Roberto Coutinho Borba. Diante da iniciativa dos presos de se manifestar contra a portaria, a Susepe pediu a transferência de alguns presos. O magistrado negou o pedido. 

Contudo, apesar da negativa do juiz, o órgão do governo gaúcho transferiu os presos sem autorização. Diante disso, o julgador proferiu nova decisão determinando que os presos transferidos sejam devolvidos à unidade prisional de origem.

"Não bastasse o descumprimento da ordem judicial, o juízo determinou o retorno dos apenados à origem, no prazo de 24 horas. Suplantado o prazo, não houve cumprimento do comando judicial, tampouco qualquer esclarecimento da Susepe", registrou o juiz. 

Diante disso, o juiz intimou pessoalmente o superintendente da Susepe para imediato cumprimento da decisão, sob pena de encaminhamento do expediente para apuração de responsabilidade criminal e administrativa.

Os presos passaram a aceitar a comida fornecida pelo estado nesta sexta-feira (11/8), mas a insatisfação sobre a instrução normativa  014/2023 continua.

Clique aqui para ler o texto da instrução normativa
Clique aqui para ler o pedido de providencias
Processo 8000668-37.2023.8.21.0010
Processo 8002888-35.2023.8.21.0001

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