Opinião

Os perigos de se transformar o STF em inimigo ficcional, de Georges Abboud

Autores

4 de setembro de 2022, 12h09

Acaba de ser lançada pela Editora Revista dos Tribunais o livro "Ativismo Judicial: Os perigos de se transformar o STF em inimigo ficcional", do professor Georges Abboud. O livro conta com prefácio de Reinaldo Azevedo e apresentação do jurista e advogado Walfrido Warde, duas de nossas figuras mais comprometidos com uma efetiva defesa da democracia.

Spacca
Sem quaisquer dúvidas, o livro vem em boa hora: é razão de grande alívio ver a publicação de tão contundente defesa do STF num momento em que o país vê as maiores possibilidades de aventuras golpistas desde a redemocratização. Aliás, de há muito alunos, professores e leitores em geral dos trabalhos de Abboud aguardavam uma obra monográfica sobre ativismo judicial, tema ao qual se dedica desde a primeira edição de seu amplamente conhecido Processo Constitucional Brasileiro.[1]

Conforme o próprio autor declara em sua nota para a primeira edição, Abboud sentiu a necessidade de destacar do "capítulo 10" do "Processo" os itens dedicados ao ativismo judicial para, devidamente atualizados, revistos e reorganizados, dar-lhes uma publicação autônoma que permita maior sistematização científica e crítica casuística. Nada obstante, a atualidade e novidade da obra evidenciam-se verdadeiramente na segunda parte do título:  "Os perigos de se transformar o STF em inimigo ficcional".

Livros sobre ativismo judicial existem aos montes no mercado editorial brasileiro contemporâneo. Alguns tornaram-se verdadeiros clássicos da discussão sobre o assunto, da identificação de suas causas no caso brasileiro e de seus elementos mais pronunciados, enquanto outros são apenas destilações de ressentimento e oportunismo, aos quais Abboud dedica algumas linhas antes de confiná-los ao seu lugar merecido: o esquecimento.[2]

Todos os escritos de Abboud sobre o ativismo judicial se enquadram no primeiro grupo de obras. Seu mais recente Ativismo Judicial acentua um elemento que distingue em muito o tratamento que Abboud sempre deu ao assunto: uma expansão na importância do assunto numa democracia constitucional que é evidenciada pela desintrodução que o autor faz no "cap. 2" da obra. Explicamos.

Tradicionalmente, o ativismo judicial em si é encarado desde sua perspectiva deletéria à democracia; afinal, trata-se em essência de uma "atuação dos juízes a partir de um desapego da legalidade vigente (…) para fazer prevalecer, por meio da decisão, sua própria subjetividade".[3] É o Judiciário que se agiganta e invade as esferas próprias dos outros poderes a partir de uma atuação não constrangida pelo direito que frustra as perspectivas weberianas de racionalidade da dominação política.

Abboud sem sombra de dúvida dá essa tônica em suas análises e em momento algum deixa de — crítica, fundamentada e elegantemente — se opor às decisões efetivamente ativistas do STF.

O curso de suas investigações, contudo, conduzem-no à constatação de um outro fenômeno, a saber, o de que o ressentimento, travestido de crítica ao pretenso ativismo judicial do STF, se tornou um excelente negócio. Noutras palavras, a circunstância de que a transformação da Corte Suprema em inimigo ficcional é um mal democrático tão grande quanto o próprio ativismo.

Como de costume, Abboud deu muita atenção à caracterização específica do ativismo a partir de seus elementos históricos de conformação ("cap. 4"), fixação de uma tipologia que didaticamente evidencie certos traços ("cicatrizes") dominantes dos desvios da legalidade ("cap. 7"), e da observação desses desvios à luz da função que a tradição da jurisdição constitucional atribuiu às Cortes Constitucionais (especialmente "caps. 3, 4 e 5").

O livro que agora resenhamos, contudo, faz tudo isso dentro de um contexto especificamente brasileiro. É uma resposta à (não) inteligência doutrinária que viu na crítica rasa, grosseira e golpista ao STF um bom mercado:

"Contudo, parcela significativa, pretensamente doutrinária, aprendeu não só que o STF era muito mais cordial e aberto às críticas do que se imaginava: descobriu-se, também, que criticá-lo era um ótimo negócio, em amplo sentido-inclusive de viés econômico. Reiteramos uma vez mais, setores doutrinários (sic) passaram a legitimar cabimento de impeachment por discordância de votos dos Ministros, além da ideia campeã dos absurdos das Forças Armadas como poder moderador. Defender o STF, atitude necessária, passou a ser vista como ação sacrílega."[4]

Desse modo, Abboud vai além da denúncia do ativismo como antidemocrático per se ao demonstrar que seu uso irrestrito para a criação de inimigos ficcionais é também uma ameaça democrática. É nesse sentido que os "caps. 1" e a "conclusão" devem ser lidos como simétricos: inicia-se com a caracterização do STF como inimigo ficcional para concluir pela necessária defesa da Suprema Corte contra a "estupidez golpista", termo que cunhou a partir de Robert Musil.

Diferentemente de tantas outras obras sobre o assunto, o livro em comento não se restringe ao contexto normativo da Constituição e muito menos ao ativismo em certas "áreas" do direito; a perspectiva de Georges abarca a circunstância política brasileira atual, de modo a se caracterizar, a um só tempo, como crítica do tempo presente e abertura de melhores perspectivas para o futuro.

Como é típico de seus escritos, Abboud não se limita a identificar um problema sem também apontar possíveis soluções ("cap. 6"), que passam por uma assunção normativa da teoria da decisão, desmistificação da atuação do Judiciário e um retorno à "dignidade da legislação" (Jeremy Waldron) que implica uma renovada crença na política institucional.

Através das páginas de sua nova obra, Abboud nos mostra que não há Corte Constitucional no mundo que não padeça de uma certa "crise de identidade" desde o embate Kelsen/Schmitt[5]; afinal, todas são o ponto de convergência institucional do direito e da política, encarregadas que são de proteger e dar cumprimento às Constituições, documento que o sociólogo Niklas Luhmann compreendeu como o acoplamento estrutural entre os sistemas jurídico e político na sociedade. Nesse ponto, identificamos a todo tempo a profunda influência exercida pela obra do sempre brilhante e essencial Lenio Streck.

É bem verdade que a temática constitucional aparece hoje no centro dos debates jurídico políticos: Bruce Ackerman iniciou um longo e alentado estudo a respeito dos diferentes fundamentos de legitimidade das constituições ao redor do mundo.[6] Chris Thornhill fez o diagnóstico sociológico do populismo constatando que uma ampla gama de direitos fundamentais "herdados" dos direitos humanos e introjetados nos ordenamentos jurídicos nacionais sem a mediação deliberativa do povo pode enfraquecer a cidadania.[7] Steven Levitsky e Daniel Ziblatt desde 2018 nos alertam para rupturas democráticas iniciadas por erosões no Estado de Direito.[8] Gunther Teubner procura expandir o potencial constitucional identificado por Luhmann à desparadoxação de outros sistemas sociais.[9] Habermas ainda aposta numa Constituição do direito internacional.[10] Em Poland’s Constitutional Breakdown Wojciech Sadurski mostra como justamente o descrédito forjado do Judiciário propiciaram a erosão democrática na Polônia.[11]

No ápice dessa montanha teórica, o filósofo de Königsberg observa seu projeto de Paz Perpétua cada vez mais distante.

Ainda assim, uma parcela significativa do debate jurídico nacional parece não fazer a menor ideia da função democrática que uma Constituição cumpre numa sociedade ou da necessidade de, para tanto, a jurisdição constitucional exercer um papel que é por vezes contramajoritário.

Não há vertente teórica democrática que fundamente a posição (rectius, opinião) baseada num suposto liberalismo dispensado que coloca o povo como fiel da balança da democracia. Kelsen já nos alertava: "Na verdade, a população de um Estado está dividida em vários grupos de interesses mais ou menos opostos entre si. A ideologia de um interesse coletivo de Estado é usada para ocultar esse inevitável conflito de interesses."[12]

A direita — sim, em especial a direta — esquizofrênica promove uma cortina de fumaça semântica que procura obscurecer sentidos consolidados de termos como constituição, democracia, Estado e ativismo judicial. Só um decisionismo schmittiano — antiliberal[13], vale mencionar — sustentaria argumentos tão esdrúxulos contra o STF.

Nesse sufocante caos, Georges Abboud nos apresenta um livro que é simultaneamente um diagnostico e um caminho. Foi uma honra para os autores desta breve resenha acompanhar o processo de elaboração de mais uma obra.


[1] Georges Abboud, Processo Constitucional Brasileiro, 5. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.

[2] Cf. Georges Abboud, Ativismo Judicial: Os Perigos de se Transformar o STF em Inimigo Ficcional, 1. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 111.

[3] Ibidem, pp. 23-25.

[4] Georges Abboud, Ativismo Judicial, cit., p. 223.

[5] Cf. por todos Dieter Grimm, Verfassungsgerichtsbarkeit, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2021, pp. 105 e ss.

[6] Bruce Ackerman, Constituições Revolucionárias: Liderança Carismática e Estado De Direito, trad. Pedro Davoglio, São Paulo: Contracorrente, 2022.

[7] Chris Thornhill, Crise Democrática e Direito Constitucional Global, trad. Diógenes Moura Breda e Glenda Vicenzi, São Paulo: Contracorrente, 2021.

[8] Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, How Democracies Die, Crown Publishing Group, 2018.

[9] Gunther Teubner, Fragmentos Constitucionais: Constitucionalismo Social na Globalização, 2. Ed., São Paulo: Saraiva, 2020.

[10] Cf. Jürgen Habermas, O Ocidente Dividido: Pequenos Escritos Políticos X, trad. Bianca Tavolari, São Paulo: UNESP, 2016; e Jürgen Habermas, A Inclusão do Outro: Estudos de Teoria Política, trad. Denilson Werle, 2018.

[11] Wojciech Sadurski, Poland’s Constitutional Breakdown, Oxford: Oxford University Press, 2019

[12] Hans Kelsen, Teoria Geral do Direito e do Estado, 5. Ed., Martins Fontes, trad. Luís Carlos Borges, p. 267.

[13] Cf. Georges Abboud, Direito Constitucional Pós-Moderno, 1. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, Parte I.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!