Observatório Constitucional

A trilha sonora da Constituição de 1988 (para comemorar seus 35 anos)

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5 de agosto de 2023, 8h00

A história do(s) constitucionalismo(s) é a história das revoluções por limitações de poderes e conquistas de direitos. As atuais garantias constitucionais são frutos de reivindicações populares que marcaram a história política dos últimos 250 anos. Mas a partir do início do século 20, com o surgimento das tecnologias de radiodifusão, gravação e reprodução de áudio (especialmente o rádio e o gramofone), os movimentos revolucionários assumiram uma característica histórica peculiar: eles passaram a ser embalados por músicas cujas letras e melodias os inspiraram na luta pelos direitos.

Os momentos constitucionais do século 20 possuem a sua própria trilha sonora, que não apenas os distingue historicamente das antigas revoluções francesa e norte-americana como é capaz de traduzir culturalmente a sua identidade e o seu espírito político.

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Os principais gêneros musicais da primeira metade do século 20 originaram-se de estados de insatisfação social e movimentos insurgentes de caráter popular. O blues e, posteriormente, o jazz desenvolveram-se a partir das tradições musicais africanas no seio da comunidade afrodescendente norte-americana (especialmente do sul dos Estados Unidos) como expressão cultural de contestação e de resistência às políticas de segregação racial.

O grande sucesso e a difusão mundiais desses ritmos estão atrelados justamente ao caráter revolucionário da criação artística negra contra as desigualdades sociais históricas, como bem explicou Eric J. Hobsbawm na sua conhecida obra História Social do Jazz [1]. No Brasil, antes de se converter em símbolo da cultura nacional, o samba teve sua origem nas manifestações rítmicas espontâneas das comunidades afrodescendentes das regiões urbanas do Rio de Janeiro e assim converteu-se em expressão político-cultural de resistência [2].

Mas foi na segunda metade do século 20 que surgiu o mais impactante e revolucionário gênero musical da época: o rock and roll. Originado nos anos 50 a partir do desenvolvimento e mesclagem do blues, do jazz e do rhythm and blues, o rock nasceu como genuína música de protesto e, assim, foi rapidamente adotado pelos principais movimentos de contestação política e reivindicação de direitos das décadas de 1960-70.

O rock se conectou de modo tão umbilical com os movimentos populares daqueles anos, que hoje é difícil realizar qualquer retrospectiva histórica dos mais emblemáticos protestos do período — como, por exemplo, as passeatas estudantis de maio de 1968 na França, ou as grandiosas reuniões de jovens norte-americanos contrários à Guerra do Vietnã — sem relembrar as músicas dos Beatles ou as letras de Bob Dylan.

No Brasil, apesar de a ditadura instaurada pelo golpe militar de 1964 ter obtido relativo sucesso inicial na censura das músicas de protesto, do ponto de vista histórico, é inegável que o período acabou ficando marcado pelas canções que mais o contestaram politicamente, como as inesquecíveis obras de Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, o movimento Tropicália e o rock dos Mutantes, entre vários outros.

Expressões musicais de resistência política como "esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer" (Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, 1968), e "caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento" (Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, 1977), fazem parte do imaginário popular a respeito de todo um período da história nacional.

Os anos 1960 e 70 unificaram os protestos populares e as músicas que os embalaram em um só fenômeno cultural e político, de modo que cada movimento social passou a ter na sua identidade a própria trilha sonora. Ao final dos 60, quando Paul McCartney cantou "Black Bird fly…", não foram poucos os que traduziram o refrão dessa famosa música dos Beatles como uma ode à mulher negra e um manifesto pela sua liberdade e igualdade, o que acabou influenciando os movimentos antirracistas da época. E nos anos 1970, ninguém melhor do que Bob Dylan para colocar na letra de Hurricane um poderoso manifesto político pela observância das garantias do devido processo legal.

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Na mesma época, processos de independência e de transição de regimes em diversos países receberam apoio político além de suas fronteiras por meio dos festivais e grandes concertos internacionais de música, os quais funcionaram como trincheiras de reivindicação e de resistência. Hoje, não é possível abordar do ponto de vista histórico a independência de alguns países africanos sem citar, por exemplo, a influência e o incentivo recebidos das letras e do reggae de Bob Marley, com especial destaque para a música Zimbabwe, de 1979.

Foi assim que as primeiras décadas da segunda metade do século 20 formaram um caldo cultural e político que tornou determinante a conexão dos momentos constitucionais da época com as músicas que os marcaram. Praticamente todas as constituintes desse período histórico foram influenciadas por canções de protesto. E, nesse mesmo contexto, não poderia ser diferente em relação à Constituição do Brasil, igualmente fruto político dessa atmosfera cultural dos anos 1960 e 70.

A Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988, mas o momento constituinte brasileiro remonta ao decênio que a antecede. Desde finais dos anos 1970, especialmente a partir da Lei de Anistia de 1979, o país ingressou em um gradual processo político de abertura do regime, dando início à transição para a democracia que culminaria no pacto constitucional de 88. A memória do período reaviva as músicas de protesto que mais tocaram nas rádios e que de fato influenciaram o ambiente político daquele importante momento da história brasileira.

Havia um grande anseio popular por democracia, que também se traduzia por meio das músicas, nacionais e internacionais, que todos cantavam na época. Entre tantas outras, é importante recordar a música Ebony and Ivory, interpretada por Paul McCartney e Stevie Wonder, que dominou as paradas de sucesso das rádios em todo o mundo, especialmente no Brasil, no ano de 1982.

A mensagem política do refrão era clara e impactante: "O ébano e o marfim, vivem juntos em perfeita harmonia, lado a lado em meu piano, oh, Deus, por que nós não podemos?" [3]. Na interpretação musical, McCartney, um branco, e Wonder, um negro, tocaram juntos (lado a lado) as teclas brancas (de marfim) e as negras (de ébano) do piano e assim conseguiram construir uma das melhores metáforas da época para reivindicar mais igualdade e harmonia em sociedades marcadas historicamente pela escravidão, como é o caso do Brasil.

A música teve forte repercussão em países de grande população afrodescendente, caracterizados pela desigualdade, e chegou a ser censurada na África do Sul, ainda sob o regime de apartheid. A letra impressionou especialmente o compositor brasileiro Milton Nascimento, que nos anos seguintes se converteria numa das principais vozes musicais do momento constituinte dos anos 80.

O impulso decisivo para a redemocratização do país ocorreu a partir de 1983, com a campanha das Diretas Já, o maior movimento popular da história brasileira, cuja pauta reivindicava o direito fundamental ao voto direto para presidente da República. Foi a primeira vez na história do país que o povo efetivamente participou do momento constituinte, nas ruas e com muita alegria. A participação popular acelerou a transição, que havia sido iniciada com a pretensão de ser "lenta, gradual e segura".

No recente livro O Girassol que nos Tinge [4], o jornalista Oscar Pilagallo bem descreve as características culturais das manifestações da época: "As Diretas Já foram a campanha política mais popular da história do Brasil. Mas não só. Foram também um intenso movimento cultural que, mais do que gravitar em torno da agenda suprapartidária, galvanizou a repercussão da mensagem, emprestou criatividade à narrativa e transformou palanques sisudos em palcos animados, amalgamando para sempre o melhor momento da memória coletiva da sociedade civil" [5].

De fato, as manifestações populares que impulsionaram a transição democrática no início dos anos 1980 diferenciavam-se não apenas por seu tamanho, nunca antes visto no país, mas pelo inédito viés cultural, no qual a musicalidade dos protestos tornou-se a principal característica do movimento. Como Pilagallo bem observou: "A criatividade vazava por slogans matadores, músicas empolgantes, performances modernistas e manifestos poéticos, o que emprestava uma dimensão estética à questão política" [6].

Entre o início da campanha das Diretas Já, em 1983, e a promulgação da Constituição, em 1988, o país cantou junto as músicas que animaram o processo de redemocratização e ficaram marcadas na história brasileira como a trilha sonora do momento constitucional dos anos 80.

O dia 27 de novembro de 1983 foi um dia triste para o país, em razão da morte de Teotônio Vilela, um dos políticos mais obstinados na defesa das eleições diretas. Ao mesmo tempo, o acontecimento acabaria dando mais fôlego ao movimento, quando em comício realizado na Praça Charles Miller, em São Paulo, Fernando Henrique Cardoso pediu um minuto de silêncio e pronunciou: "Todos haverão de lembrar que a campanha pelas eleições diretas ganhou as praças no dia em que Teotônio, que tanto lutou por elas, morreu" [7].

A partir daquele domingo, a canção Menestrel das Alagoas, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant em homenagem a Teotônio Vilela, se tornaria um dos hinos das Diretas, na interpretação de Fafá de Belém, que por sua vez seria reconhecida como a musa do movimento.

Três outras grandes canções compostas por Milton Nascimento no início da década de 1980 entrariam para a trilha sonora daquele momento histórico. Em Coração Civil, Milton cantava "os meninos e o povo no poder, eu quero ver, São José da Costa Rica, coração civil, me inspire no meu sonho de amor Brasil", uma reivindicação de efetiva cidadania para os brasileiros, com nítida inspiração na Convenção Americana dos Direitos Humanos, denominada Pacto de San José da Costa Rica, que entrara em vigor internacionalmente no ano de 1978. A famosa canção Nos Bailes da Vida igualmente marcou aquele período, com o seu verso eloquente "todo artista tem de ir aonde o povo está", uma conclamação à participação dos artistas nos movimentos populares.

Mas a música de Milton (o Bituca) que provavelmente mais foi cantada naquele momento foi Coração de Estudante, cujas letra e melodia evocavam o espírito de esperança dos brasileiros. No dia 21 de abril de 1985, a morte de Tancredo Neves foi anunciada em cobertura especial do programa Fantástico, da Rede Globo, que escolheu a música para a homenagem a uma das figuras públicas mais importantes do processo de redemocratização do país. Apesar da comoção nacional, a canção convidava a renovar as esperanças por dias melhores, que certamente viriam, como Tancredo havia prometido: "Mas renova-se a esperança, nova aurora a cada dia, e há que se cuidar do broto, para que a vida nos dê flor e fruto".

As músicas de protesto que Chico Buarque havia composto como resistência à ditadura também foram adotadas pelas manifestações. Entre outras, teve especial impacto a famosa Apesar de Você, cuja letra encaixava-se perfeitamente nos anseios sociais daquele momento: "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia, você vai ter que ver a manhã renascer, e esbanjar poesia". Chico ainda teria protagonismo nas rádios com Vai Passar, expressão que foi usada nos comícios das Diretas na torcida pela aprovação no Congresso Nacional da emenda Dante de Oliveira [8].

Como não poderia deixar de ser, o rock brasileiro teve papel importante como música de protesto no período constituinte. Em 1987, a Legião Urbana extravasava a crítica política com a música Que País é Este e pregava para a juventude brasileira "temos nosso próprio tempo,…temos todo tempo do mundo", com a letra de Tempo Perdido. A campanha das Diretas utilizou em diversas manifestações o polêmico verso "a gente não sabemos escolher presidente", que inaugura a música Inútil da banda Ultraje a Rigor (1983). E em ritmo de rock, Caetano Veloso gravou Podres Poderes para fazer duras críticas à política nacional, no mesmo ano da rejeição pelo Congresso da emenda Dante de Oliveira (1984).

Além das músicas de protesto, o período também ficou marcado pelas canções que pregaram a esperança e imaginaram um futuro promissor para o país. Em Novo Tempo (1980), Ivan Lins criou versos que emitiam uma importante mensagem para aquele período de transição de regime: “Pra que nossa esperança, seja mais que a vingança, seja sempre um caminho, que se deixa de herança". Tiveram também destaque: Sal da Terra, de Beto Guedes (1981); Brincar de Viver, de Maria Bethânia (1983); e Sementes do Amanhã, na interpretação de Erasmo Carlos (1984).

Músicas que resgataram o sentimento de brasilidade tiveram importante papel de encorajamento de toda a sociedade para os desafios políticos daquele momento, com especial relevância para: De volta ao Começo” (1980), O que É, o que É? (1982) e Alô, Alô Brasil (1983), todas de Gonzaguinha; Canta Brasil (1981), de Gal Costa, a qual também gravou uma inesquecível interpretação de Aquarela do Brasil (1980); assim como Verde e Amarelo, de Roberto Carlos, que tocou incessantemente nas rádios brasileiras a partir do ano de 1985.

O conjunto dessas músicas pode trazer à memória a atmosfera cultural do momento constituinte brasileiro. Toda Constituição possui um fundamento cultural que a identifica e a conecta com a história do seu povo. A sociedade brasileira é caracterizada pela riqueza das expressões artísticas, pela criatividade popular, pela espontaneidade rítmica e pela diversidade de tradições musicais. A constituinte da década de 1980 fez aflorar toda a potência cultural do país e foi capaz de amalgamar toda essa pluralidade em uma verdadeira Constituição Cultural.

A cada 5 de outubro, renova-se a oportunidade de trazer à tona essa essência cultural da Constituição. Na festa dos 35 anos da Constituição de 1988, comemoremos com as músicas que embalaram o momento constituinte dos anos 1980 no Brasil!

Para escutar a trilha sonora da Constituição de 1988, clique aqui

 

 


[1] HOBSBAWM, Eric. J. História Social do Jazz. 22ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2022.

[2] NETO, Lira. Uma história do samba. São Paulo: Companhia das Letras; 2017.

[3] "Ebony and ivory, Live together in perfect harmony, Side by side on my piano keyboard, Oh, Lord, why don't we?". Ebony and Ivory (McCartney e Wonder), Tug of War, de Paul McCartney, 1982.

[4] PILAGALLO, Oscar. O Girassol que nos tinge: uma história das Diretas Já, o maior movimento popular do Brasil. São Paulo: Ed. Fósforo; 2023.

[5] PILAGALLO, Oscar. Op. Cit. p. 200.

[6] PILAGALLO, Oscar. Op. Cit. p. 13.

[7] PILAGALLO, Oscar. Op. Cit. p. 169.

[8] PILAGALLO, Oscar. Op. Cit. p. 80.

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