Opinião

Evolução interpretativa da regra da impenhorabilidade da poupança no STJ

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3 de abril de 2023, 18h21

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O Código de Processo Civil de 1973, revogado pela Lei nº 13.105/2015,
inovou no seu artigo 649, inciso X, ao proteger os valores mantidos em
caderneta de poupança, já que o Código Processual Civil anterior (Decreto-Lei nº 1.608/1939) não dispunha de proteção semelhante.

Em contrapartida, salienta-se que para o contexto da época (anos 30-40) existiam previsões que hoje não mais estão descritas no atual CPC, por exemplo: impenhorabilidade de uma vaca de leite e outros animais domésticos (artigo 942, inciso IV); provisões de combustíveis (artigo 942, inciso II); anel de núpcias e os retratos de família (artigo 942, inciso III), dentre outras. Buscou-se, assim como hoje, assegurar os bens mais caros e imprescindíveis à dignidade e subsistência do executado naquele período.

Com a promulgação da Lei nº 13.105/2015, que estabeleceu o atual Código de Processo Civil, o legislador reafirmou no artigo 833, inciso X, a impenhorabilidade do saldo de conta poupança até o limite de 40 salários- mínimos, ratificando o que já dispunha o artigo 649, inciso X, do CPC de 1973.

A impenhorabilidade da conta poupança, dentre outros salvaguardados bens e direitos, vem a assegurar o princípio da dignidade da pessoa humana, oportunizando meios de subsistência ao devedor e sua família,
equacionando-os com o cumprimento das obrigações de forma a manter um mínimo existencial e garantir a segurança para situações emergenciais.

O referido princípio apresentou controvérsia na 2ª Seção do STJ,
formada pelas 3ª e 4ª Turmas, que até 2014 possuía entendimentos divergentes acerca da extensão da regra da
impenhorabilidade da conta poupança. Enquanto a 3ª Turma adotava uma interpretação literal (restritiva) da disposição do CPC, a 4ª entendia que os valores mantidos em conta-corrente, aplicações e papel-moeda também seriam impenhoráveis.

A divergência supracitada foi objeto de análise do Recurso Especial nº
1.230.060–PR, onde a 2ª Seção do STJ consolidou a interpretação extensiva dada pela 4ª Turma ao artigo 649, inciso X, sendo voto vencido a ministra Nancy Andrighi:

"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. IMPENHORABILIDADE. ARTIGO 649, IV e X, DO CPC. FUNDO DE INVESTIMENTO. POUPANÇA. LIMITAÇÃO. QUARENTA SALÁRIOS MÍNIMOS. PARCIAL PROVIMENTO.
1. A remuneração a que se refere o inciso IV do artigo 649 do CPC é a última percebida, no limite do teto constitucional de remuneração (CF, artigo 37, XI e XII), perdendo esta natureza a sobra respectiva, após o recebimento do salário ou vencimento seguinte. Precedente.
2. O valor obtido a título de indenização trabalhista, após longo período depositado em fundo de investimento, perde a característica de verba salarial impenhorável (inciso IV do art. 649). Reveste-se, todavia, de impenhorabilidade a quantia de até quarenta salários mínimos poupada, seja ela mantida em papel-moeda; em conta-corrente; aplicada em caderneta de poupança propriamente dita ou em fundo de investimentos, e ressalvado eventual abuso, má-fé, ou fraude, a ser verificado caso a caso, de acordo com as circunstâncias da situação concreta em julgamento (inciso X do art. 649). 3. Recurso especial parcialmente."

Com isso, a Corte Cidadã estendeu a regra da impenhorabilidade aos valores mantidos em conta-corrente, fundo de investimentos e papel-moeda, elastecendo a interpretação do dispositivo legal aos montantes depositados em instituições financeiras de forma genérica.

Importante observar que no julgamento do mesmo REsp. 1.230.060-PR, a Segunda Seção ponderou que a regra da interpretação extensiva da
impenhorabilidade era, analisado o caso concreto, passível de ressalva nos casos de abuso, má-fé ou fraude.

Recentemente, o STJ avançou ainda mais no tema, pois no AgInt no
AREsp 2.151.910-RS, a Corte definiu que a impenhorabilidade de valores em contas bancárias (independentemente da origem e observada a limitação legal) trata-se de matéria de ordem pública e pode ser reconhecida de ofício pelo juiz. Vejamos:

"ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO. PENHORA. SISTEMA
BACENJUD. DEPÓSITO EM CONTA BANCÁRIA ATÉ O LIMITE DE 40 SALÁRIOS MÍNIMOS. IMPENHORABILIDADE PRESUMIDA.
POSSIBILIDADE DE DESBLOQUEIO EX OFFICIO. 1. A penhora eletrônica não pode descurar-se do disposto no artigo 833, X, do CPC, uma vez que 'a previsão de impenhorabilidade das aplicações
financeiras do devedor até o limite de 40 salários-mínimos é presumida, cabendo ao credor demonstrar eventual abuso, má-fé ou fraude do devedor, a ser verificado caso a caso, de acordo com as circunstâncias de cada hipótese trazida à apreciação do Poder Judiciário' (AREsp nº 2.109.094, relator ministro Gurgel de Faria, DJe de 16/8/2022).
2. Nos termos da jurisprudência firmada no âmbito desta Corte de
Justiça, a impenhorabilidade constitui matéria de ordem pública,
cognoscível de ofício pelo juiz, não havendo falar em nulidade da
decisão que, de plano, determina o desbloqueio da quantia
ilegalmente penhorada.
3. Agravo interno não provido". 
(AgInt no AREsp nº 2.151.910/RS, relator ministro Sérgio Kukina, 1ª Turma, julgado em 19/9/2022, DJe de 22/9/2022).

Há nesse posicionamento do STJ uma colisão com o art. 10 do atual CPC, bem como um problema de ordem prática aos credores.

O artigo 10 do Código de Processo Civil dispõe que "o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício".

Analisando de forma crítica o avanço operado pelo STJ na interpretação do artigo 649, inciso X, do CPC/73, e, consequentemente do art. 833, inciso X, do atual CPC, já que de conteúdo idêntico, temos que o magistrado efetuará o bloqueio e, ato contínuo, observando que o limite é inferior a 40 salários mínimos, determinará a liberação do numerário.

Assim, o credor só terá conhecimento do valor bloqueado com a intimação da decisão de ofício, ou seja, após a efetivação do desbloqueio. Logo, há grandes riscos de que, em caso de comprovação da excepcionalidade da impenhorabilidade, o que demandará o manejo de recurso próprio e tempo, a renovação da ordem de bloqueio seja ineficaz.

Evidente que a posição estimulada pelo STJ no julgado AgInt no AREsp nº 2.151.910/RS, está em desconformidade com o texto legal. O fato de ser a impenhorabilidade matéria de ordem pública, comportando decisão ex officio, não significa que deva ser feito o desbloqueio de forma imediata, "de plano", fazendo com que o contraditório seja olvidado numa questão tão fulcral em processos executórios.

Não parece razoável (outro princípio processual) que se cumpra uma medida de liberação imediata de numerário, sem que seja dado às partes a possibilidade de manifestação prévia, pondo em risco a efetividade do
processo.

Neste ponto é importante observar que o princípio do contraditório também é matéria de ordem pública a ser resguardada pelos juízes. Portanto, também em casos de penhora positiva, e realizada a impugnação pelo executado (obviamente nos casos em que o juiz já não tenha feito o imediato desbloqueio), deve ser dado ao exequente a possibilidade de manifestar-se sobre o assunto.

Com recente posição do STJ, dificulta-se a recuperação de crédito na esfera judicial, principalmente dos contratos com valores não expressivos, inferiores aos 40 salários mínimos, o que faz com que muitos credores fiquem obrigados a conceder descontos agressivos em acordos ou, não raras vezes, a desistir dos processos executórios, principalmente quando não existam garantias reais.

Importante apontar que muitos dos credores prejudicados pela
impossibilidade de efetivação de penhora em contas bancárias não possuem robustez capaz de suportar a inadimplência por longos períodos, como: instituições financeiras, grandes empresas ou a própria fazenda pública. Muitas das execuções e procedimentos de cumprimento de sentença, esses últimos intentados após longos processos de conhecimento e ações de cobrança, têm particulares como credores, que veem a materialização de seu direito obstada com a aplicação de ofício da impenhorabilidade de valores em contas bancárias.

Outro ponto de destaque é que a aplicação automática do entendimento da Corte Cidadã pelos juízes pode gerar distorções que, na prática processual, acabam colidindo com outros princípios estampados também no atual Código de Processo Civil, como a duração razoável do processo e a solução de mérito, incluída a sua satisfação (artigo 4º); a proporcionalidade, a razoabilidade e a eficiência (artigo 8º). Isso porque tais princípios tiveram sua efetividade mitigada em razão da interpretação extensiva do STJ, pois em alguns casos privilegia-se não a dignidade da pessoa humana, mas o ardil do devedor, que, consciente da previsão legislativa e jurisprudencial, "protege" os valores excedentes ao mínimo legal em contas de familiares, holdings ou até aplicações em criptomoedas (principalmente se hospedadas no exterior) dificultando e, talvez, tornando impossível a satisfação do crédito de forma célere e efetiva.

No que pertine à proteção extensiva e genérica aos valores em contas
bancárias, criou-se um curioso paradoxo, pois nos casos em que os credores executam créditos inferiores ao limite impenhorável estipulado pelo legislador, raramente (ou nunca) verão o seu direito satisfeito por meio de bloqueios em contas bancárias. Por exemplo: em caso de haver uma execução de um crédito de R$ 30 mil, cuja penhora total recaia sobre conta-corrente ou aplicações, o referido valor poderá ser liberado de ofício pelo magistrado, sem ao menos ser franqueado ao exequente o contraditório.

Então, só restaria ao credor esperar pela ventura do devedor, já que apenas com o enriquecimento desse, que tenha conseguido amealhar valores superiores a 40 salários-mínimos em suas contas, é que tal saldo poderá ser penhorado; abaixo disso, não há o que ser feito. Ao credor cabe amargar um prejuízo enquanto observa ansioso e passivamente a fortuna do devedor para ver seu direito satisfeito.

O contexto acima apresentado é comumente experimentado por profissionais de recuperação de crédito, cuja prática do dia a dia o torna cético quanto ao êxito da ação, já que a efetivação do comando legislativo da impenhorabilidade teve o seu entendimento extremamente alargado pelo Superior Tribunal de Justiça, tornando a recuperação de crédito em verdadeiro desafio.

Não se ignora a importância da proteção à dignidade da pessoa humana do devedor nos processos executórios, mas imprescindível a sua harmonia com outros importantes princípios do processo civil. Parece necessária a adoção de uma análise crítica, evitando a aplicação desarrazoada e estanque que os tribunais vêm dando a casos em que fica evidente que a proteção do devedor acaba colocando em cheque a efetividade dos princípios da proporcionalidade, razoabilidade, eficiência e contraditório.

Por fim, necessário que os julgadores assegurem, conforme o artigo 10 do CPC, o contraditório em questões que caibam o pronunciamento de ofício, pois, do contrário, a inobservância a esse dispositivo poderá impor graves consequências aos credores em processos de execução, fazendo vicejar uma cultura contraproducente que ignora princípios relevantes e torna inócuas as ferramentas de cumprimento das relações obrigacionais quando entregues à tutela jurisdicional.

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