Assédio moral, assédio sexual e discriminação na Advocacia
9 de agosto de 2023, 12h23
A Lei nº 14.612, de 3 de julho de 2023, inseriu o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação entre as infrações ético-disciplinares no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil. A inclusão dessas infrações era esperada, já que são atos que atentam contra a dignidade humana e vêm sendo combatidos em todo o mundo de maneira cada vez mais severa.
No Brasil, o combate ao assédio ganhou força primeiramente no âmbito da Justiça do Trabalho, e posteriormente na administração pública, tendo o Superior Tribunal de Justiça considerado como improbidade administrativa tanto a prática do assédio moral (REsp 1286466/RS, Relª. Minª ELIANA CALMON, 2ª Turma, publ. DJe 18/09/2013) quanto o assédio sexual (REsp 1255120/SC, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, 2ª Turma, publ. DJe 28/05/2013).
O reconhecimento da discriminação e dos assédios como infrações disciplinares no âmbito da Advocacia está contido no inciso XXX do art. 34 do Estatuto da OAB, inserido pela Lei nº 14.612/2023:
"Art. 34. Constitui infração disciplinar:
XXX – praticar assédio moral, assédio sexual ou discriminação."
É claro que uma definição completamente objetiva e com a indicação precisa de todos os atos que caracterizam essas infrações nunca é possível, até mesmo porque as mudanças da sociedade, das relações humanas, das formas de prestar serviços e a evolução da tecnologia não permitem uma relação taxativa. Uma prova disso é que atualmente se admite o assédio no ambiente virtual, o que há poucos anos parecia uma realidade distante. O que o julgador faz é analisar objetivamente os atos que foram praticados e verificar se estes se enquadram na descrição da infração disciplinar. De uma maneira geral, a nova Lei buscou conceituar essas infrações da maneira mais objetiva possível, nos incisos I a III do § 2º inserido ao artigo 34 do Estatuto da OAB.
O assédio moral
"Art. 34, § 2º, I – assédio moral: a conduta praticada no exercício profissional ou em razão dele, por meio da repetição deliberada de gestos, palavras faladas ou escritas ou comportamentos que exponham o estagiário, o advogado ou qualquer outro profissional que esteja prestando seus serviços a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de lhes causar ofensa à personalidade, à dignidade e à integridade psíquica ou física, com o objetivo de excluí-los das suas funções ou de desestabilizá-los emocionalmente, deteriorando o ambiente profissional;"
As principais características da infração são:
– O dispositivo exige que a conduta tenha sido praticada no exercício profissional ou em razão dele, o que exclui os atos praticados como cidadão comum, não ligados à profissão.
– O dispositivo exige a repetição, de tal forma que uma única ocorrência não se mostra suficiente para a caracterização da infração de assédio moral. A ocorrência isolada, no entanto, pode eventualmente ser tipificada como violação ao dever de urbanidade, contido no Código de Ética.
– Todas os meios de exteriorização do assédio estão contidos na infração, ou seja, falados, gesticulados ou escritos, manifestados pessoalmente, em ambiente telefônico, virtual ou outro meio.
– O assédio se caracteriza em relação a um grupo específico de destinatários, quais sejam, estagiários, advogados ou outros profissionais prestadores de serviços. Em relação aos estagiários, não é incomum a existência de grandes escritórios ou departamentos jurídicos nos quais o exercício da Advocacia é separado por setores, assim como, no setor público, a existência de Procuradorias de grande porte. Não se exige, para configuração da infração, que o estagiário esteja diretamente subordinado ao advogado acusado. Em relação aos advogados, o Código de Ética exige em seu art. 29 que “O advogado que se valer do concurso de colegas na prestação de serviços, seja em caráter individual, seja no âmbito de sociedade de advogados ou de empresa ou entidade em que trabalhe, dispensar-lhes-á tratamento condigno (…)”, de tal forma que a assédio pode atingir advogados que atuem como empregados, associados ou sócios minoritários. Também pode atingir advogados públicos, assessores e procuradores que atuem em conjunto. Em relação aos demais prestadores de serviços, o dispositivo inclui funcionários que trabalhem nos escritórios particulares e assessores ou servidores que trabalhem em um mesmo departamento jurídico ou órgão público, entre outras hipóteses.
– O dispositivo exige que a submissão da vítima a situações humilhantes e constrangedoras sejam capazes de lhes causar ofensa à personalidade, à dignidade e à integridade psíquica ou física. Isso demonstra que os bens jurídicos tutelados são a honra, a dignidade e a saúde psíquica e física. É claro que o assédio moral pode, dada sua gravidade, chegar a atingir a saúde mental e física da pessoa que está sendo assediada; no entanto, é preciso deixar claro, essa circunstância é um possível efeito, um agravamento, mas jamais um requisito para a configuração do assédio. Para que este esteja presente, é suficiente a ofensa à personalidade e à dignidade da pessoa humana.
– O dispositivo exige que o assédio praticado tenha por finalidade excluir a vítima de suas funções ou desestabilizá-la emocionalmente, deteriorando o ambiente profissional. O assédio para exclusão ocorre quando tem por finalidade forçar psicologicamente a saída involuntária da vítima do próprio trabalho (mediante pedido de demissão ou rompimento do contrato de prestação de serviços) ou de um setor específico (mediante relotação). O assédio para desestabilização ocorre quando tem por finalidade reduzir na vítima sua produtividade, suas relações com os colegas de trabalho e sua autonomia, entre outros aspectos, o que pode lhe impedir de obter promoções, de receber de seus superiores hierárquicos tarefas de um nível mais elevado e se destacar na carreira, podendo levá-lo inclusive a uma demissão. Nem sempre o assediador é aquele que tem o poder hierárquico de demitir diretamente a vítima, tendo apenas uma hierarquia superior dentro de um ambiente competitivo por melhores colocações nos cargos mais importantes. Em ambos os casos, há a deterioração do ambiente profissional, fazendo com que o exercício das funções se torne psicologicamente um tormento.
O assédio sexual
"Art. 34, § 2º, II – assédio sexual: a conduta de conotação sexual praticada no exercício profissional ou em razão dele, manifestada fisicamente ou por palavras, gestos ou outros meios, proposta ou imposta à pessoa contra sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual;"
Essa modalidade de assédio é considerada ainda mais grave que o assédio moral. Essa gravidade conduziu o legislador pátrio a incluir o assédio sexual no Código Penal:
"Assédio sexual
"Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos."
Apontamos os elementos característicos dessa conduta:
– A conduta deve ter conotação sexual. Não existe uma distinção de gêneros, de tal forma que homens, mulheres, gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e etc., podem ser vítimas do assédio sexual. A forma de assédio mais frequente, no entanto, é a praticada contra mulheres.
– O dispositivo exige que a conduta tenha sido praticada no exercício profissional ou em razão dele, o que exclui os atos praticados como cidadão comum, não ligados à profissão.
– O dispositivo não exige a repetição, como fez com o assédio moral.
– Todos os meios de exteriorização do assédio estão contidos na infração, ou seja, falados, gesticulados, escritos, imagens e outros meios, sejam eles manifestados pessoalmente, em ambiente telefônico, virtual ou outro.
– O assédio deve ser proposto ou imposto à pessoa contra a sua vontade, o que exclui os relacionamentos consensuais.
– O dispositivo exige que o assédio cause constrangimento, violando a liberdade sexual da vítima.
– O dispositivo, ao contrário do art. 216-A do Código Penal, não exigiu a condição de superior hierárquico para fins disciplinares.
– A infração não exige efetivo dano psicológico ou físico, bastando que o ato seja suficiente a causar constrangimento que viole a liberdade sexual.
A discriminação
"Art. 34, § 2º, III – discriminação: a conduta comissiva ou omissiva que dispense tratamento constrangedor ou humilhante a pessoa ou grupo de pessoas, em razão de sua deficiência, pertença a determinada raça, cor ou sexo, procedência nacional ou regional, origem étnica, condição de gestante, lactante ou nutriz, faixa etária, religião ou outro fator."
Passamos a analisar as características próprias dessa infração:
– A infração pode ser praticada — ou não — no exercício profissional da advocacia ou em razão dela, pois o dispositivo não fez essa exigência, como ocorre nas descrições do assédio moral e sexual.
– O dispositivo não exigiu a repetição, de tal forma que uma única ocorrência se mostra capaz de configurar a infração de discriminação.
– Todas os meios de conduta (comissiva ou omissiva) estão abrangidos, o que compreende a exteriorização por palavras, gestos, escritos, imagens, manifestadas pessoalmente ou não, em ambiente telefônico, radiofônico, televisivo, virtual ou qualquer outro meio. Condutas que diferenciam funcionalmente a pessoa como diferença de salário, de setor de lotação, de serviços a serem realizados, etc são incluídos na conduta.
– O dispositivo não limitou a proteção a um grupo específico de destinatários. Pode ser um pessoa ou um grupo de pessoas. Embora tenha citado como exemplos de discriminação aquelas ligadas à deficiência, raça, cor, sexo, procedência nacional ou regional, origem étnica, condição de gestante, lactante ou nutriz, faixa etária e religião, deixou o campo de destinatários aberto ao se referir a “ou outro fator”. Assim, inclui-se a conduta discriminatória em razão da orientação sexual, peso, classe social, etc. O que se deve levar em conta é a existência nítida de um tratamento diferenciado em razão de determinado fator que não o justifica. de tal forma que discriminar internamente uma pessoa em termos de remuneração, tipos de serviços a serem executados, setor de lotação e outros, em razão de cor, gênero, etnia, idade, etc., caracteriza a infração disciplinar aqui descrita.
– O dispositivo entende suficiente que a conduta importe em tratamento constrangedor ou humilhante, não exigindo efetivo dano psicológico ou físico. É entendimento sedimentado na doutrina e jurisprudência que, nos casos de discriminação, provada a existência do fato gerador, o dano é presumido.
Punição disciplinar
A punição para as infrações de assédio moral, assédio sexual e discriminação é a de suspensão, pelo período de 1 (um) a 12 (doze) meses:
"Art. 37. A suspensão é aplicável nos casos de:
I – infrações definidas nos incisos XVII a XXV e XXX do caput do art. 34 desta Lei;
§ 1º A suspensão acarreta ao infrator a interdição do exercício profissional, em todo o território nacional, pelo prazo de trinta dias a doze meses, de acordo com os critérios de individualização previstos neste capítulo."
A lei foi branda, se comparada ao tratamento dado por outras legislações. Para o empregador que pratica assédio moral e sexual, a consequência é a declaração de justa causa. Para os casos de servidores públicos, o enquadramento legal tem sido o de improbidade administrativa, causadora da penalidade de exoneração.
O Conselho Nacional de Justiça tem precedente aplicando a pena de aposentadoria compulsória a Magistrado por prática de assédio sexual. Tudo isso, claro, sem prejuízo de indenização civil. Por tal motivo, espera-se que os Tribunais de Ética e Disciplina não sejam brandos na dosagem da pena a ser aplicada.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!