Opinião

O Fundo de Garantia pertence ao trabalhador e integra seu patrimônio 

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20 de abril de 2023, 6h09

O STF (Supremo Tribunal Federal) pautou a ADI nº 5.090/DF, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, para julgamento a partir de hoje (20/4). Trata-se de ação extremamente importante para a classe trabalhadora. Isso porque pretende-se definir se o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) será reajustado por um índice de correção que mantenha íntegro o seu valor real ou se continuará sofrendo perdas e defasagens que reduzem o patrimônio.

O principal fundamento da ação direta é a inconstitucionalidade da utilização da Taxa Referencial (TR) como índice de correção monetária do FGTS, eis que totalmente desvencilhado do real fenômeno inflacionário. Assim, pretende-se declarar a violação aos direitos fundamentais da classe trabalhadora, na medida em que os valores do Fundo são corroídos pela inflação ao longo do tempo, não servindo para o próprio propósito para o qual foi pensado: proteger o trabalhador.

A demanda constitucional não tem o objetivo de substituir a TR por outro índice (INPC, IPCA ou qualquer outro), mas apenas o reconhecimento de que o crédito do trabalhador na conta FGTS deve ser atualizado por índice constitucionalmente idôneo, apurado posteriormente à desvalorização verificada. Por índice, portanto, que proteja o FGTS do efeito corrosivo da inflação.

Em 6/9/2019, diante da relevância da questão constitucional e do grave perigo de dano imposto a diversos trabalhadores com ações ajuizadas no Poder Judiciário, o excelentíssimo senhor ministro Luís Roberto Barroso deferiu a medida cautelar para "suspender todos os feitos que versem sobre a matéria, até o julgamento de mérito pelo Supremo Tribunal Federal".

Por esse motivo, atualmente, milhares de ações de sindicatos, associações e trabalhadores aguardam a definição do STF para que possam ser concluídas e finalmente encerradas.

A grande imprensa, talvez pautada pelo governo, afirma que o valor que poderá decorrer do resultado do julgamento é de R$ 300 bilhões, mas a verdade é que tal afirmação possivelmente não corresponda à realidade, tratando-se de mais um caso de "terrorismo pré-julgamento", com o objetivo de influir no seu resultado, obviamente em favor do Estado e … contra o trabalhador.

Como já dito, a pretensão da ação direta consiste no afastamento da Taxa Referencial (TR) como índice de correção monetária dos saldos das contas vinculadas de FGTS e a sua substituição por outro índice que preserve o valor real da moeda e, por consequência, o patrimônio do trabalhador.

A corrosão dos valores depositados nas contas vinculadas do FGTS dos trabalhadores desse país teve início quando o Banco Central, de forma totalmente ilegal, expediu um regulamento que inexplicavelmente criou na fórmula de cálculo da TR um redutor do índice, de modo a desprezar todos os índices oficiais e reais de inflação, o que retirou da TR o poder de repor as perdas inflacionários. Ocorre que a reposição da perda inflacionária é essencial para qualquer índice de correção monetária. Em síntese, os valores corrigidos pela TR não são capazes de refletir o montante atualizado, após a desvalorização pela inflação.

Divulgação/Caixa
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Diante disso, verifica-se que a TR não pode ser considerada índice de correção monetária. Isso porque o índice não reflete a perda do poder aquisitivo da moeda, o que ocorreu pela extrapolação do poder regulamentar do Banco Central.

Ocorre que, por conta desta sutil e ilegal manobra, os índices mensais da TR se descolaram de forma desproporcional dos índices de inflação, em especial o INPC, corroendo o valor real dos depósitos do FGTS da classe trabalhadora, o que, na prática, significa que as quantias depositadas no FGTS estão, a cada dia que passa, se desvalorizando, o que representa a perda do poder de compra pelo trabalhador que as receberão conforme a lei

Em diversos meses, nos mais variados anos, a TR foi fixada em 0,00%, enquanto o INPC foi de 0,64% (abril de 2012), 0,55% (maio de 2012), 0.26% (junho de 2012), 0,43% (julho de 2012), 0,82% (março de 2014), 0,78% (abril de 2014), 0.60 % (maio de 2014), 1,11% (novembro de 2015), 1,51% (janeiro de 2016), 0,37% (outubro de 2017), 0,39% (novembro de 2017).

Assim, o STF deve decidir no próximo dia 20 de abril se os valores de FGTS da classe trabalhadora deste país podem ser corroídos e reduzidos pela aplicação de índice de atualização (TR), que não preserva o valor de compra, violando-se o direito de propriedade, tão caro ao mercado e à classe empresarial, mas que não pode ser negado aos trabalhadores e trabalhadoras (artigo 5º, inciso XXII da CF).

Nesse ponto, importante relembrar que a jurisprudência do Supremo se firmou no sentido de que a TR não possui natureza jurídica de índice de correção monetária, pelas razões que já enfatizamos anteriormente.

Em 20 de setembro de 2018, no julgamento do RE 870.947 (tema 810), o Plenário do STF afastou o uso da TR como índice de correção monetária nos casos de condenações impostas contra a Fazenda Pública, por entender que a legislação que disciplina a atualização monetária segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança, "revela-se inconstitucional ao impor restrição desproporcional ao direito de propriedade (CRFB, artigo 5º, XXII), uma vez que não se qualifica como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a promover os fins a que se destina".

Espera-se que tal entendimento seja mantido no julgamento da ADI nº 5.090/DF, por envolver semelhante questão jurídica, qual seja, a TR não deve ser utilizada para a correção monetária do FGTS, visto que não recompõe as perdas inflacionárias. Não se pode negar que remanesce a necessidade de que o FGTS seja corrigido monetariamente, porque a correção monetária apenas repõe a perda do capital causada pela inflação, mantendo intacto, ao menos em tese, o poder de compra e o patrimônio de trabalhadoras e trabalhadores.

É justamente a manutenção do poder de compra do dinheiro depositado no FGTS que tem sido violado e, por consequência lógica e inafastável, o direito de propriedade dos trabalhadores, o direito à segurança jurídica, o princípio da razoabilidade e o próprio direito ao Fundo ao longo dos anos, o que demanda uma reparação pelo Poder Judiciário.

Neste caso, é possível que o Supremo decida por modular os efeitos da sua decisão, preservando-se as situações fáticas e jurídicas já consolidadas em momento anterior. Isso porque, via de regra, as decisões em controle concentrado de constitucionalidade possuem eficácia erga omnes e efeitos ex tunc, em virtude da teoria da nulidade dos atos inconstitucionais. É que "a decisão de inconstitucionalidade, por ser declaratória, retroagindo ao momento de edição da lei, invalidaria os efeitos por ela produzidos".

Isso significa que a inconstitucionalidade na correção do Fundo seria reconhecida apenas como se ela tivesse ocorrido no momento da decisão do STF. Na prática, o direito do trabalhador corre o risco de sofrer uma limitação temporal muito prejudicial, qual seja, a correção devida só passaria a valer a partir da decisão do STF ou, o que seria ainda pior, de um momento futuro.

Não há dúvidas de que essa limitação temporal, se for feita pelo STF, representará uma derrota muito amarga à classe trabalhadoras. Afinal, mudança em matéria de direito fundamental não deve ser prospectiva.

Há, entretanto, a possibilidade do Supremo aplicar ao caso entendimento que vem sendo dados em casos semelhantes. Por exemplo, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 574.706/PR, o STF entendeu pela exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, de modo que o comando normativo somente valeria a partir de 15/3/2017, data em que o STF julgou o mérito do recurso. Entretanto, naquele julgamento, os ministros resguardaram os casos ajuizados até o julgamento de mérito do recurso extraordinário. Portanto, o comando normativo valeria a partir da decisão do Supremo, porém, os contribuintes que ingressaram com a ação judicial em momento anterior possuirão os direitos preservados. Confira-se a síntese da decisão STF após julgamento dos embargos de declaração opostos pela União:

"O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins, ressalvadas as ações judiciais e administrativas protocolizadas até a data da sessão na qual proferido o julgamento."

Tal ressalva, inclusive, contou com o voto do excelentíssimo ministro Barroso, relator da ação que julgará a questão a propósito da correção do FGTS:

"E quanto ao ponto 2, acompanho a eminente relatora, ministra Cármen Lúcia, para modular os efeitos temporais a partir do julgamento de março de 2017, salvo para os casos já transitados em julgado ou as ações se encontravam em curso, portanto, modulando, com exclusão dos casos transitados em julgado ou pendentes anteriormente àquela data."

O mesmo entendimento poderá ser aplicado no caso ora em análise, na hipótese em que o STF reconheça a inconstitucionalidade da TR para a atualização monetária do FGTS da classe trabalhadora, aplicando-se os efeitos prospectivos àquela decisão e resguardando as ações judiciais em trâmite. Frisa-se que tais demandas judiciais estão suspensas, em virtude da medida cautelar deferida pelo ministro Barroso no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade. A propósito merece aqui a transcrição da fala de Barroso, relator do caso, quando votou vencido no Recurso Extraordinário nº 574.706/PR:

"Gostaria de dizer, logo no primeiro momento, que o fato de haver uma grave crise fiscal no país não me é indiferente, mas também não é decisivo para nenhuma das opções que devo fazer quando se trate de definir o que é certo ou errado, o que é justo ou injusto, o que legítimo ou ilegítimo. E, tenho decidido assim neste Plenário por mais de uma vez."

O Plenário do Supremo terá mais uma vez a chance de definir o que é certo ou errado, a despeito dos reflexos ao Estado, sobretudo num caso envolvendo um direito fundamental do trabalhador, que corre o risco de ser esvaziado.

Por fim, é importante ressaltar que, em caso de vitória da tese defendida pela classe trabalhadora, os valores que lhe serão devidos não serão liberados de imediato, mas, apenas nas hipóteses legais de saque do FGTS (demissão, doença etc).

Essa situação não foi criada pelos trabalhadores, que são as vítimas dessa manobra estatal, logo, não se pode utilizar o valor da conta a ser paga por quem lhe deu causa, seja ela qual for, como fundamento para que não seja cumprida a Constituição.

Nesse ponto, cabe lembrar a lição sempre atual e lúcida do ministro Celso de Mello que, no julgamento do RE 226.855/RS, no qual assentou com a sabedoria de sempre: "Razões de Estado não podem ser invocadas para justificar o descumprimento da Constituição. As razões de Estado  quando invocadas como argumento de sustentação da pretensão jurídica do Poder Público ou de qualquer outra instituição  representam expressão de um perigoso ensaio destinado a submeter, à vontade do Príncipe (situação que se mostra absolutamente intolerável) a autoridade hierárquico-normativa da própria Constituição da República".

Portanto, espera-se que o Supremo Tribunal Federal reconheça a violação aos direitos fundamentais de propriedade (artigo 5º, XXII, da CRFB), direito ao FGTS (artigo 7º, III, da CRFB) e à moralidade administrativa (artigo 37, caput, da CRFB), em virtude da utilização da TR para a atualização monetária dos valores do FGTS da classe trabalhadora, por não refletir a recomposição dos valores pela inflação, resguardando-se os direitos das ações judiciais já em trâmite.

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