Tribuna da Defensoria

Independência da defensoria: reflexo narcísico ou normativo pró-vulnerável?

Autor

  • Magdiel Pacheco Santos

    é defensor público. Mestrando em Filosofia pela PUC-RS; especialista em Filosofia e Teoria do Direito (PUC-MG); especialista em Gestão Pública (UFMA); especialista em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Damásio) e instrutor interno ESDPEMA (2019/2022).

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18 de abril de 2023, 10h36

De tempos em tempos, geralmente em algum contexto trágico, a tônica da independência funcional exsurge em debates acalorados  e, comumente, rasos e marcados por antagonismos ideológicos que pouco contribuem para a comunicação democrática. Por coincidência, são situações marcadas não por um excesso de zelo, de ampliação de direitos, de um atrevimento institucional de aumentar a voz dos vulneráveis perante o sistema de justiça que o silencia. Pelo contrário, em rápido sumário, é possível recordar vários episódios [1], envolvendo a Defensoria Pública (em sentido lato, tanto nos estados quanto da União): como o levante contra as ações afirmativas; expedição de recomendação contra hipótese de aborto legal no contexto de violência sexual contra criança; e, mais recentemente, a atuação da Defensoria em prol do feto [2], revelada no início do ano pelo site The Intercept Brasil.

De pronto, é preciso destacar que o intento dessa provocação não é flutuar no aspecto jurídico-dogmático (já que se pressupõe que o cenário desse conflito institucional é sintomático para a insuficiência do positivismo na questão  ou, pelo menos, para quem insiste em encontrar dúvidas nessa seara de atuação). Portanto, a reflexão busca navegar nas águas da ética, nos limites desse espaço editorial, mas especificamente com influência na ética institucional de uma leitura levinasiana  em busca de um telos potencializador do papel defensorial. Assim, em que pese o não-dito revelar bem o posicionamento desse colunista sobre os casos apontados, espere, o leitor e leitora daqui, não respostas, mas questionamentos [3] que faltam e destacam que o brio gerado por essas atuações revelam bem a fragilidade e a limitação da compreensão comum quanto à práxis da Defensoria.

Enquanto princípio institucional, a independência funcional (artigo 134, §4º, da CF e artigo 3º da LC nº 80/1994) está contextualizada no comum ambiente de poder e contra-poder que a Defensoria Pública está situada. Assim, não é incomum que, quando imbuído do mandato constitucional em prol do vulnerável, o defensor e a defensora se vejam em situação renhida de influências políticas, institucionais (dentro e fora da Defensoria), desgastes com outras carreiras jurídicas, etc… Portanto, para o membro e para a membra, a independência funcional se revela como um princípio alinhado a sua compreensão de justiça, do ordenamento e da leitura da situação fática — de violação ou de risco de violação de direitos de vulneráveis — levada para apreciação. Como sintetiza a doutrina respeitada de Franklyn Roger e Diogo Esteves, "em virtude de sua independência funcional, os Defensores Públicos podem atuar livremente no exercício de suas funções institucionais, rendendo obediência apenas à lei e à sua própria consciência" [5].

E, aqui, com esse breve introito — sempre para não assustar ou desestimular os mais positivistas —, chega-se há um ponto de clivagem na reflexão. Faz-se um distanciamento da dogmática jurídica e se toma um norte, comum nos escritos pretéritos, para uma perspectiva crítica e desencastelada da instituição [6].

Partindo do paradigma doutrinário mencionado, nota-se que o princípio da independência funcional é sempre analisado, exclusivamente, na perspectiva da lei e da consciência do membro ou membra defensorial. Há, dessa forma, uma hermenêutica exclusivamente normativa em que se retroalimenta os limites da legalidade e da constitucionalidade sob a ótica do (a) operador (a) do Direito. De pronto, é possível problematizar um claro alijamento da participação, da voz e da contribuição do maior impactado no resultado desse cálculo cartesiano sobre o atuar e o não-atuar defensorial: o vulnerável.

E, aqui, para sairmos do lugar-comum das ponderações sobre o tema, é preciso delinear um aspecto necessário na reflexão e deve ser desnaturalizado: a facilidade com que se fala, se atua e se ensina sobre a centralidade na perspectiva do (a) jurista revela a problemática da ontologia [7] e do logocentrismo. O vaticínio levinasiano é peremptório: "O homem inteiro é ontologia" [8]. Portanto, a lógica do pensamento ocidental, tanto em sua gênese no classicismo grego quanto no aprofundamento da lógica cartesiana do "penso, logo existo", desdobrou-se na realidade (não) percebida da modernidade:

"A filosofia ocidental tem sido uma ontologia: redução do Outro ao Mesmo, por mediação de um termo neutro que assegura inteligência ao ser. A razão é uma manifestação de liberdade, neutralizando o Outro e englobando-o, colocando-o como tema e objeto. A filosofia apresenta-se como egologia: o estrangeiro e exterior manifestam-se a partir de intermediário (o conceito); a verdade socrática apresenta-se como suficiência essencial do Mesmo." [9]

Assim, a percepção da existência passou a ser naturalizada enquanto exclusiva representação intelectual do Mesmo, em um processo cognoscente solipsista e autorreferente  que reduz o exterior à métrica e à percepção estabelecida pelo Eu. Dessa forma, "egoísta, absoluto, imediatista, materialista: era exatamente assim que Lévinas enxergava o homem contemporâneo e, assim, absolutamente incapaz de superar a subjetividade do ser em si mesmo" [10].

Nessa hora, o paciente leitor e leitora devem estar perdidos e se perguntando o que tudo isso tem a ver com a independência funcional. Chegaremos lá. Até agora, estamos falando que o ato de conhecer, da forma como foi construído culturalmente, construiu uma racionalidade que lê e compreende a realidade estritamente em um monólogo consigo mesmo, inclusive autolegitimando essas apreciações. Nesse processo, fica o questionamento que ressoa nesse vácuo solitário e egolátrico: e o Outro? Será que não foi encaixotado e reduzido a mero objeto de conhecimento?

Assim, já pode ser fixado um norte nessa problemática:

"(…) o homem contemporâneo somente conseguirá superar a totalidade do ser em si mesmo se tiver a grandeza de se abrir à exterioridade, movimentando-se, depondo-se em relação ao Outro, rumo ao infinito. Mas não se trata de uma relação do Eu que enxergue o Outro como Eu, já que isso não concerne ao Outro mas ao Mesmo." [11]

Trazendo para o cenário da Defensoria Pública e da independência funcional, nota-se que os casos listados inicialmente são marcados, conforme as informações disponíveis a nível público, por um processo cognoscente com viés exclusivamente técnico-jurídico. Categorias jurídicas, normas e princípios são elencados para justificar uma atuação com suposto fortalecimento institucional e com concretização dos valores do membro e da membra.

Em uma das reportagens, há um trecho em que se justifica uma das atuações com o seguinte dito [12]: "Minha atuação foi realizada em conformidade com o dever constitucional e legal, ético, humanitário e humano de levar em conta todas as situações sob um olhar imparcial, técnico e visando sempre o bem-estar de todos os envolvidos, inclusive o assistido nascituro". E, aqui, peço, ao leitor e leitora, que retorne a breve digressão sobre a ontologia, o Eu e a percepção do Outro enquanto Mesmo, e releia a justificativa apresentada para a atuação. E repito, conscientemente (não é erro de digitação) trecho já utilizado acima: fica o questionamento que ressoa nesse vácuo solitário: e o Outro? Será que não foi encaixotado e reduzido a mero objeto de conhecimento?

Paulo Freire [13] dizia que "uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas". E o que o Outro senão uma bela crise, um choque às nossas certezas, verdades e realidades encapsuladas? Falar em atuação com olhar imparcial e técnico é, no mínimo, uma postura erística, desconsiderando que, no âmbito da Defensoria Pública, falar em imparcialidade é desconsiderar toda a construção constitucional e legislativa que arquitetou a instituição a ser parcial, essencialmente parcial em prol dos vulneráveis, do Outro-vulnerável.

Talvez para alguns leitores ou leitoras a reflexão esteja muito etérea, e ainda o ir para além do direito possa ser visto como excesso, então, vamos a questionamentos técnicos, ponderações respondíveis pelo homo juridicus e seu modus intelligendi peculiar: seria legítima e constitucional uma atuação, ainda sob a proteção da independência funcional, que se desdobre em retrocesso dos direitos fundamentais? O existir da Defensoria Pública, o seu telos constitucional, se concretiza mesmo em estratégias que vão de encontro à marcha do reconhecimento dos grupos minoritários e pautas que não agradam a maioria?

A resposta para tais perguntas, a meu ver, não está na apreciação técnica e imparcial de toda a problemática apresentada. Pelo contrário, não é "a partir de um mero joguete de palavras, em que a dignidade da pessoa humana se torna um atributo de determinadas pessoas humanas" que se alcança a potencialidade nesse processo cognoscente de desconstrução, de crise e de destronação do Eu-Defensor(a) solipsista e egolátrico; mas, sim, em uma dinâmica institucional em que "o termo 'humana' soe como exigência primeira, que joga o Direito numa situação de permanente transbordamento de si mesmo em direção à justiça" [15].

Se, nos exercícios hermenêuticos e do pensar jurídico os membros e membras da Defensoria Pública, ainda conseguiram delinear, em valores abstratos herméticos e frios, um locus legítimo para a independência funcional, a pergunta que persiste é: e quanto ao indivíduo, com rosto, cor, cheiro e infinitude, houve realmente uma potencialização do Direito e um digno acolhimento nesse juízo; ou a negação de uma narrativa silenciada por tecnocracia institucional?

Há quem diga que terminar um texto com uma citação não é de bom tom. Mas, já que a tônica é zetética mesmo, encerro essa reflexão com as seguintes palavras de Emmanuel Levinas e deixo um convite, aos membros e membras da Defensoria Pública, que em seus exercícios de conhecimento, descubram a profundidade e beleza que há na interpelação pelo Outro, não como objeto de conhecimento, mas como mistério e crise [16]:

"(…) na nossa relação com outrem, a questão será deixá-lo ser? A independência de outrem não se realiza na sua função de interpelado? Aquele a quem se fala é, previamente, compreendido no seu ser? De forma alguma. Outrem não é primeiro objeto de compreensão, e depois, interlocutor. As duas relações confundem-se. Dito de outra forma, da compreensão de outrem é inseparável sua invocação."

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[1] Defensor da União move ação contra Magazine Luiza por trainee exclusivo para negros; DPU defende a empresa. G1. 06 de outubro de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/06/defensor-da-uniao-move-acao-contra-magazine-luiza-por-trainee-exclusivo-para-negros-dpu-defende-a-empresa.ghtml; Defensoria apura se houve infração em tentativa de barrar aborto em SC. Metrópoles. 24 de junho de 2022. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/defensoria-apura-se-houve-infracao-em-tentativa-de-barrar-aborto-em-sc

[2] Dupla violência: Defensoria pede para proteger feto de menina de 12 anos grávida pela segunda vez após estupro no PI – e juíza aceita. The Intercept Brasil. 30 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2023/01/30/aborto-juiza-piaui-antecipa-estatuto-nascituro-crianca-estuprada/

[3] "Na filosofia, o importante não são tanto as respostas, mas sim as perguntas" (Bertrand Russel. História do pensamento ocidental: a aventura dos pré-socráticos a Wittgenstein, 2001, p. 24).

[4] Antenor Nascentes, Dicionário etimológico Resumido, 1966, p. 605.

[5] Franklin Roger; Diogo Esteves. Princípios institucionais da Defensoria Pública. 3ª ed, 2018, p. 428.

[6] Da mesma autoria dessa reflexão: Por uma Defensoria (sempre) profanada. Conjur. 15 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-15/magdiel-pacheco-defensoria-profanada; Defensoria Pública: um convite à crise institucional. Conjur. Tribuna da Defensoria. 10 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-10/tribuna-defensoria-defensoria-publica-convite-crise-institucional

[7] Para entender a categoria central da ontologia em Lévinas, interessante usar o seguinte esclarecimento bem didático: "a ontologia é o ser e o 'si mesmo' concebido por Lévinas, como horizonte fenomenológico de inteligibilidade dos entes, inclusive do ente humano. Separar-se da ontologia e do ser significa, em primeiro lugar, sair de uma compreensão de uma ontologia constituída como a que foi determinante no pensamento filosófico ocidental. Implica, também, sair da subjetividade inteligida e constituída como mônada  átomo espiritual, substância desprovida de partes e de extensão, portanto indivisível – solipsista – termo aplicado para designar egoísmo metafísico — e como espelhismo existencial, ou egoísmo existencial do ser  ontologia" (Rogério Jolins Martins; Hubert Leparrgneur. Introdução a Lévinas: pensar a ética no século XXI, 2014, p. 05.).

[8] Emmanuel Lévinas. Entre nós: ensaios sobre a alteridade, 1997, p. 22.

[9] Moyses Pinto Neto. O rosto do inimigo: um convite à desconstrução do Direito Penal do Inimigo, 2012, p. 236.

[10] e [11] Carlos Eduardo Nicoletti Camillo, A teoria da alteridade jurídica,2016, p. 43.

[12] Defensores públicos são perseguidos por atuar a favor do nascituro. Gazeta do Povo. 06 de abril de 2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/defensores-publicos-sao-perseguidos-por-atuar-a-favor-do-nascituro/

[13] Paulo Freire. Pedagogia da autonomia: saberes necessária à prática educativa, p. 29

[14] Moyses Pinto Neto. O rosto do inimigo:, p. 261

[15] Idem, p. 265

[16] Emmanuel Lévinas. Entre nós (…), p. 27.

Autores

  • é defensor público, especialista em filosofia e Teoria do Direito (PucMinas), especialista em Gestão Pública (UFMA) e em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Damásio), instrutor interno ESDPema (2019-2022), fotógrafo amador e poeta.

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