Opinião

IRDR e os JECs no Paraná: reflexão e proposta de fixação de competência

Autor

  • José Sebastião Fagundes Cunha

    é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJ-PR) mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) doutor pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pós Ph.D pela Universidade de Coimbra.

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19 de outubro de 2022, 5h38

Na Seção Cível nos deparamos com a frequente questão do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) em face de decisões dos Juizados Especiais.

O Código de Processo Civil criou novos institutos, aprimorou outros já existentes, com base na mesma premissa: melhorar a prestação da atividade jurisdicional e, com isso, oferecer ao jurisdicionado a resposta adequada e efetiva aos seus anseios [1].

Na busca constante de garantir aos cidadãos a tutela justa de seus direitos tem ganhado cada vez mais matizes, através de instrumentos de tutela que primam, sobremaneira, por princípios como o da inafastabilidade da jurisdição, da isonomia, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé, da eficiência e da efetividade da atividade jurisdicional [2].

O sistema de Juizados Especiais Cíveis e Criminais foi instalado visando a dita justiça coexistencial, com alguns princípios próprios, valorizando a equidade e a mediação endoprocessual, uma forma aperfeiçoada do antigo sistema de conciliação, atendendo de forma expedita e menos formal à crescente demanda da sociedade que busca no Poder Judiciário a solução de suas controvérsias decorrentes de relações instantâneas com os novos recursos tecnológicos de comunicação.

O atual CPC, no mesmo compasso, buscando equacionar as questões candentes de uma "sociedade de massa" [3] apresenta o incidente de resolução de demandas repetitivas, buscando isonomia das decisões, à uniformização da jurisprudência, a segurança jurídica e para alcançar a confiança dos jurisdicionados [4].

O incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) é uma inovação [5] da Lei nº 13.105/2015, que institui o dever de "uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente". A primeira reflexão, e a nosso entender, sub censura, fundamental para atender o princípio ensamblado é decorrente da constatação que o enfrentamento da competência para conhecer e julgar o IRDR nos casos cuja pretensão foi deduzida perante os Juizados Especiais, por consequência, decididos por Turmas Recursais fundamentam as razões de decidir asseverando que o Sistema de Juizados Especiais não contempla que os tribunais possam conhecer dos seus julgados.

Se matéria deduzida não é de competência absoluta dos Juizados Especiais, por consequência irão ocorrer julgamentos perante os Tribunais eventualmente, se invocado o IRDR para "uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente" o dispositivo legal já poderá não ser cumprido! Explico: é que se o IRDR em razão julgado pela Turma Recursal decidir de uma maneira, e a mesma matéria em IRDR for apreciada perante órgão do Tribunal for decidida de outra maneira, estarão em conflito ambas as decisões, como sito, desatendendo a finalidade da norma, mas isso, ao que nos parece, não é questão enfrentadas nas decisões que tem remetido para as Turmas Recursais decidirem o IRDR. Nada mais lógico e justo que um mesmo órgão decida o IRDR se tais questões podem ser enfrentadas tanto pelas Turmas Recursais como pelos Tribunais.

Nos dias que estamos a estudar a matéria há intensa discussão a respeito do princípio da segurança jurídica [6] decorre dele a ideia de julgados que sejam coerentes entre si, mantendo a higidez e a harmonia de uma jurisprudência estável, contínua e previsível. Com isso evitamos o fenômeno da dispersão jurisprudencial. A exemplo, se o IRDR é decidido com um entendimento perante o Tribunal e com outro perante a Turma Recursal a parte, por seu advogado, poderá escolher de acordo com o seu interesse onde irá deduzir a pretensão.

"Linhas decisórias inconstantes violam expectativas legítimas do jurisdicionado. Aquele que se coloca em situação similar à do caso já julgado possui legítima expectativa de não ser surpreendido por decisão diversa" [7]. Os artigos 976 a 987, tem como escopo "a tutela isonômica e efetiva dos direitos individuais homogêneos e seu advento traduz o reconhecimento do legislador de que a chamada ‘litigiosidade de massa’ atingiu patamares insuportáveis em razão da insuficiência do modelo até então adotado" [8], o que deve ser reconhecido quando existirem, simultaneamente, "efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito" e "risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica", nas palavras do artigo 976, o IRDR será julgado pelo Órgão indicado pelo Regimento Interno do Tribunal, dentre aqueles destacados à uniformização de jurisprudência daquela Corte.

O Projeto de Lei nº 7483/2017, de autoria da então deputada federal
Tereza Cristina, apresentando em 25/4/2017, acresce dispositivos à Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que "Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências", determina a aplicabilidade das normas relativas a conexão e continência de ações e do incidente de resolução de demandas repetitivas previstas no Código de Processo Civil a demandas e processos no âmbito dos juizados especiais cíveis. Da leitura da proposta extraímos:

"Artigo 3º A Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo 4º-A:
"Artigo 4º-A. Aplicam-se, a demandas e processos no âmbito dos juizados especiais cíveis, as normas relativas a conexão e continência de ações e ao incidente de resolução de demandas repetitivas previstas na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015  Código de Processo Civil, ressalvado o disposto no artigo 18 desta Lei.
Parágrafo único. O pedido de instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas formulado em razão de demanda proposta perante juizado especial cível também será dirigido ao presidente de tribunal e apreciado e resolvido nos termos das regras previstas no artigo 976 e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015  Código de Processo Civil."
Artigo 4º
Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

A diretoria de Juizados Especiais da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em atenção ao artigo 4º do PL 7483/2017, expediu nota técnica a respeito do pedido de uniformização de interpretação de lei e de resolução de demandas repetitivas relativo a processos que tramitam no Sistema dos Juizados Especiais Estaduais.

O fundamento central é evitar que julgados do sistema dos Juizados Especiais inundem o C. Superior Tribunal de Justiça através de recursos especiais contra acórdãos proferidos por tribunais em IRDR (artigo 987 do CPC), orienta que: "Admite-se o IRDR nos juizados especiais, que deverá ser julgado por órgão colegiado de uniformização do próprio sistema". Com isso, em regra, se afasta o cabimento do Recurso Especial, cabível apenas contra decisões de Tribunais (Súmula 203 do C.STJ). Assevera que não se desconhece o compreensível temor de que em uma mesma área de jurisdição surjam decisões divergentes entre Turma de Uniformização dos Juizados (ou Turma Recursal única) e Turma do Tribunal de Justiça. Entende que tal hipótese é excepcional, a melhor saída é aquela adotada pelo artigo 190, §6º do Tribunal de Justiça de São Paulo, na redação do Assento Regimental nº 552/2016, do seguinte teor: "Em caso de divergência entre súmulas ou enunciados da Turma de Uniformização dos Juizados Especiais e súmulas, enunciados ou jurisprudência dominante das Seções do Tribunal de Justiça, o Órgão Especial deliberará sobre ela, dirimindo a controvérsia após ser provocado pelo Presidente do Tribunal de Justiça, pelo Presidente da Turma de Uniformização ou por qualquer dos Presidentes de Seção".

A solução adotada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo permite que, na hipótese excepcional por ele regulamentada, o Pleno ou o Órgão Especial do TJ (onde houver) resolva a situação extraordinária e evite divergência jurisprudência na sua esfera de competência, tudo sem ordinarizar uma eventual e incomum divergência.

A Nota Técnica da Diretoria de Juizados Especiais da AMB propõe que se reconheça a competência da Turma de Uniformização do Sistema dos Juizados Especiais (ou Turma Recursal Única) para o julgamento das questões que envolvam a uniformização de interpretação de lei e a resolução de demandas repetitivas processadas no sistema dos juizados especiais estaduais, bem como que se institua mecanismo similar àquele adotado pelo Regimento interno do TJ-SP para a excepcional hipótese de divergência nele prevista. Sugeriu a alteração do projeto de lei, portanto, a seguinte redação substitutiva para o parágrafo único do artigo 4º do presente Projeto de Lei, que é desdobrada em dois parágrafos:

"§1º O pedido de uniformização de intepretação de lei e o pedido de instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas formulado em razão de processo que tramita perante juizado especial cível ou da Fazenda Pública será dirigido ao Presidente da Turma de 3 Uniformização ou da Turma Recursal Única do Sistema dos Juizados Especiais e por ela julgado, aplicando-se, no que couber, as regras previstas nos artigos 976/986 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015  Código de Processo Civil.
§2º Em caso de divergência entre súmulas ou enunciados da Turma de Uniformização dos Juizados Especiais e súmulas, enunciados ou jurisprudência dominante do respectivo Tribunal de Justiça, o Pleno ou o Órgão Especial deliberará sobre ela, dirimindo a controvérsia após ser provocado pelo Presidente do Tribunal de Justiça ou pelo Presidente da Turma de Uniformização."

A 1ª Seção do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), por unanimidade, negou provimento ao agravo interno contra decisão que declinou da competência do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) para uma Turma Regional de Uniformização.

Ao analisar a questão, o relator, desembargador João Luiz de Sousa, destacou alguns critérios para instauração do IRDR nos tribunais. De acordo o artigo 976 do Código de Processo Civil (CPC), os requisitos são a efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

O magistrado também fez ponderações sobre o órgão competente para processar e julgar o IRDR, conforme o artigo 978 do CPC. A norma indica que o julgamento do incidente caberá ao órgão indicado pelo regimento interno dentre aqueles responsáveis pela uniformização de jurisprudência do tribunal. E que o órgão colegiado incumbido de julgar o incidente e de fixar a tese jurídica julgará igualmente o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária de onde se originou o incidente. "Assim expressa a Lei demonstra que esta Corte não é competente para o processamento e julgamento de recursos contra decisões procedentes de juízos dos juizados especiais federais e, da mesma forma, em face de incidente desta espécie, relativo aos feitos do JEF ou Turma Recursal. Ademais, diferentemente do que afirma o suscitante, não há previsão de julgamento de incidente de processos provenientes do microssistema dos Juizados Especiais no regimento interno desta Corte, mas apenas aqueles relativos aos feitos originários e recursos de sua competência", defendeu o desembargador.

Na avaliação do relator, os Juizados Especiais têm a estrutura adequada para esse tipo de julgamento. "Entendo que a estrutura dos Juizados Especiais possui meios adequados e suficientes para a solução da controvérsia apresentada no presente incidente, pois além do possível processamento e julgamento do IRDR por Turmas Recursais e órgãos de uniformização de jurisprudência, no âmbito dos Juizados Especiais, estes possuem ainda foros de vinculação, como na eventualidade de Recurso Extraordinário julgado na sistemática da Repercussão Geral", finalizou [9].

Enfim, vale a reflexão no início, para que atenda aos ditames da segurança jurídica, da isonomia e da uniformidade da jurisprudência além da questão suscitada em relação ao IRDR, entendemos que também deve ser enfrentada a questão de decisões divergentes em relação a mesma matéria, em especial se sumuladas.

Conclusão
Pelos fundamentos elencados e pelos demais que, certamente, nosso eminentes Pares poderão elencar, propomos que o Regimento Interno do egrégio Tribunal de Justiça do Paraná seja alterado para determinar que:

1) Fica instituído que compete às Turmas Recursais Reunidas do Sistema de Juizados Especiais Cíveis do Paraná conhecer e julgar os Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) interpostos em razão de decisões dos Juizados Especiais Cíveis.

2) Fica instituído que compete às Seções Cíveis Reunidas conhecer e julgar as divergências entre os IRDRs decididos pela Turmas Recursais Reunidas e Seção Cível.


[1] A necessidade constante de transformação, de modo a melhorar o sistema processual, é assim destacada por Cândido Rangel Dinamarco: "Diante do que já se viu, do que já se propôs, se discutiu, se aceitou no direito positivo e nas práticas dos juízes, é lícito afirmar que a busca de soluções de aperfeiçoamento está encetada e em plena efervescência nos escritos dos juristas e mesmo na evolução do direito processual positivo. E temos também a certeza de que todos repudiam o sistema processual e judiciário de que dispomos, sendo indispensável alguma transformação daquilo que hoje existe". DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 18-19.

[2] "En términos generales, la epistemología aplicada es el estudio orientado a determinar si los diversos sistemas de investigación que pretenden estar buscando la verdad (en diferentes ámbitos) cuentan o no con un diseño apropiado que les permita generar creencias verdaderas acerca del mundo. Los teóricos del conocimiento  como a veces se conoce a los epistemólogos  son quienes rutinariamente examinan prácticas de esta naturaleza, como la ciencia o las matemáticas, a los efectos de diagnosticar si son capaces de cumplir con su pretendido propósito (averiguar la verdad)". LAUDAN, Larry. Verdad, error y proceso penal  un ensayo sobre epistemología jurídica. Trad. Carmen Vásquez y Edgar Aguilera. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 23. Michele Taruffo também vai tratar do tema, considerando "que não obstante dificuldades teóricas e variedades de orientações, a verdade  concordando com Lynch  é objetiva, é boa, é um objeto digno de perquirições e digna de ser cultivada por si mesma"; observa, porém, que é preciso atentar para o fato de se tratar de conceito culturalmente relativo, devendo-se ligar ao contexto as metodologias e técnicas empregadas para tentar determiná-la. TARUFFO, Michele. Uma simples verdade — o juiz e a construção dos fatos. Trad. Vitor de Paula Ramos. Madrid: Marcial Pons, 2012, pp. 102 e 104. DUARTE, Antônio Aurélio A. e BRASIL, Maria Eduardo de Oliveira. In Os Juizados Especiais Estaduais e o IRDR  por uma busca harmônica dos mesmos objetivos. http://cgj.tjrj.jus.br/documents/10136/1186838/irdr-juizados.pdf consulta em 15/10/2022.

[3] "Uma sociedade de massa no dizer de Mauro Cappelletti gera litígios de massa, vale dizer, ações individuais homogêneas quanto à causa de pedir e o pedido. Assim, v.g., o Brasil experimenta esse contencioso de massa através de milhares de ações questionando a legalidade da assinatura básica, os índices de correção da poupança em confronto com as perdas geradas pelos planos econômicos, os índices de correção do FGTS, o pagamento de impostos por determinadas categorias, a base de cálculo de tributos estaduais, municipais, federais etc". FUX, Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 22

[4] 27 "Essas demandas, ao serem decididas isoladamente, geram, para além de um volume quantitativo inassimilável por juízos e tribunais, abarrotando-os, o risco de decisões diferentes para causas iguais, com grave violação da cláusula pétrea da isonomia, como adverte Dennys Loyd". FUX, Luiz. Op. cit. P. 23.

[5] "Trata-se de uma regra inédita no ordenamento jurídico positivado, cuja finalidade, conforme a exposição de motivos, é a de atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, evitando, por conseguinte, a dispersão excessiva da jurisprudência em situações jurídicas homogêneas". FLEXA, Alexandre; MACEDO, Daniel; BASTOS, Fabrício. Novo Código de Processo Civil  o que é inédito, o que mudou, o que foi suprimido. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 621.

[6] "A Constituição Federal se refere à segurança jurídica no caput do artigo 5º, ao lado dos direitos à vida, liberdade, igualdade e propriedade. Esse artigo possui vários dispositivos que a tutelam, como os incisos II (princípio da legalidade), XXXVI (inviolabilidade do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito), XXXIX (princípio da legalidade e anterioridade em matéria penal) e XL (irretroatividade da lei penal desfavorável). A segurança jurídica é vista como subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito. Expressa-se em termos de estabilidade e continuidade da ordem jurídica e de previsibilidade acerca das consequências jurídicas das condutas praticadas no convívio social". MARINONI, Luiz Guilherme. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR., Fredir; DANTAS, Bruno (Coord.). Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 2074.

[7] MARINONI, Luiz Guilherme. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR., Fredir; DANTAS, Bruno (Coord.). Op. cit. P. 2074.

[8] DANTAS, Bruno. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR., Fredir; DANTAS, Bruno (Coord.). Op. cit. P. 2178

[9] Processo 1005357-46.2018.4.01.0000 – Data do julgamento: 07/12/2021

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