Opinião

Ciclo das políticas públicas e custo de direitos suspendem piso da enfermagem

Autor

  • Isadora Valido Ramalho

    é servidora pública federal analista judiciária do Superior Tribunal de Justiça assistente II no gabinete do ministro Gurgel de Faria e mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Direito Regulação e Políticas Públicas na Universidade de Brasília (UnB/STJ).

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12 de setembro de 2022, 11h12

A suspensão do pagamento do novo piso salarial da enfermagem por decisão monocrática do ministro Luís Roberto Barroso, no bojo da Medida Cautelar na ADI nº 7.222/DF (decisão na íntegra), submetida à ratificação pelo Plenário do STF em sessão virtual, a partir do último dia 9, está sendo confirmada  até o momento  pelo próprio ministro Roberto Barroso e pelos ministros Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Cármen Lúcia.

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O cerne da discussão está na alegada inconstitucionalidade da Lei nº 14.434/2022, que alterou a Lei nº 7.498/1986, para instituir o piso salarial nacional do enfermeiro, do técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e da parteira, abrangendo os trabalhadores do setor privado e os servidores públicos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, incluindo as suas autarquias e fundações.

A Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde), autora da mencionada ADI, argumenta que a Lei nº 14.434/2022 padece de inconstitucionalidade formal e material. Quanto aos vícios referentes ao processo legislativo, defende que a lei  que teve origem parlamentar  é de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo, por determinar o aumento na remuneração de servidores públicos. Afirma, ainda, que a superveniência da Emenda Constitucional nº 124/2022  que previu que lei federal instituirá pisos salariais profissionais acima mencionados (texto na íntegra)  não é capaz de sanar o vício de iniciativa, considerando que não há constitucionalidade formal superveniente.

Quanto aos vícios de inconstitucionalidade material, a CNSaúde arguiu, resumidamente, que a) o ato normativo desrespeita a auto-organização financeira, administrativa e orçamentária dos demais entes federativos, pois incide sobre o regime jurídico de seus servidores e interfere nos contratos celebrados com hospitais privados para a realização de procedimentos pelo SUS; b) o grupo de trabalho da Câmara dos Deputados não realizou a devida análise do impacto orçamentário e financeiro da medida, limitando-se a reunir dados acerca do custo do piso salarial nacional, sem avaliar a viabilidade de sua implementação, nem a sua repercussão sobre a qualidade e extensão dos serviços de saúde; c) o Poder Legislativo descumpriu o dever constitucional de prever dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes; e d) a lei violou os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, esvaziando a liberdade de contratação e negociação e desconsiderando as desigualdades regionais, a tendência ao desemprego daqueles que pretende beneficiar, a possível falência de diversas unidades de saúde e o repasse dos custos aos usuários.

Não obstante serem interessantíssimas as questões acerca da inconstitucionalidade formal da supramencionada lei, os argumentos que sustentam a tese de inconstitucionalidade material lançam luzes sobre dois assuntos importantes atualmente discutidos na comunidade jurídica: o ciclo das políticas públicas e o custo dos direitos.

Para Leonardo Secchi [1], o ciclo das políticas públicas divide o processo de sua elaboração em sete etapas principais, sequenciais e interdependentes: identificação do problema, formação da agenda, formulação de alternativas, tomada de decisão, implementação, avaliação e extinção. Porém, o próprio autor enfatiza que, na vida real, as mencionadas fases se misturam e que as fronteiras entre elas são incertas, sendo possível que a fase de avaliação aconteça antes da tomada de decisão, na etapa de formulação de alternativas.

Neste ponto, o aludido estudioso destaca a chamada avaliação ex ante como um instrumento de investigação sobre as consequências e os custos das alternativas, podendo o tomador de decisão se utilizar das predições para calcular as implicações econômicas das soluções sugeridas.

Fernando Meneguin e Rafael Silveira [2] ensinam que a avaliação de impacto legislativo (AIL) está inserida na perspectiva de avaliação ex ante e tem como dois dos seus principais propósitos a análise de custo-benefício e a análise econômica complementar para identificar, respectivamente, a relação entre os custos e os benefícios sociais que provavelmente advirão da proposição legislativa e qual o grau de concentração dos custos e benefícios, isto é, se os custos são disseminados e os benefícios concentrados.

Evidenciam, ainda, que a AIL federal nos estados, Distrito Federal e municípios é um instrumento hábil para equilibrar e fortalecer o pacto federativo no Brasil, uma vez que as ações do governo central podem interferir diretamente na autonomia dos entes subnacionais, principalmente quando se trata de política de valorização salarial implantada pela União que onera as despesas dos demais entes federativos, sendo uma reivindicação antiga destes a contrapartida financeira suficiente para fazer frente aos novos custos que lhes forem impostos.

Nessa perspectiva, também é importante trazer o pensamento de Stephen Holmes e Cass Sunstein [3] de que os direitos têm custos orçamentários e sociais diretos e indiretos e que não podem ser protegidos nem garantidos sem o financiamento e apoio públicos. Realçam que tal perspectiva tem sido ignorada, pois assumir que um direito tem um custo é reconhecer que temos que renunciar a algo para assegurá-lo.

Nas teorias anteriormente mencionadas, portanto, residem fundamentos para os argumentos da CNSaúde que foram acolhidos pelo Ministro Barroso para suspender o imediato pagamento do piso salarial nacional da enfermagem.

Pela leitura do inteiro teor da aludida decisão monocrática e do voto proferido pelo ministro relator, percebemos que o ministro Barroso identificou certa uniformidade no tratamento da questão da implementação de pisos salariais nacionais pela Corte Suprema.

Nesse ponto, destacou que a jurisprudência do STF é pacífica ao entender que, em regra, os pisos salariais não se aplicam aos servidores que possuam vínculo estatutário com a Administração Pública, entretanto, asseverou que a própria Constituição pode prever expressamente a competência da União para a fixação de um piso salarial nacional a carreias do serviço público.

O legislador constituinte derivado reformador pouco se utilizou do aludido instrumento. Os profissionais da enfermagem do serviço público são a terceira categoria beneficiada com o piso salarial nacional introduzido na Constituição (Emenda Constitucional nº 124/2022), antecedida apenas pelos profissionais da educação escolar pública (Emenda Constitucional nº 53/2006) e do magistério da educação básica pública (Emenda Constitucional nº 108/2020); e pelos agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias (Emenda Constitucional nº 63/2010).

No caso do piso salarial nacional dos profissionais do magistério público da educação básica, o ministro Barroso sublinhou que o STF, para declarar a constitucionalidade da Lei nº 11.738/2008, considerou o fato de que a Emenda Constitucional que previu o piso e o ato normativo que o instituiu forneceram os mecanismos financeiros necessários para que Estados e Municípios cumprissem a determinação legal.

Acrescentou também que a excepcionalidade da extensão dos efeitos do piso salarial aos servidores públicos estatutários se deve, principalmente, à autonomia dos entes federativos de definir a alocação de seus recursos, o que inclui a remuneração dos seus servidores, em respeito ao pacto federativo, tratado como cláusula pétrea em nossa Carta Maior.

E enfatiza que as Emendas Constitucionais nº 53/2006 e 63/2010 cumpriram o limite material de reforma, uma vez que definiram novos meios financeiros (por exemplo, o Fundeb) para que os entes subnacionais arcassem com o aumento de despesa decorrente dos pisos salariais, sem prejuízo das demais atribuições e dos compromissos constitucionais.

O ministro relator conclui, pela análise dos dados apresentados ao grupo de trabalho instituído na Câmara dos Deputados, que um dos grandes problemas do pagamento imediato do piso salarial nacional dos enfermeiros é o potencial de impacto nas finanças públicas, principalmente dos Estados e Municípios, uma vez que a maioria dos profissionais beneficiados integram os quadros de servidores dos aludidos entes e que eles são protagonistas na prestação dos serviços de saúde, possuindo diversos contratos com setor privado conveniado ao SUS, que serão afetados pela medida.

No que se refere exclusivamente ao setor privado, o ministro Barroso entendeu que a implementação do piso salarial determinado pela Lei nº 14.434/2022 poderá ferir a proporcionalidade em sentido estrito (quando a medida não se adequa aos fins almejados), considerando que a requerente e diversas outras entidades que pediram ingresso como amici curiae apontaram a possibilidade de demissão em massa dos profissionais da enfermagem no setor privado e a redução qualitativa e quantitativa da prestação de serviços de saúde hospitalares.

Por fim, o próprio ministro Barroso declara  nos moldes do que foi anteriormente exposto  que o processo de produção legislativa exige que seja apresentada uma justificativa sobre os custos e impactos antecipados da medida proposta, o que, no entendimento do ministro relator, não foi devidamente concretizado tanto pelo Poder Legislativo  quando da aprovação do projeto  quanto pelo Poder Executivo  quando da sanção do ato normativo.

Nessa perspectiva, a suspensão cautelar do pagamento do piso salarial da enfermagem pelo STF mostra à comunidade jurídica o quanto a qualidade na formação das políticas públicas  nesse caso, especificamente, na avaliação de impacto legislativo  e a reflexão profunda acerca do custo dos direitos serão temas determinantes para a efetivação concreta dos anseios sociais, ainda que sejam considerados relevantes e justos.


[1] SECCHI, Leonardo. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. 2. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2013. p. 43/73.

[2] MENEGUIN, Fernando Boarato; SILVA, Rafael Silveira e. Avaliação de impacto legislativo: cenários e perspectivas para sua aplicação. Brasília: Senado Federal, 2017.

[3] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. O custo dos direitos: Por que a liberdade depende dos impostos. São Paulo: Martins Fontes, 2019.

Autores

  • é servidora pública federal, analista judiciária do Superior Tribunal de Justiça, assistente II no gabinete do ministro Gurgel de Faria e mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas na Universidade de Brasília (UnB/STJ).

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