Opinião

Improbidade administrativa e retroatividade da lei mais benéfica

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9 de setembro de 2022, 20h31

Ordinariamente aplicado na esfera penal, em decorrência da garantia estatuída no artigo 5º, XL, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu", o princípio da retroatividade da lei mais benéfica ganhou novos contornos com o advento da Lei nº 14.320/2021.

Isto porque a novel legislação de improbidade administrativa, além de modificar significativamente o rol de condutas descritas como ímprobas, expressamente prevê, em seu artigo 1º, §4º, a aplicação dos princípios atinentes ao Direito Administrativo Sancionador ao sistema por ela disciplinado, dentre os quais se destaca a retroatividade da lei mais benéfica.

Não obstante, após a implementação do novo regime jurídico de improbidade administrativa, instaurou-se verdadeira controvérsia no que diz respeito à possibilidade de aplicação retroativa das alterações trazidas pela Lei nº 14.230/2021, sobretudo no que concerne à extinção da improbidade culposa e alteração dos prazos prescricionais.

A celeuma, neste caso, relaciona-se intrinsecamente com a natureza das normas que emanam do sistema de responsabilização de agentes públicos e privados cujas condutas atentem contra a probidade administrativa, ora associadas à principiologia do Direito Penal, ora alocadas unicamente no âmbito do Direito Administrativo Sancionador.

Válido dizer que, mesmo antes da reforma da LIA, a doutrina administrativista já se debruçava sobre o tema, possuindo renomado entendimento sufragando a tese de similitude entre os regimes e possibilidade de aplicação retroativa da norma sancionadora mais benéfica, tendo em vista a ausência de distinção substancial entre as infrações administrativas e as infrações de natureza penal [1].

Essa argumentação, cumpre salientar, perpetuou-se com o avançar do tempo, pois, apesar das tentativas de distinção entre os dois campos do Direito, "os dois ramos jurídicos decorrem de um ius puniendi estatal único, inexistindo diferenças ontológicas, mas apenas de regimes jurídicos, em conformidade com a discricionariedade conferida ao legislador" [2].

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, essa posição foi adotada no julgamento do Recurso em Mandado de Segurança nº 37.031/SP [3], em 2018, no qual a Corte assentou que, em se tratando de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor o reconhecimento da retroatividade, pois o princípio insculpido no artigo 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o Direito Administrativo Sancionador.

Nessa linha, ainda que haja consenso quanto à independência entre as esferas administrativa e penal, ao teor da previsão contida no artigo 37, §4º, da CRFB, não há como apartar absolutamente o tratamento conferido aos ilícitos administrativos daquele dispensado aos ilícitos criminais, principalmente porque ambos possuem sanções de caráter punitivo e repressivo, diferenciando-se, neste particular, dos ilícitos civis, que estipulam sanções puramente ressarcitórias.  

Não se pode olvidar, contudo, a existência de corrente doutrinária que há muito defende a irretroatividade da lei mais benéfica na seara administrativa, sob o argumento de que a previsão constitucional que estabelece a retroatividade da lei penal constitui regra de exceção, atrelada às peculiaridades do Direito Penal, cujas sanções podem acarretar o cerceamento da liberdade do acusado [4].

Acolhendo esse entendimento, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em 2017, ao julgar o Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.019.161/SP [5], de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, assentou que a retroatividade da norma mais benéfica em favor do réu é um princípio exclusivo do Direito Penal, onde está em jogo a liberdade humana.

Com a vigência da nova LIA em outubro de 2021, como dito, a controvérsia voltou à tona, sobretudo porque o novo regramento não estabeleceu regras de transição, havendo posicionamentos admitindo expressamente a retroatividade das alterações legislativas no âmbito dos Tribunais de Justiça de São Paulo e Minas Gerais [6].

Diante desse panorama de insegurança jurídica, o STF foi chamado a dirimir a questão concernente à (ir)retroatividade das disposições constantes da Lei nº 14.230/2021, especialmente no que toca à exigência da presença do elemento subjetivo dolo para a configuração do ato de improbidade administrativa, e, ainda, retroatividade nos novos marcos prescricionais, o que resultou na afetação do Agravo em Recurso Extraordinário nº 843.989/PR (Tema 1199), cujo julgamento foi concluído em 18/08/2022.

Na ocasião da análise do Tema 1199, inesperadamente  ou não , a Corte Suprema, relegando a aplicação da principiologia do Direito Penal ao sistema de improbidade, estabeleceu que as alterações da LIA não possuem efeitos retroativos, exceto em relação às ações em curso que discutam a improbidade culposa, modalidade que não mais subsiste no atual ordenamento jurídico.

Noutros termos, amparado em voto de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, o STF instituiu uma espécie de "irretroatividade parcial" da norma, ao argumento de que, ante a revogação do ato de improbidade culposo, restaria inviável processo ou mesmo decreto condenatório embasado em conduta não mais tipificada legalmente.

Quanto ao novo prazo prescricional, de oito anos, e a prescrição intercorrente – no curso do processo, a Corte determinou a impossibilidade de retroação, mesmo para processos em curso.

Nesse contexto, os réus que respondam a ações de improbidade ajuizadas com fulcro no revogado artigo 10 da LIA (modalidade culposa) podem pleitear a extinção do processo, ao passo que pessoas definitivamente condenadas pelas mesmas condutas não podem ser beneficiadas pela superveniência de alteração legislativa, ainda que o feito encontre-se em fase de execução das penas.  

A extinção do processo em razão da caracterização de improbidade culposa, no entanto, não se dará de forma automática, pois o STF acenou a possibilidade de modificação da capitulação culposa para a dolosa, nos casos em que a narrativa inicial é imprecisa, o que pode demandar dificuldades de ordem prática.

Por outro lado, em que pese a atribuição de efeitos retroativos à revogação da improbidade culposa deva ser comemorada, a inaplicabilidade do princípio da retroatividade da norma mais benéfica ao Direito Administrativo Sancionador é temerária, pois, além de contrariar o que a própria legislação estatui (artigo 1º, §4º, da LIA), representa a superação de construção doutrinária fortemente defendida.

De igual maneira, é questionável a premissa utilizada pelo ministro Alexandre de Moraes em seu voto, segundo a qual o ato de improbidade administrativa tem natureza civil, distanciando-se, por essa razão, da seara penal. Isto porque o artigo 17-D da LIA é claro ao enfatizar o caráter repressivo e sancionatório do regramento, dispondo, inclusive, que "a ação por improbidade administrativa não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas".

Apesar das críticas tecidas, de modo geral, o resultado do julgamento "agradou gregos e troianos". Não permitiu a retroatividade total das alterações legislativas mais benéficas, como esperado pelo establishment, mas também não vedou totalmente os efeitos da legislação em relação aos fatos pretéritos, como ambicionava parte do Ministério Público.

Sabe-se, porém, que esse foi apenas o primeiro encontro do STF com a temática da reforma da legislação de improbidade administrativa, porquanto já existem outras demandas discutindo a LIA no âmbito da Suprema Corte. Nos próximos capítulos, será possível averiguar se a postura da Corte, no que tange ao afastamento da principiologia do Direito Penal, efetivamente se sustentará.

 


[1] OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Administrativo, 32ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2015.

[2] NEVES, Daniel; OLIVEIRA, Rafael. Comentários à Reforma da Lei de Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2022

[3] RMS n. 37.031/SP, relatora ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 8/2/2018, DJe de 20/2/2018

[4] OSORIO, Fábio. Direito Administrativo Sancionador, 5ª ed., São Paulo: RT, 2015.

[5] ARE 1019161 AgR, relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 02/05/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-099 DIVULG 11-05-2017 PUBLIC 12-05-2017

[6] TJSP; Apelação Cível 3010759-26.2013.8.26.0451; relator (a): José Luiz Gavião de Almeida; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Foro de Piracicaba 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 15/12/2021; Data de Registro: 15/12/2021 e TJMG  Apelação Cível 1.0271.15.003854-2/003, relator(a): desembargador (a) Renato Dresch, 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 03/02/0022, publicação da súmula em 07/02/2022

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