Diário de Classe

A vontade de eficiência e a relevância na EC nº 125

Autor

  • Óliver Vedana

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos bolsista Proex/Capes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos especialista em Direito Processual Civil e pós-graduando em Teoria do Direito Dogmática Crítica e Hermenêutica ambos pela ABDConst.

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3 de setembro de 2022, 15h37

Aprovada em 15 de julho deste ano, a Emenda Constitucional nº 125 limitou os recursos a serem apreciados pelo Superior Tribunal de Justiça, exigindo ao recorrente a demonstração de relevância das questões de direito infraconstitucionais objeto do recurso, com exceção das matérias reconhecidas pela sua relevância presumida, transcritas no §2º do artigo 105 da Constituição Federal.

Já no parecer de relatoria da deputada Bia Kicis (PL-DF), pela admissibilidade da então PEC nº 39/2021, proferido na seara da Comissão Especial (Cesp), consta como uma das justificativas para sua aprovação a eficiência que a barreira da relevância trará ao Tribunal da Cidadania, ao reduzir quantitativamente o número de recursos. A eficiência almejada é baseada, segundo o relatório e a sua fundamentação, no princípio constitucional inscrito pelo artigo 37 da Constituição Federal, imposta à Administração pública.

Essa redução quantitativa busca consequências diretas na celeridade processual, na duração razoável do processo, na otimização nos julgamentos, e na uniformização da interpretação da legislação federal, que, ao fim e ao cabo, tornarão o STJ uma corte mais eficiente, conforme muitos dos defensores da relevância.

Essa equação menos processos = maior eficiência, bem como a diferenciação (necessária) entre eficiência quantitativa e qualitativa, já foram bem debatidas por Lenio Streck (aqui [1] e aqui [2]). Por essa razão, o foco aqui tratado se refere a um fenômeno crescente que merece atenção, o da busca legítima pela eficiência do Poder Judiciário.

A filosofia pode nos socorrer para compreendermos a dimensão desse fenômeno.

Tratado como o último princípio epocal da modernidade [3], na vontade de poder em Nietzche em que "o traço fundamental da realidade é a vontade de poder, e toda a correção deve se ajustar à ela" [4]. Heidegger ensina que a vontade de poder é o estágio prévio da vontade de vontade, que quer a si mesma [5].

Fazendo uma associação com o processo civil, L. A. Becker relaciona a vontade de poder nietzschiana com a vontade de verdade, destacando que Nietzsche, em sua crítica, passa a questionar não a verdade de um conhecimento, mas sim o próprio valor que a ciência dá à verdade [6].

O autor traz esse debate para um cenário onde o processo civil está preso aos juízos de certeza, e à obsessão à verdade/certeza, no qual chegou-se ao ponto de a busca pela verdade ter mais valor que a própria verdade, apontando, ainda, três razões pelas quais a crítica à vontade de verdade importa para o processo civil [7]. Em suma, a "prevalência da verdade como valor superior pela afirmação tanto do caráter fundamental da aparência quanto da exigência de superação da oposição essência-aparência, verdade-ilusão" [8].

Nessa relação entre a vontade de verdade e o processo civil feita por Becker, o autor chama atenção para o fato de que, "para o cientista e para o jurista, importa mais o ritual de busca da verdade" [9], o que importa não "é aquela satisfação que, para os homens, se chama 'verdade', mas a 'operation', o procedimento eficaz" [10].

A busca da verdade torna-se um fim em si mesma.

E o que a vontade de poder e a vontade de verdade tem a ver com a relevância no recurso especial?

Quando Roberto Machado diz que "a vontade de verdade é a crença, que funda a ciência, de que nada mais é necessário do que o verdadeiro. Necessidade não de que algo seja verdadeiro, mas de que seja tido como verdadeiro" [11], fica mais fácil fazer o paralelo com a busca constante da eficiência pelos tribunais.

Antes dos precedentes, já nos valíamos das súmulas em geral, e, em especial, da Súmula 7. A admissibilidade por parte dos tribunais estaduais exigida pelos artigos 1.030 e 1.042, ambos do CPC, também caminharam no mesmo sentido limitar a remessa de recursos especiais para o STJ [12]. Como bem apontado por Lenio Streck (aqui [13]), já havia, antes da EC nº 125, uma certa "relevância embutida" nas ações apreciadas pelo Tribunal da Cidadania.

Vários são os caminhos com o mesmo objetivo. Desfrutar de mais mecanismos para melhorar a jurisdição pode, sim, corresponder a uma melhor jurisdição, mas é necessário um certo grau de atenção para que a busca por novas formas não seja um fim em si mesma. Quando a eficiência qualitativa é alijada para um papel coadjuvante e não co-originário com seu viés quantitativo, por exemplo, esse risco aumenta. Lenio Streck está escrevendo sobre essa relação entre eficiência quantitativa e qualitativa, e a importância de que ambas sejam levadas à sério na mesma proporção.

A qualidade da jurisdição não parece ser uma consequência automática da redução quantitativa de recursos de há muito denunciada por Streck [14]. O sistema de precedentes [15] está aí para comprovar que, mesmo que seu mote principal tenha sido uniformizar a jurisprudência brasileira valendo-se da coerência e integridade, renovamos nossas esperanças no filtro da relevância para… "uniformizar a interpretação da legislação federal" [16].

Não deveríamos depositar nossas esperanças na relevância para uniformizar a jurisprudência e trazer maior segurança jurídica se temos (ou não?) um sistema de precedentes que foram desenvolvidos justamente para isso. Também não parece coerente incluir mais um filtro para reduzir o número de processos quando já possuíamos uma quantidade considerável deles. A não ser que admitamos que nossas tentativas pretéritas falharam.

Se falharam, por que falharam? Criar uma nova barreira, com os mesmos fundamentos e os mesmos fins das anteriores, é a solução? Corremos o risco de, na busca pela eficiência, tratarmos coisas velhas como novas, apenas mudando a sua nomenclatura.

Valendo-se das lições de Roberto Machado, nesses casos, correremos a passos largos para um perigoso movimento em que as medidas tomadas não sejam realmente eficientes, mas tidas como eficientes. E isso bastará, afinal, a próxima medida em busca de mais (?) eficiência será a solução.

Nesse contexto, o fenômeno da busca pela eficiência possui o potencial de se tornar um fim em si mesma (se já não é). A vontade de eficiência, tal qual a vontade de poder em Nietzsche, tem assumido o protagonismo das mudanças institucionais e estruturais. Se identificarmos mal o(s) problema(s), e não nos atentarmos aos perigos que que esse fenômeno pode gerar no processo civil, o querer efetivo se sobreporá à própria eficiência, e cada vez mais e mais direitos e garantias fundamentais (como o acesso à justiça) serão afetados.

 


[1] STRECK, Lenio. O que restará do recurso especial se aprovada a PEC da Relevância? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 21 out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-21/senso-incomum-restara-recurso-especial-aprovada-pec-relevancia. Acesso em: 31 ago. 2022.

[2] STRECK, Lenio. Emenda da Relevância e a exclusão das causas "irrelevantes" no STJ. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 21 jul. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-21/senso-incomum-emenda-relevancia-exclusao-causas-irrelevantes-stj#_ftn6. Acesso em: 25 ago. 2022.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2017. p. 498

[4] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 96.

[5] "O estágio prévio da vontade de vontade é a "vontade de poder". A vontade de vontade é a vontade que quer a si mesma. O que quer a vontade? O querer. O que é isso? O trazer-se-para-diante-de-si do re-presentável. Esse é o todo dos objetos; os objetos são o ente no interior da verdade da certeza, isto é, do dispor-se de algo constatado. A pura objetivação calculadora determina o ser do ente como objetividade. Na medida, porém, em que essa objetivação é vontade de vontade, o ser mesmo tem a essência da vontade. A vontade de vontade é aquilo que se submete a si mesmo como o fundamento de si mesmo, isto é, o sujeito" HEIDEGGER, Martin. O acontecimento apropriativo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. p. 111.

[6] L. A. BECKER (org.). Qual é o jogo do processo? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012. p 290.

[7] Ibid, p. 285-296.

[8] MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. 3ª ed. rev. – Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017. p. 49.

[9] L. A. BECKER (org.). Op. Cit., p. 292.

[10] ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do conhecimento. Rio de Janeiro; Zahar, 1985. p. 20.

[11] MACHADO, Roberto. Op. Cit., p. 107-108.

[12] Com base no Relatório Estatístico do STJ, Lenio Streck apontou que "A corte divulgou que ano passado a ação mais ajuizada foi o agravo em recurso especial, com um total de 223.355 recursos interpostos. Destes, apenas 4,2% (9.342) foram providos. Os que sequer foram conhecidos ficaram em 57% (128.943) e no universo dos desprovidos, 34% (76.751). Para se ter uma noção da discrepância comparando-se as demais ações: a que ficou em segundo lugar como mais ajuizada no tribunal foi o HC, com 84.678 impetrados" (STRECK, Lenio. Emenda da Relevância e a exclusão das causas "irrelevantes" no STJ. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 21 jul. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-21/senso-incomum-emenda-relevancia-exclusao-causas-irrelevantes-stj#_ftn6. Acesso em: 25 ago. 2022).

[13] STRECK, Lenio. Emenda da Relevância e a exclusão das causas "irrelevantes" no STJ. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 21 jul. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-21/senso-incomum-emenda-relevancia-exclusao-causas-irrelevantes-stj#_ftn6. Acesso em: 25 ago. 2022.

[14] STRECK, Lenio. O que restará do recurso especial se aprovada a PEC da Relevância? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 21 out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-21/senso-incomum-restara-recurso-especial-aprovada-pec-relevancia. Acesso em: 31 ago. 2022.

[15] Aqui, não será debatido o conceito "sistema de precedentes" e a sua recepção no ordenamento jurídico brasileiro, para tanto, ler: STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da complexidade à simplificação na identificação da ratio decidendi: será mesmo que estamos a falar de precedentes no Brasil?. Revista Jurídica, [S.L.], v. 1, n. 54, p. 317, 29 mar. 2019. International Journal of Professional Business Review. http://dx.doi.org/10.21902/revistajur.2316-753x.v1i54.3312; STRECK, Lenio Luiz. Precedentes Judiciais e Hermenêutica: o sentido da vinculação no cpc/15. 3. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2021; LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. 3. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2020.; ROSSI, Júlio César. Precedentes à brasileira: a jurisprudência vinculante no cpc e no novo cpc. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2015.

[16] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Câmara dos Deputados aprova texto definitivo da PEC da Relevância. Brasília, 14 jul. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/14072022-Camara-dos-Deputados-aprova-texto-definitivo-da-PEC-da-Relevancia.aspx. Acesso em: 31 ago. 2022.

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  • é advogado, mestrando em Direito Público pela Unisinos Bolsista Proex/Capes, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos Especialista em Direito Processual Civil e em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica, ambos pela ABDConst.

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