Diário de Classe

299 anos de um revolucionário: Kant e a teoria do direito

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  • Luã Jung

    é graduado em Direito mestre e doutor em Filosofia professor do PPG Direito Unesa-RJ professor convidado da ABDConst membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

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22 de abril de 2023, 11h14

Os leitores desta coluna já devem ter lido aqui, em pelo menos alguns dos textos publicados pelos colegas do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos), a palavra "paradigma". Um paradigma consiste em uma constelação de crenças comungadas por um grupo, no sentido em que afirma Thomas Kuhn em sua obra Estrutura das revoluções científicas.

Talvez a própria definição de Kuhn não reflita a dimensão que o conceito adquiriu para a teoria contemporânea do conhecimento — a epistemologia.

Falar em paradigma é falar em um horizonte de sentido ou em uma visão de mundo (Weltansicht), como diria Humboldt e outros alemães do século 19.

Ernildo Stein aborda a mudança de paradigma provocada pela filosofia da linguagem e pelo pensamento hermenêutico do século 20, ao que Lenio Streck, perplexo, questiona como esta mudança de paradigma ocorrida na filosofia parece enfrentar duras barreiras por parte da prática e da dogmática jurídica brasileira. Um paradigma é, pois, em sentido amplo, uma estrutura de sentidos que determina a autocompreensão do ser humano, a forma como ele concebe o mundo, as suas práticas e relações.

A coluna de hoje é uma pequena homenagem aos 299 anos de nascimento de um revolucionário: Immanuel Kant (1724–1804).

O abalo sísmico provocado pela obra de Kant é o principal marco filosófico daquilo que podemos chamar de iluminismo ou esclarecimento (Aufklärung). Em sua Crítica da Razão Pura, Kant faz a analogia entre sua obra e a revolução copernicana.

Copérnico fora o responsável pela inversão do antropocentrismo para o heliocentrismo. Kant, por sua vez, defendeu que a filosofia do seu tempo, a qual era dividida entre o empirismo e o racionalismo, deveria inverter o foco teórico: antes de falarmos do mundo, devemos analisar as condições de possibilidade pelas quais o apreendemos.

A razão deve se debruçar sobre si mesma e investigar os conceitos e categorias que possibilitam, ao mesmo tempo em que limitam, o nosso acesso à realidade. Só assim teremos certeza sobre aquilo que podemos de fato conhecer e aquilo que permanece como mistério.

O resultado dessa inversão kantiana é a sua distinção entre o mundo dos fenômenos, que nos é acessível, e o mundo em si, sem as intermediações impostas a priori (ou seja, antes da experiência) pela própria razão. Rompe-se, assim, aquilo que no jargão filosófico se costuma chamar de "realismo ingênuo" ou "mito do dado".

Embora a teoria de Kant como um todo forme um sistema, dividido entre teoria do conhecimento, filosofia prática e estética, é a segunda que deve ganhar neste breve espaço maior destaque. A filosofia prática de Kant influencia massivamente teorias morais e políticas contemporâneas, assim como instituições políticas e jurídicas.

Vittorio Hösle comenta, nesse sentido, que a Lei Fundamental Alemã foi escrita com o espírito kantiano[2]. Podemos constatar, no entanto, que todas as cartas político-jurídicas que trazem consigo o conceito de dignidade humana, e, assim, todas as democracias liberais contemporâneas, devem algo a Kant.

Ouvimos desde o início da graduação em direito frases como "todos os objetos têm valor, o ser humano tem dignidade", ou "devemos tratar o ser humano como fim em si mesmo e não como meio" e, embora o conceito de dignidade humana seja enfraquecido diante de seu uso impróprio e exagerado na prática jurídica, é a ele que ainda recorremos quando denunciamos violações graves a direitos no âmbito doméstico e internacional.

Para Kant, dignidade está intimamente associada à autonomia — dar a si mesmo a própria lei, o oposto de heteronomia. A nossa dignidade, ou valor moral, deriva da possibilidade de não sermos entes cuja vontade é determinada por motivos externos e independentes, sejam leis da natureza (instintos biológicos), como pretendia o determinismo empirista, ou leis metafísicas (a vontade de Deus), como defendia a filosofia escolástica. No entanto, dar a si mesmo a própria lei não significa para Kant um subjetivismo, como se cada indivíduo pudesse determinar para si o que é certo ou errado.

De acordo com a proposta kantiana, na medida em que seguimos o procedimento da razão em cada questão moral, atingimos a universalidade. Afinal, quando pensamos moralmente, pensamos enquanto membros da comunidade humana, e não como pessoas particulares, dotadas de desejos, histórias e formas específicas de vida.

É por essa razão, entre outras, aliás, que a formulação de princípios morais não pode levar em conta a ideia de felicidade ou de vida boa: se nossas normas sobre como tratar os outros dependessem de noções sobre a felicidade, elas provavelmente teriam um conteúdo distinto para cada indivíduo ou comunidade de indivíduos ao longo da história, em cada cultura e, podemos dizer, mesmo em cada país, estado, cidade, bairro, residência (…). Em síntese, se as normas de conduta humana se baseassem em um conceito como o de felicidade, a universalidade estaria comprometida.

Uma vez que existem tantas compreensões sobre a finalidade da vida quanto indivíduos, a moralidade deve se dar por princípio, a priori, diria Kant, ao invés de a posteriori. Eis aqui a famosa distinção entre deontologia e teleologia. A questão é exemplificada por uma passagem da série House of Cards, referida pelo professor Streck em sua sustentação oral no julgamento sobre a presunção de inocência pelo STF[3].

No episódio, o presidente dos Estados Unidos precisa fazer um transplante de emergência, embora estivesse atrás na lista de transplantes. Argumenta-se que ele deveria ser passado na frente, afinal, tratava-se do presidente dos EUA, ao que o encarregado responde: "Uma vida é igual a uma vida. It's the law".

Poder-se-ia argumentar que a morte de um presidente americano traria consequências gravíssimas à economia e política nacionais e globais, afetando assim a vida de milhões de pessoas. Mas, nesse caso, o médico foi categórico, para usar o conceito kantiano nesse contexto.

O princípio de que uma vida é igual a uma vida é universal, não se relativiza a depender de quem ou de quais consequências a sua aplicação plena ou parcial trará. Naquele momento, poderia ser o presidente, em outro, o papa, em outro, um empresário importante ou um astro popular… quem afinal estabelece o limite desta relativização?

As três características da filosofia prática de Kant enfatizadas até aqui, autonomia, universalidade e deontologia, representam o cerne de teorias políticas e jurídicas relevantes na contemporaneidade. O construtivismo normativo de John Rawls, por exemplo, realizou na década de 1970 o renascimento da filosofia política e, particularmente, do contratualismo, a partir da pretensão kantiana de universalidade.

A imagem do véu da ignorância apresentada em Uma teoria da justiça representa um meio pelo qual pessoas concretas suspenderiam os seus papeis sociais determinados, bem como os interesses contingentes daí decorrentes, e poderiam, assim, decidir em favor do princípio da distribuição igual de liberdade.

Ao almejar a universalidade dos princípios de justiça escolhidos, a desindividualização dos participantes do processo constituinte hipotético de Rawls restringe a influência de interesses concretos na formulação de direitos básicos. Observamos, em outras palavras, a precedência da moralidade em relação a ideais particulares de felicidade ou, para usar os termos de Rawls e do debate contemporâneo, do justo sobre o bem[4].

A partir da obra de Rawls, matriz do liberalismo político do século 20, estabeleceu-se no debate político a distinção entre o nível moral, universal, e ético, particular. De acordo com os liberais, as normas que determinam a ação do Estado em relação aos indivíduos não devem se basear em concepções contingentes sobre o bem viver, a felicidade.

Os princípios de justiça devem ser neutros em relação a esses problemas, possibilitando, assim, que diferentes concepções sobre a finalidade da vida (concepções teleológicas, portanto) possam coexistir, garantindo-se o primado da tolerância liberal.

Em que pesem diferenças teóricas que não são irrelevantes[5], Ronald Dworkin, nesse aspecto, acompanha a ideia de primazia da justiça e da moralidade em detrimento da ética. Para Dworkin, ao fazer menção à importância de Kant, um governo trata os seus cidadãos como iguais na medida em que dirige suas ações por "uma questão de princípio", isto é, permanecendo neutro sobre a questão do bem viver[6]: "as decisões políticas devem ser, tanto quanto possível, independentes de qualquer concepção particular do que é viver bem, ou do que dá valor à vida. Como os cidadãos de uma sociedade divergem em suas concepções, o governo não os trata como iguais se prefere uma concepção à outra, seja porque as autoridades acreditam que uma é intrinsecamente superior, seja porque uma é sustentada pelo grupo mais numeroso ou mais poderoso".

A abstenção ética do Estado defendida por Dworkin, na esteira de Rawls e, naturalmente, de Kant, se intensifica quando o velho ouriço desenvolve a sua teoria do direito[7]. Aqui entra em jogo a sua distinção entre princípios e políticas: o Poder Judiciário não deve decidir a partir de objetivos a serem alcançados ("uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade"), mas por um padrão normativo que deve ser observado "não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade"[8].

Mais à frente na mesma obra, Dworkin enfatiza que "se uma pessoa tem um direito a alguma coisa, então é errado que o governo a prive desse direito, mesmo que seja do interesse geral proceder assim"[9] e qualifica o seu conceito de direito como "antiutilitarista".

Constata-se, novamente, um traço kantiano: como salientei acima, o filósofo alemão é o principal responsável pela crítica moderna ao utilitarismo e a concepções morais, políticas e jurídicas teleológicas.

Tal como em Kant, os princípios que legitimam o direito em Dworkin são deontológicos — sua aplicação deve ocorrer independentemente de finalidades e interesses contingentes.

Essa concepção sobre o(s) direito(s) é contrastante com a leitura de Robert Alexy sobre distinção entre princípios e regras delineada por Dworkin em Levando os direitos a sérioAlexy fala de princípios jurídicos como mandados de otimização a serem concretizados em maior ou menor grau diante do possível conflito de valores em um caso concreto.

No sentido denunciado por Streck em diversos textos, principalmente em Verdade e Consenso, a apropriação (equivocada) da teoria de Alexy por parte da doutrina nacional implica a relativização do conteúdo normativo dos princípios e favorece a disseminação da ideia de que os juízes possuem poder discricionário no exercício da ponderação — método desenvolvido amiúde por Alexy e que, no Brasil, foi transformado em um conceito coringa que serve para justificar qualquer escolha por parte do órgão julgador.

Este problema é abordado por Jürgen Habermas, outro representante de Kant no debate contemporâneo, em Direito e Democracia. Para Habermas, "princípios ou normas mais elevadas, em cuja luz outras normas podem ser justificadas, possuem um sentido deontológico, ao passo que os valores têm um sentido teleológico"[10] e salienta que "quando Dworkin entende os direitos fundamentais como princípios deontológicos do direito e Alexy os considera como bens otimizáveis do direito, não estão se referindo a mesma coisa". "Enquanto normas, eles regulam uma matéria no interesse simétrico de todos; enquanto valores, eles formam, na configuração com outros valores, uma ordem simbólica na qual se expressam a identidade e a forma de vida de uma comunidade jurídica particular[11]."

Constatamos, assim, a centralidade que apenas algumas ideias presentes na teoria moral de Kant possuem para o debate político e jurídico contemporâneo. Na minha coluna passada, apresentei esboço de uma crítica ao liberalismo político e sua busca por uma neutralidade ética, apontando a partir de Hegel e de Charles Taylor uma possível insuficiência de princípios universais e deontológicos que não possuem vínculos histórico-institucionais com uma comunidade política determinada.

Todavia, ao saber que o presente texto seria publicado justamente na data de aniversário de Kant,  decidi fazer jus à importância do filósofo de Königsberg e sua revolução paradigmática. Como foi apontado, a sua filosofia é determinante para o liberalismo político do século 20.

No entanto, essa é apenas uma pequena contribuição de Kant para a história do pensamento. Sem Kant, não teríamos Hegel e o idealismo alemão de Jena; o romantismo de Hamann, Herder, Goethe, Schlegel, Schiller e o consequente prenúncio do giro linguístico do século 20 sintetizado por Humboldt. Schleiermacher e Dilthey, ícones da hermenêutica moderna, certamente não teriam desenvolvido suas teses como o fizeram sem o diálogo e influência da obra de Kant. Em favor de Kant ou contra Kant, é fato que a filosofia moderna pensa a partir de Kant.

O que posso conhecer? O que devo fazer? O que posso esperar? O que é o humano? As quatro perguntas que motivam o sistema kantiano permanecem sem conclusão e, o que é muito pior, estão a cada dia mais distantes no horizonte do século 21. Sapere aude!, "tem coragem de fazer uso do teu próprio entendimento", afirmaria Kant, a uma época em que impera o obscurantismo da técnica. As perguntas de Kant se fazem prementes a nós, filhos da modernidade e de suas revoluções políticas e paradigmáticas.


[2] HÖSLE, Vittorio. A Short History of German Philosophy. Princeton University Press, 2017.

[3] Àqueles que ainda não assistiram, a sustentação: https://www.youtube.com/watch?v=dJ4NdaNIsHw

[4] RAWLS, John. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

[5] Ver, nesse sentido, o texto A justiça e os direitos, presente em DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. A crítica de Dworkin ao contratualismo e o debate com Rawls transpassam toda a sua obra.

[6] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 285. Na passagem, Dworkin menciona a importância de Kant para este debate político.

[7] Essa concepção restritiva quanto à ética se modificou ao longo da obra de Dworkin. Ver, nesse sentido: JUNG, Luã. A Filosofia Política de Ronald Dworkin: Objetividade Moral, Liberalismo Político e Crítica Comunitarista ao Atomismo Liberal, disponível aqui. 

[8] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 36.

[9] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 414.

[10] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, v. 1, p. 316.

[11] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, v. 1, p. 317-318.

Autores

  • é advogado, doutor e mestre em filosofia pela PUC-RS (bolsa Capes), professor do programa de pós-graduação em Direito da Unesa e membro do Dasein — Núcleo de estudos hermenêuticos.

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