Interesse Público

Gastos com segurança pública não podem ser custeados com recursos da educação

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20 de abril de 2023, 8h00

Os fundamentos e objetivos da República, juntamente com os direitos fundamentais, constituem um núcleo que pode ser comparado ao coração da Carta Constitucional: todas as ações e abstenções do poder público devem ser necessariamente irrigados por seu conteúdo como inspiração de rumos e como condicionador de meios. O fundamento residente na dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), ao lado do objetivo de promover o bem de todos (artigo IV) se ligam diretamente aos direitos fundamentais de primeira geração, dentre os quais se inclui o direito à vida, sem o qual todos os demais perdem sentido.

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O direito à educação pode ser analisado sob prisma semelhante: trata-se de direito individual diretamente ligado ao alcance dos objetivos de garantir o desenvolvimento nacional e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de ser instrumental à realização dos direitos fundamentais, notadamente as liberdades fundamentais e a dignidade da pessoa humana.

O compromisso da Constituição Federal com a qualidade da educação é uma conquista a ser constantemente relembrada e festejada. O direito fundamental à educação, dever do Estado e da família, deve ser efetivado com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (artigo 6º c/c artigo 205).

Dentre as linhas que desenham os contornos do direito à educação se destacam as regras que garantem a existência de financiamento, com destaque para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos profissionais da educação (Fundeb). Além da estruturação de um sistema de financiamento, existe a determinação constitucional de um mínimo de recursos a serem aplicados na manutenção e no desenvolvimento do ensino: a União aplicará, anualmente, nunca menos de 18, e os estados, o Distrito Federal e os municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências (artigo 212).

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O tratamento justificadamente privilegiado é também confirmado por regras que tratam da valorização e da remuneração condigna dos profissionais da educação, visando prestigiar não somente os professores, membros essenciais da relação de ensino, como também a gestão pública.

Provavelmente, nada do que foi escrito até o momento constitui novidade para o leitor e para a leitora. Tentando traduzir em palavras simples o projeto constitucional, a educação de qualidade é direito de todos e sua implementação, de acordo com as diretrizes do artigo 208, está garantida pela existência de recursos vinculados às respectivas políticas públicas (na forma dos artigos 212 e 212-A). Educação de qualidade, de acordo com a Constituição, é essencial para que a República possa garantir os objetivos que justificaram sua construção.

A conexão recente do direito à vida com o direito à educação de qualidade ganha contornos sombrios em sua passagem do mundo das normas para o mundo dos fatos. A existência de uma série atos de violência praticados em escolas, muitos vitimando crianças na primeira infância, assusta ao ponto de abalar nossas crenças mais básicas sobre a natureza humana. O medo justificado da sociedade e dos familiares de alunos, em especial, tem levado o poder público a buscar medidas variadas para proteger o ambiente escolar, com destaque para a contratação de serviço de vigilância armada em escolas públicas.

Este artigo não pretende analisar causas e possíveis soluções do aumento da violência no ambiente escolar, restringindo-se às considerações jurídicas sobre ponto específico.

Inicialmente, convém reconhecer que, muito embora a educação pública enfrente vários e graves problemas, reduzir a solução deles à dicotomia escassez de recursos ou ineficiência na gestão é uma quimera — recursos são importantes, a cada dia mais, e uma boa gestão é também essencial.

O objeto central deste artigo é situado na análise do dever insculpido nos artigos 212 e 212-A da Constituição. A investigação de quais itens podem ser considerados como de "manutenção e desenvolvimento do ensino" é essencial para verificar se os entes públicos estão, afinal de contas, cumprindo ou não o dever de aplicar corretamente um valor mínimo de recursos na educação e os recursos do Fundeb. Trata-se de definição que não está à livre consideração dos agentes políticos e gestores, em razão da existência de expresso regramento legal.

Com efeito, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estabelece as despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis que serão consideradas como de manutenção e desenvolvimento do ensino:

"art. 70. […]

I – remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação;
II – aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino;
III – uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino;
IV – levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino;
V – realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino;
VI – concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas;
VII – amortização e custeio de operações de crédito destinadas a atender ao disposto nos incisos deste artigo;
VIII – aquisição de material didático-escolar e manutenção de programas de transporte escolar".

Segurança pública não é educação, ainda que seja segurança dentro e no entorno das escolas. Em sendo a segurança pública um dever do Estado (artigo 144 da CF/1988), executado mediante atividades realizadas pelas forças policiais, não há cabimento em considerar tais serviços como "atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino". As atividades de policiamento ostensivo de espaços coletivos e de inteligência policial para prevenção e repressão a delitos são atividades finalísticas autonomamente incumbidas ao Estado, como uma decorrência inerente do monopólio do uso da força por parte do Estado, que deve ser prestado a toda sociedade.

Tamanha é a relevância da segurança pública como atividade-fim do Estado brasileiro que a Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, instituiu o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), com recursos a ele afetados (artigo 3º). O mais importante, porém, é que o FNSP também há de cumprir regras específicas e rigorosas de destinação dos seus recursos em atividades formalmente validadas pelo artigo 5º da Lei 13.756/2018 como tipicamente de "segurança pública":

"Art. 5º — Os recursos do FNSP serão destinados a:

I – construção, reforma, ampliação e modernização de unidades policiais, periciais, de corpos de bombeiros militares e de guardas municipais;

II – aquisição de materiais, de equipamentos e de veículos imprescindíveis ao funcionamento da segurança pública;

III – tecnologia e sistemas de informações e de estatísticas de segurança pública;

IV – inteligência, investigação, perícia e policiamento;

V – programas e projetos de prevenção ao delito e à violência, incluídos os programas de polícia comunitária e de perícia móvel;

VI – capacitação de profissionais da segurança pública e de perícia técnico-científica;

VII – integração de sistemas, base de dados, pesquisa, monitoramento e avaliação de programas de segurança pública;

VIII – atividades preventivas destinadas à redução dos índices de criminalidade;

IX – serviço de recebimento de denúncias, com garantia de sigilo para o usuário;

X – premiação em dinheiro por informações que auxiliem na elucidação de crimes, a ser regulamentada em ato do Poder Executivo federal; e

XI – ações de custeio relacionadas com a cooperação federativa de que trata a Lei nº 11.473, de 10 de maio de 2007 .

XII – ações de enfrentamento da violência contra a mulher.

§ 1º. Entre 10% (dez por cento) e 15% (quinze por cento) dos recursos do FNSP devem ser destinados a aplicação em programas:

I – habitacionais em benefício dos profissionais da segurança pública; e

II – de melhoria da qualidade de vida dos profissionais da segurança pública.

§ 2º. É vedado o contingenciamento de recursos do FNSP.

§ 3º. É vedada a utilização de recursos do FNSP em:

I – despesas e encargos sociais de qualquer natureza, relacionados com pessoal civil ou militar, ativo, inativo ou pensionista; e

II – unidades de órgãos e de entidades destinadas exclusivamente à realização de atividades administrativas.

§ 4º. No mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos empenhados do FNSP devem ser destinados a ações de enfrentamento da violência contra a mulher."

Ora, assim como não é possível pretender migrar recursos do FNSP para atender a gastos específicos com manutenção e desenvolvimento do ensino, tampouco é lícito embutir, a qualquer título, despesas da segurança pública no cômputo do piso educacional ou na alocação dos recursos do Fundeb. Guardas municipais ou policiais militares que fazem rondas escolares devem ser remunerados com recursos da política de segurança pública, tanto quanto eventuais agentes privados de segurança escolar.

O enquadramento dos gastos merece o mesmo enfoque quando se trata do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) — Decreto nº 10.004/2019. Os militares que atuam nas escolas cívico-militares não são considerados, para todos os fins, como profissionais da educação básica, nos termos do artigo 24 do Decreto. Desta forma, os gastos com militares inativos que atuam como monitores do modelo de escolas cívico-militares não podem ser computados como despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino, sob pena de glosa do cômputo ilícito diante do desvio dos recursos vinculados à estritamente educação.

A LDB é suficientemente clara em vedar, em seu artigo 71, o cômputo como "manutenção e desenvolvimento do ensino" de quaisquer gastos de natureza suplementar que tenham correlação com outras políticas públicas, ainda que esses, direta ou indiretamente, possam vir a beneficiar a rede escolar. Exemplificam tal vedação os incisos II, IV e V do citado dispositivo da LDB: gastos assistenciais, sanitários ou com obras de infraestrutura não podem ser financiados com os recursos educacionais, mesmo quando aproveitam à comunidade escolar. A LDB é tão rigorosa quanto ao destino dos recursos vinculados ao setor que também proibiu o cômputo da remuneração de profissionais da educação, quando esses estiverem "em desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desenvolvimento do ensino" (artigo 71, VI).

Diante da existência de estrutura estatal vocacionada, com dotações e próprias e até um fundo específico para a segurança pública, soa irônica, quando não paradoxal a pretensão de empreender volumosos gastos, manejando os escassos recursos vinculados à educação, para promover a segurança das escolas, quando se verifica um elevado estágio de inadimplemento das metas e estratégias do Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014). É evidente o desvio de finalidade, o que é agravado pela circunstância de inúmeros entes políticos terem deixado de aplicar os recursos vinculados à educação durante a pandemia, enquanto os educandos das suas redes públicas sofreram retrocessos consideráveis na aprendizagem, dada a baixa qualidade do ensino remoto que receberam.

É relevante anotar que a Emenda Constitucional nº 119/22 impediu a responsabilização de administrativa, cível e criminal de agentes públicos pelo descumprimento da aplicação do mínimo constitucional previsto no artigo 212 nos exercícios de 2020 e 2021, em razão do estado de calamidade pública causado pela Covid-19 (artigo 119 ADCT). A mesma Emenda de anistia excepcional previu uma medida compensatória — os entes deverão "complementar na aplicação da manutenção e desenvolvimento do ensino, até o exercício financeiro de 2023, a diferença a menor entre o valor aplicado, conforme informação registrada no sistema integrado de planejamento e orçamento, e o valor mínimo exigível constitucionalmente para os exercícios de 2020 e 2021" (artigo 119, parágrafo único, ADCT).

As muitas perdas sofridas pela educação no período de pandemia tornam ainda mais urgente a necessidade de proteger os valores mínimos destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino. Para além de qualquer juízo de valor específico sobre a conveniência ou não, em cada caso específico, da contratação de vigilância armada para proteção do ambiente escolar, os recursos eventualmente gastos não podem ser computados como se fossem destinados ao cumprimento do artigo 212 da Constituição, tampouco podem onerar os recursos relativos ao Fundeb (artigo 212-A, também da CF/1988).

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