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Consultor Jurídico

Opinião: Advocacia pública e ajuizamento da ação de improbidade

11 de setembro de 2022, 6h37

Por Bernardo Strobel Guimarães, Caio Augusto Nazário de Souza, Luis Henrique Braga Madalena

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O STF, por maioria, manteve a legitimidade ativa das pessoas jurídicas interessadas para o ajuizamento da ação de improbidade, bem como determinou que a advocacia pública não está obrigada — e sim autorizada — a fazer a defesa do agente público com relação ao qual emitiu o parecer atestando a legalidade prévia dos atos praticados, caso ele venha a responder ação por improbidade. Nesse contexto, o objetivo do presente artigo é explicar o que ficou decidido para, ao final, tecer algumas considerações de cunho crítico.

A decisão foi tomada nos autos das ADIns nº 7.042/DF, ajuizada pela Associação dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape) e nº 7.043/DF, ajuizada pela Associação Nacional dos Advogados Públicos Federal (Anafe).

Basicamente, dois dispositivos da Lei nº 8.429/92, ambos com redação dada pela Lei nº 14.230/2021, tiveram sua constitucionalidade questionada: o caput do artigo 17, que legitimou somente o Ministério Público para o ajuizamento da ação de improbidade, e o § 20 do artigo 17-D, a partir do qual a assessoria pública que emitir parecer atestando a legalidade de ato do administrador ficou obrigada a defendê-lo em eventual ação de improbidade (§ 20 do artigo 17).

Inicialmente, o relator das ações, ministro Alexandre de Moraes, decidiu de forma monocrática parte da cautelar requerida pelas associações para, entre outras determinações, dar interpretação conforme à Constituição ao caput e §§ 6-A, 10-C e 14 do artigo 17 da Lei nº 8.429/92, no sentido de existir uma competência concorrente entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação de improbidade.

No julgamento, finalizado no último 31/8, o relator votou no mesmo sentido. Segundo ele, "a legitimidade da atuação do Ministério Público na defesa do patrimônio público e social é extraordinária, porque a legitimidade ordinária para proteção do seu próprio patrimônio é da Fazenda Pública". Além disso, seguiu ele, a supressão da legitimidade ativa das pessoas jurídicas afetadas representa uma grave limitação ao acesso à justiça, além de um significativo retrocesso quanto ao imperativo constitucional de combate à improbidade administrativa.

Votaram com o relator os ministros André Mendonça, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux. Os ministros Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar apresentaram voto divergente, mas que não prevaleceu. Segundo eles, a exclusividade do Ministério Público para o ajuizamento das ações de improbidade não afasta a legitimidade de entes públicos para deflagrarem ações civis públicas de ressarcimento ao erário, de modo que a legitimidade ativa é concorrente somente no que se refere à busca pela recomposição do erário.

No que toca ao § 20 do artigo 17, a votação foi unânime. O entendimento que prevaleceu foi no sentido de que é inconstitucional a obrigatoriedade de defesa, o que não impede que as administrações públicas federal, estaduais e municipais, mediante previsão legal, autorizem a representação judicial do agente público cujos atos foram atestados como válidos.

Feita essa breve exposição, importante agora refletirmos sobre essa questão, em especial quanto a legitimidade exclusiva do Ministério Público. Isso aqui será feito a partir de uma premissa principal: ao juiz não é lícito substituir a decisão dos legisladores por aquilo que ele, em seu íntimo, acha que é o mais correto, de forma que a inconstitucionalidade de um texto normativo é algo bem diferente de uma mera discordância por parte do juiz com relação ao decidido pelos legisladores. Nesse contexto, parece claro que os ministros possuem discordâncias com a opção levada a efeito pelo legislador, mas seria hipótese de inconstitucionalidade? Achamos que não.

Os principais argumentos levantados pelas associações no tocante à inconstitucionalidade das reformas trazidas pela Lei nº 14.230/2021 foram: a) violação ao pacto federativo, na medida em que tal norma interferiu na autonomia dos estados e, especialmente, nas competências das advocacias públicas; b) violação os princípio da vedação ao retrocesso social e ao direito fundamento à probidade, haja vista que retirar a competência das pessoas jurídicas afetadas de ajuizar a ação é um retrocesso no combate à corrupção. Como se percebe de pronto, nada disso tem qualquer relação imediata com a discussão de fundo.

As modificações legais apenas reforçaram a natureza sancionatória da Lei de Improbidade (artigo 17-D), o que retira por consequência a legitimação ativa de terceiros para o ajuizamento da causa. Não há o que se falar, assim, em aplicação do disposto no artigo 129, § 1º, da Constituição, segundo o qual existe uma competência concorrente entre o Ministério Público e os terceiros interessados para ajuizamento das ações civis coletivas destinadas à proteção dos direitos difusos e coletivos. Aliás, sempre nos pareceu que o MP deveria ser o único legitimado para o ajuizamento da ação de improbidade, haja vista as garantias das quais seus integrantes são dotados.

O artigo 17-D da Lei nº 8.429/92, com redação dada pela Lei nº 14.230/21, deixa claro que a ação de improbidade possui natureza puramente repressiva e sancionatória e, exatamente por isso, em nada se confunde com a ação civil pública. A ação de improbidade, nesse sentido, não se encontra no rol de ações civis referido pelo § 1º do artigo 129 da Constituição. Por esses e outros motivos, não há inconstitucionalidade em atribuir ao Ministério Público, instituição incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais intransponíveis (artigo 127 da Constituição), legitimidade ativa exclusiva para o ajuizamento da ação de improbidade.

De qualquer forma, as alterações trazidas pela Lei nº 14.230/2021 não prejudicam em nada os interesses da administração. Primeiro porque, como destacaram os ministros Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, não há qualquer impedimento legal ou constitucional para que os entes públicos ajuízem ações destinadas à reparação dos danos sofridos, como a ação civil pública (artigo 1º, inc. VIII, da Lei nº 7.347/85). Segundo porque, existindo indícios de atos de improbidade o ente prejudicado pode, e deve, representar ao Ministério Público, que adotará as medidas cabíveis (artigo 7º da Lei nº 8.429/92).

Em resumo, o que fez a Lei nº 14.230/2021 foi apenas excluir a legitimidade ativa da pessoa jurídica interessada para ajuizar ações de improbidade. Isso não quer dizer, porém, que o gestor público virou mero espectador do combate à corrupção. Longe disso. A ele ainda compete, no exercício das suas funções, instaurar o devido processo administrativo, representar ao Ministério Público quanto tiver conhecimento de indícios de atos de improbidade, além de, se for o caso, ajuizar ações de reparação com vistas à recomposição do patrimônio público. A par disso, a medida evita a utilização da ação de improbidade para fins político-partidários, algo bastante factível no nosso ambiente político, especialmente em se tratando de discussões regionalizadas e aquelas promovidas em pequenos municípios.

Ademais, não podemos deixar de considerar que a escolha legislativa, dentre outras questões, se preocupou com os efeitos econômicos que a atribuição da legitimidade exclusiva ao Ministério Público iria gerar. Isso porque, com essa medida, o legislador optou por centralizar e, assim, conferir maior especialidade a uma só instituição o que, por consequência, acaba por gerar um menor custo ao erário, evitando o dispêndio de valores de forma descentralizada perante todas as procuradorias da União, estados e municípios, que inevitavelmente teriam de superar, caso a caso, a chamada curva de aprendizado em matéria de improbidade.

Podemos discutir, então, se a decisão do legislador de atribuir ao Ministério Público a exclusividade para o ajuizamento da ação de improbidade é a melhor possível — acreditamos que sim. Essa discussão, porém, compete à sociedade e ao Poder Legislativo, jamais a um órgão não eleito como o Poder Judiciário. A este compete, puramente, avaliar a conformidade da legislação com os ditames estabelecidos na Constituição, e não com aquilo que seus membros acreditam ser o mais correto ou o mais justo. O controle de constitucionalidade não significa a possibilidade de o juiz, a partir de seus próprios interesses, tomar uma decisão em nome de toda a sociedade, especialmente porque esta não o avalizou para tanto.

Em uma palavra final: a opção levada a efeito pelo legislador é legítima e, no fundo, traz maior racionalidade para a aplicação das sanções previstas na Lei de Improbidade ao atribuir tal função exclusivamente ao órgão dotado pela Constituição com a competência de proteger os interesses sociais. No mais, é preciso tomar com muita reserva a utilização da jurisdição constitucional como uma espécie de superego do legislador.