Independência da defensoria: reflexo narcísico ou normativo pró-vulnerável?
18 de abril de 2023, 10h36
De tempos em tempos, geralmente em algum contexto trágico, a tônica da independência funcional exsurge em debates acalorados — e, comumente, rasos e marcados por antagonismos ideológicos que pouco contribuem para a comunicação democrática. Por coincidência, são situações marcadas não por um excesso de zelo, de ampliação de direitos, de um atrevimento institucional de aumentar a voz dos vulneráveis perante o sistema de justiça que o silencia. Pelo contrário, em rápido sumário, é possível recordar vários episódios [1], envolvendo a Defensoria Pública (em sentido lato, tanto nos estados quanto da União): como o levante contra as ações afirmativas; expedição de recomendação contra hipótese de aborto legal no contexto de violência sexual contra criança; e, mais recentemente, a atuação da Defensoria em prol do feto [2], revelada no início do ano pelo site The Intercept Brasil.
De pronto, é preciso destacar que o intento dessa provocação não é flutuar no aspecto jurídico-dogmático (já que se pressupõe que o cenário desse conflito institucional é sintomático para a insuficiência do positivismo na questão — ou, pelo menos, para quem insiste em encontrar dúvidas nessa seara de atuação). Portanto, a reflexão busca navegar nas águas da ética, nos limites desse espaço editorial, mas especificamente com influência na ética institucional de uma leitura levinasiana — em busca de um telos potencializador do papel defensorial. Assim, em que pese o não-dito revelar bem o posicionamento desse colunista sobre os casos apontados, espere, o leitor e leitora daqui, não respostas, mas questionamentos [3] que faltam e destacam que o brio gerado por essas atuações revelam bem a fragilidade e a limitação da compreensão comum quanto à práxis da Defensoria.
Enquanto princípio institucional, a independência funcional (artigo 134, §4º, da CF e artigo 3º da LC nº 80/1994) está contextualizada no comum ambiente de poder e contra-poder que a Defensoria Pública está situada. Assim, não é incomum que, quando imbuído do mandato constitucional em prol do vulnerável, o defensor e a defensora se vejam em situação renhida de influências políticas, institucionais (dentro e fora da Defensoria), desgastes com outras carreiras jurídicas, etc… Portanto, para o membro e para a membra, a independência funcional se revela como um princípio alinhado a sua compreensão de justiça, do ordenamento e da leitura da situação fática — de violação ou de risco de violação de direitos de vulneráveis — levada para apreciação. Como sintetiza a doutrina respeitada de Franklyn Roger e Diogo Esteves, "em virtude de sua independência funcional, os Defensores Públicos podem atuar livremente no exercício de suas funções institucionais, rendendo obediência apenas à lei e à sua própria consciência" [5].
E, aqui, com esse breve introito — sempre para não assustar ou desestimular os mais positivistas —, chega-se há um ponto de clivagem na reflexão. Faz-se um distanciamento da dogmática jurídica e se toma um norte, comum nos escritos pretéritos, para uma perspectiva crítica e desencastelada da instituição [6].
Partindo do paradigma doutrinário mencionado, nota-se que o princípio da independência funcional é sempre analisado, exclusivamente, na perspectiva da lei e da consciência do membro ou membra defensorial. Há, dessa forma, uma hermenêutica exclusivamente normativa em que se retroalimenta os limites da legalidade e da constitucionalidade sob a ótica do (a) operador (a) do Direito. De pronto, é possível problematizar um claro alijamento da participação, da voz e da contribuição do maior impactado no resultado desse cálculo cartesiano sobre o atuar e o não-atuar defensorial: o vulnerável.
E, aqui, para sairmos do lugar-comum das ponderações sobre o tema, é preciso delinear um aspecto necessário na reflexão e deve ser desnaturalizado: a facilidade com que se fala, se atua e se ensina sobre a centralidade na perspectiva do (a) jurista revela a problemática da ontologia [7] e do logocentrismo. O vaticínio levinasiano é peremptório: "O homem inteiro é ontologia" [8]. Portanto, a lógica do pensamento ocidental, tanto em sua gênese no classicismo grego quanto no aprofundamento da lógica cartesiana do "penso, logo existo", desdobrou-se na realidade (não) percebida da modernidade:
"A filosofia ocidental tem sido uma ontologia: redução do Outro ao Mesmo, por mediação de um termo neutro que assegura inteligência ao ser. A razão é uma manifestação de liberdade, neutralizando o Outro e englobando-o, colocando-o como tema e objeto. A filosofia apresenta-se como egologia: o estrangeiro e exterior manifestam-se a partir de intermediário (o conceito); a verdade socrática apresenta-se como suficiência essencial do Mesmo." [9]
Assim, a percepção da existência passou a ser naturalizada enquanto exclusiva representação intelectual do Mesmo, em um processo cognoscente solipsista e autorreferente — que reduz o exterior à métrica e à percepção estabelecida pelo Eu. Dessa forma, "egoísta, absoluto, imediatista, materialista: era exatamente assim que Lévinas enxergava o homem contemporâneo e, assim, absolutamente incapaz de superar a subjetividade do ser em si mesmo" [10].
Nessa hora, o paciente leitor e leitora devem estar perdidos e se perguntando o que tudo isso tem a ver com a independência funcional. Chegaremos lá. Até agora, estamos falando que o ato de conhecer, da forma como foi construído culturalmente, construiu uma racionalidade que lê e compreende a realidade estritamente em um monólogo consigo mesmo, inclusive autolegitimando essas apreciações. Nesse processo, fica o questionamento que ressoa nesse vácuo solitário e egolátrico: e o Outro? Será que não foi encaixotado e reduzido a mero objeto de conhecimento?
Assim, já pode ser fixado um norte nessa problemática:
"(…) o homem contemporâneo somente conseguirá superar a totalidade do ser em si mesmo se tiver a grandeza de se abrir à exterioridade, movimentando-se, depondo-se em relação ao Outro, rumo ao infinito. Mas não se trata de uma relação do Eu que enxergue o Outro como Eu, já que isso não concerne ao Outro — mas ao Mesmo." [11]
Trazendo para o cenário da Defensoria Pública e da independência funcional, nota-se que os casos listados inicialmente são marcados, conforme as informações disponíveis a nível público, por um processo cognoscente com viés exclusivamente técnico-jurídico. Categorias jurídicas, normas e princípios são elencados para justificar uma atuação com suposto fortalecimento institucional e com concretização dos valores do membro e da membra.
![](https://www.conjur.com.br/img/b/icone-selo-tribuna-defensoria.jpeg)
Paulo Freire [13] dizia que "uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas". E o que o Outro senão uma bela crise, um choque às nossas certezas, verdades e realidades encapsuladas? Falar em atuação com olhar imparcial e técnico é, no mínimo, uma postura erística, desconsiderando que, no âmbito da Defensoria Pública, falar em imparcialidade é desconsiderar toda a construção constitucional e legislativa que arquitetou a instituição a ser parcial, essencialmente parcial em prol dos vulneráveis, do Outro-vulnerável.
Talvez para alguns leitores ou leitoras a reflexão esteja muito etérea, e ainda o ir para além do direito possa ser visto como excesso, então, vamos a questionamentos técnicos, ponderações respondíveis pelo homo juridicus e seu modus intelligendi peculiar: seria legítima e constitucional uma atuação, ainda sob a proteção da independência funcional, que se desdobre em retrocesso dos direitos fundamentais? O existir da Defensoria Pública, o seu telos constitucional, se concretiza mesmo em estratégias que vão de encontro à marcha do reconhecimento dos grupos minoritários e pautas que não agradam a maioria?
A resposta para tais perguntas, a meu ver, não está na apreciação técnica e imparcial de toda a problemática apresentada. Pelo contrário, não é "a partir de um mero joguete de palavras, em que a dignidade da pessoa humana se torna um atributo de determinadas pessoas humanas" que se alcança a potencialidade nesse processo cognoscente de desconstrução, de crise e de destronação do Eu-Defensor(a) solipsista e egolátrico; mas, sim, em uma dinâmica institucional em que "o termo 'humana' soe como exigência primeira, que joga o Direito numa situação de permanente transbordamento de si mesmo em direção à justiça" [15].
Se, nos exercícios hermenêuticos e do pensar jurídico os membros e membras da Defensoria Pública, ainda conseguiram delinear, em valores abstratos herméticos e frios, um locus legítimo para a independência funcional, a pergunta que persiste é: e quanto ao indivíduo, com rosto, cor, cheiro e infinitude, houve realmente uma potencialização do Direito e um digno acolhimento nesse juízo; ou a negação de uma narrativa silenciada por tecnocracia institucional?
Há quem diga que terminar um texto com uma citação não é de bom tom. Mas, já que a tônica é zetética mesmo, encerro essa reflexão com as seguintes palavras de Emmanuel Levinas e deixo um convite, aos membros e membras da Defensoria Pública, que em seus exercícios de conhecimento, descubram a profundidade e beleza que há na interpelação pelo Outro, não como objeto de conhecimento, mas como mistério e crise [16]:
"(…) na nossa relação com outrem, a questão será deixá-lo ser? A independência de outrem não se realiza na sua função de interpelado? Aquele a quem se fala é, previamente, compreendido no seu ser? De forma alguma. Outrem não é primeiro objeto de compreensão, e depois, interlocutor. As duas relações confundem-se. Dito de outra forma, da compreensão de outrem é inseparável sua invocação."
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[1] Defensor da União move ação contra Magazine Luiza por trainee exclusivo para negros; DPU defende a empresa. G1. 06 de outubro de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/06/defensor-da-uniao-move-acao-contra-magazine-luiza-por-trainee-exclusivo-para-negros-dpu-defende-a-empresa.ghtml; Defensoria apura se houve infração em tentativa de barrar aborto em SC. Metrópoles. 24 de junho de 2022. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/defensoria-apura-se-houve-infracao-em-tentativa-de-barrar-aborto-em-sc
[2] Dupla violência: Defensoria pede para proteger feto de menina de 12 anos grávida pela segunda vez após estupro no PI – e juíza aceita. The Intercept Brasil. 30 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2023/01/30/aborto-juiza-piaui-antecipa-estatuto-nascituro-crianca-estuprada/
[3] "Na filosofia, o importante não são tanto as respostas, mas sim as perguntas" (Bertrand Russel. História do pensamento ocidental: a aventura dos pré-socráticos a Wittgenstein, 2001, p. 24).
[4] Antenor Nascentes, Dicionário etimológico Resumido, 1966, p. 605.
[5] Franklin Roger; Diogo Esteves. Princípios institucionais da Defensoria Pública. 3ª ed, 2018, p. 428.
[6] Da mesma autoria dessa reflexão: Por uma Defensoria (sempre) profanada. Conjur. 15 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-15/magdiel-pacheco-defensoria-profanada; Defensoria Pública: um convite à crise institucional. Conjur. Tribuna da Defensoria. 10 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-10/tribuna-defensoria-defensoria-publica-convite-crise-institucional
[7] Para entender a categoria central da ontologia em Lévinas, interessante usar o seguinte esclarecimento bem didático: "a ontologia é o ser e o 'si mesmo' concebido por Lévinas, como horizonte fenomenológico de inteligibilidade dos entes, inclusive do ente humano. Separar-se da ontologia e do ser significa, em primeiro lugar, sair de uma compreensão de uma ontologia constituída como a que foi determinante no pensamento filosófico ocidental. Implica, também, sair da subjetividade inteligida e constituída como mônada — átomo espiritual, substância desprovida de partes e de extensão, portanto indivisível – solipsista – termo aplicado para designar egoísmo metafísico — e como espelhismo existencial, ou egoísmo existencial do ser — ontologia" (Rogério Jolins Martins; Hubert Leparrgneur. Introdução a Lévinas: pensar a ética no século XXI, 2014, p. 05.).
[8] Emmanuel Lévinas. Entre nós: ensaios sobre a alteridade, 1997, p. 22.
[9] Moyses Pinto Neto. O rosto do inimigo: um convite à desconstrução do Direito Penal do Inimigo, 2012, p. 236.
[10] e [11] Carlos Eduardo Nicoletti Camillo, A teoria da alteridade jurídica,2016, p. 43.
[12] Defensores públicos são perseguidos por atuar a favor do nascituro. Gazeta do Povo. 06 de abril de 2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/defensores-publicos-sao-perseguidos-por-atuar-a-favor-do-nascituro/
[13] Paulo Freire. Pedagogia da autonomia: saberes necessária à prática educativa, p. 29
[14] Moyses Pinto Neto. O rosto do inimigo:, p. 261
[15] Idem, p. 265
[16] Emmanuel Lévinas. Entre nós (…), p. 27.
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