Opinião

(Des)criminalização das ações neutras e a teoria da imputação objetiva

Autor

  • Andrey Lázaro Lopes Ramos

    é advogado e pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

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19 de abril de 2023, 17h19

No dia a dia das pessoas, principalmente as que trabalham em departamentos de empresas, é normal que exista a divisão de tarefas e que isso implique em uma responsabilização por determinadas condutas. Essas tarefas podem ser tão corriqueiras que fogem da esfera de atenção de quem as realiza.

Tais condutas são denominadas ações neutras. Nas palavras de Lobato [1], podem ser conceituadas como: "Ações neutras seriam compreendidas como toda contribuição ao injusto penal alheio cuja reprovação não seja manifestamente exteriorizada, de modo que, a princípio, seja neutra em relação ao direito penal".

Diante desse conceito, percebemos que determinadas ações não estão abarcadas pelo direito penal que, por ser a "última ratio", só deverá ser aplicado caso todos os outros ramos não sejam aptos a resolver o problema.

O que nos interessa ao estudar as ações neutras são as hipóteses em que elas servem de apoio a consecução de crimes como a lavagem de dinheiro. É natural que as teorias da conduta tenham deixado suas contribuições quanto as ações puníveis, mas as ações neutras sempre foram uma incógnita e agora estão sendo melhor estudas a fim de esclarecer algumas questões. Afinal, essas ações devem ser punidas? Entendo que não.

Para explicar a não aplicação de pena aos autores dessas condutas que em nada fogem das tarefas cotidianas das pessoas, é necessário explicar como a teoria da imputação objetiva esclarece essa questão de forma extremamente simples, devido os critérios que o estudioso Gunther Jakobs analisou e entendeu cabíveis para o estudo do direito penal e as condutas que podem ou não serem imputadas a alguém.

O primeiro critério utilizado por Jakobs para saber se determinada conduta deve ser imputada a alguém e valorada como sendo uma ação criminosa diz respeito a criação de um risco não permitido pelo direito.

Isso significa que determinadas ações, para serem passiveis de análise pelas normas penais, devem criar um risco que não seja permitido pelo ordenamento, ou seja, que não seja razoável a criação daquele risco em virtude do fim a se alcançar com a sua realização.

Por exemplo: as viagens de avião. Entende-se que a agilidade delas proporciona inúmeras vantagens para a população em geral, apesar dos riscos.

Assim, compreende-se que as ações neutras não criam um risco juridicamente desaprovado, pois nesses casos nada se faz a mais do que uma simples ação cotidiana. Caso essa ação não fosse utilizada como apoio à realização de um ilícito penal por um terceiro, nada teria de relevante para se analisar do ponto de vista jurídico.

Imaginemos que nossa análise transponha o critério da criação do risco não permitido. Com isso, chegaríamos ao segundo critério da teoria formulado por Jakobs, que seria o princípio da confiança.

Por esse princípio, entende-se que só é possível viver e agir em sociedade pela confiança que temos a qual cada pessoa fará sua parte nas relações sociais. Por exemplo: quando o sinal fica verde para um motorista, certamente fica vermelho para outro e aquele a quem o sinal deu ordem para prosseguir deve confiar que o outro não infringirá a norma dada pelo sinal para que não avance e assim espere até que chegue sua vez de prosseguir.

O mesmo ocorre com as condutas neutras, pois quem realiza sua atividade de forma natural tem o direito de confiar que ninguém irá se aproveitar de sua conduta para alcanças fins imorais e ilegais.

Não há como punir uma conduta que se amolda ao direito, pois tudo o que a lei não proíbe é permitido e não pode ocorrer a hipótese de o Estado permitir uma ação ao mesmo tempo que a criminaliza.

Quanto ao terceiro critério de apuração em relação à imputação de uma conduta criminosa a alguém, temos a proibição de regresso, que nas palavras de Augusto Antônio Fontanive Leal [2] tem por conteúdo: "um comportamento que, considerado dentro ou fora da causação de um delito, não é dotado de ofensividade, mesmo estando aparentemente presente em uma atividade não permitida pelo direito".

Dessa afirmação se extrai que ações corriqueiras as quais analisadas fora do fato criminoso não geram nenhum grau de ofensividade, tendo em vista que se trata de condutas irrelevantes para o direito penal.

A proibição de regresso é diferente do princípio da confiança no ponto em que, na confiança se espera que a conduta da outra pessoa esteja de acordo com o que é legal (moral), ao passo que na proibição de regresso não importa saber a conduta do outro, pois a ação é decorrência natural da função de quem a pratica.

Como exemplo, podemos citar o padeiro que vende o pão. Para ele, não importa saber se a pessoa vai se alimentar ou envenenar alguém. Ou seja, mesmo no caso do uso do pão para a prática de um homicídio, o padeiro não pode ser responsabilizado visto que apenas exerceu a sua função.

Por fim, de acordo com a teoria da imputação objetiva proposta por Jakobs, deve-se dedicar atenção ao critério da capacidade de ser vítima. Esse último critério nada mais é do que a hipótese da pessoa que foi lesada ter se colocado na situação de perigo, como nos casos em que a vítima de um acidente automobilístico perde a perna após aceitar carona de um amigo que se embriagou na festa e que estava dirigindo o carro. Ao aceitar a carona, a pessoa se colocou em perigo ao anuir viajar com alguém que estava inabilitado naquele momento devido a embriaguez.

Diante de tudo que foi exposto quanto as ações neutras (standards) e a teoria da imputação objetiva, é necessário estabelecer um limite quanto a criminalização dessas ações, visto que não é razoável punir condutas que são cotidianas, derivadas do princípio da adequação social.

Mesmo aqueles que devido a seu trabalho tem a função de prevenção a delitos como a lavagem de dinheiro, por exemplo, não devem ter sua conduta valorada pelo direito penal senão pelo direito administrativo, pois mesmo que haja uma ciência da situação por parte do agente neutro, caso não exista nenhuma vantagem auferida por esse agente advindo dessa conduta, não há que se invocar o direito penal para atuar nesses casos.

É importante destacar que determinadas funções, como a dos agentes responsáveis por fiscalizar transações para que não ocorra a lavagem de dinheiro estão dentro do direito administrativo, pois são funções dessa seara advindas de um esforço internacional para prevenção de crimes que possuem capacidade transnacionais e que derivam do compliance, prática comum nas empresas e nas agências bancárias.

Logo, são funções administrativas que, por não estarem criminalizadas pela lei, não podem ser imputadas criminalmente a alguém por força do princípio da legalidade.

Quanto aos critérios, creio que a não imputação criminal das ações neutras esbarra no primeiro obstáculo que é a criação de um risco permitido, tendo em vista que são condutas que não criam riscos proibidos, mesmo que ajudem na obtenção de vantagens ilícitas.

Ainda que houvesse algum malabarismo hermenêutico e se ultrapassasse esse primeiro critério, a conduta não resistiria ao princípio da confiança nem ao da proibição de regresso, pois são critérios os quais não permitem que as ações cotidianas, mesmo que sejam usadas para consecução de crimes, não devem ter seus autores responsabilizados por serem ações que o direito permite e, portanto, não podem ser proibidas posteriormente.

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Referências bibliográficas
FILHO, Antônio Carlos Santoro. A teoria da imputação objetiva, apontamentos críticos à luz do Direito Positivo Brasileiro. 1ª Ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2007.

LEAL, Augusto Antônio Fontanive. A teoria da imputação objetiva, fundamentos e aplicação. 1ª Ed. Caxias do Sul: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2016.

LOBATO, Danilo José Tavares. Teoria geral da participação criminal e ações neutras. 1ª Ed. Curitiba: Editora Juruá, 2009.

MELO, Matheus Barbosa. Lavagem de Dinheiro, Compliance e a Imputação das Ações Neutras. 1ª Ed. São Paulo: Tirant Brasil, 2019. Disponível em: https://biblioteca.tirant.com/cloudLibrary/ebook/info/9788594774514.

RODRIGUES, Glaison Lima. A Teoria da Imputação Objetiva e sua aplicação pela Polícia Judiciária. 1ª Ed. São Paulo: Tirant Brasil, 2020. Disponível em: https://biblioteca.tirant.com/cloudLibrary/ebook/info/9786587684499.

 


[1] LOBATO, Danilo José Tavares. Teoria geral da participação criminal e ações neutras. 1ª Ed. Curitiba: Editora Juruá, 2009.

[2] LEAL, Augusto Antônio Fontanive. A teoria da imputação objetiva, fundamentos e aplicação. 1ª Ed. Caxias do Sul: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2016.

Autores

  • é advogado e pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

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