Opinião

Lei põe fim ao rol taxativo da ANS: reflexo econômico e o custo social

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18 de outubro de 2022, 10h06

Ab initio, um disclaimer: o presente artigo não ignora princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana; direito fundamental à vida, em sua dupla acepção, estar vivo e viver com qualidade/dignidade; direito fundamental à igualdade ou à isonomia, tratando os desiguais de forma desigual na medida das suas desigualdades; direito fundamental à saúde e todos os princípios e postulados que norteiam esses temas.

É uma realidade em toda e qualquer sociedade, a existência de pessoas que são acometidas com graves doenças e que precisam, em alguns casos, por toda a vida, de tratamento médico, submissão a cuidados especiais e procedimentos específicos, muitas vezes caros e de difícil acesso para o padrão médio financeiro da população brasileira.

Aplicável à isso, mas não somente, o Constituinte originário estabeleceu como um dos pilares fundamentais da Constituição da República e valor axiológico supremo a dignidade da pessoa humana, bem como direitos fundamentais à vida, igualdade, Isonomia, à saúde e proteção ao consumidor. Mas, por outro lado, igualmente fundamental, as liberdades, dentre elas, a econômica, a livre iniciativa, o direito ao trabalho e sua valorização e todos os princípios e postulados que também envolvem o tema.

Neste cenário, se de um lado há um grupo de pessoas, acometidas por doenças, consumidoras de um serviço de saúde para manterem-se vivas e saudáveis com dignidade, por outro há um grupo de pessoas, empreendedoras, que investem suas riquezas e trabalho qualificado em pesquisas e serviços essenciais, com o fim de produzirem resultados e ofertá-los como serviços e produtos qualificados para salvar o primeiro grupo, mas que igualmente perseguem mais riqueza, por meio de sociedades empresárias cujo objeto social é a persecução do lucro, em alguns casos, até mesmo conforme previsto na Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76).

Sem o investimento do segundo grupo, o primeiro grupo não teria chance de vida. Há ainda um grupo, que recepciona e comercializa os serviços e produtos resultados de pesquisas e trabalhos qualificados de certa categoria profissional, promovendo assistência médica e hospitalar privada.

No Brasil, nos termos da Lei nº 9.656/1998, a assistência médica e hospitalar privada é prestada, principalmente, por meio de seguros e planos de assistência à saúde, estes constituídos de três modalidades: medicina de grupo; cooperativa médica; planos próprios de empresas ou autogestão.

A medicina de grupo é constituída por empresas que administram planos de saúde para pessoas jurídicas, famílias e indivíduos, pelo sistema de pré-pagamento ou pós-pagamento. No ponto, regulamentada pela Portaria nº 3.232, de 1986, do Ministério do Trabalho, definiu-se ser a medicina de grupo pessoa jurídica de direito privado, com ou sem fins lucrativos, que presta assistência médico-hospitalar com recursos próprios ou por meio de rede credenciada, mediante o pagamento de contraprestação pecuniária.

Por sua vez, nas cooperativas, os médicos prestadores do serviço são seus "sócios" e recebem pagamento de acordo com a produção individual, além de terem participação nos lucros das unidades.

Já os planos de saúde constituídos sob a modalidade de autogestão, regulados pela Lei nº 9.656/1998, são planos próprios das empresas, dos sindicatos ou das associações ligadas a trabalhadores que administram, por si mesmos, os programas de assistência médica, considerados não comerciais.

As sociedades empresárias de saúde suplementar negociam planos de saúde, ou seja, serviço que fornece atendimento na área de saúde, por meio de exames, consultas e procedimentos, de modo contínuo, mediante o pagamento de um valor mensal realizado pelo cliente.

A regulação de toda essa relação é feita pelo Estado, por meio da ANS (Agência Nacional de Saúde), que segundo o Artigo 3º da Lei 9.961/2000, tem a finalidade institucional de "promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no país".

Esta contribuição para ações em saúde se traduz em diversas competências (artigo 4º da Lei 9.961/2000), cujas as principais e mais notadas pela sociedade são:

  • a definição de teto máximo de reajuste para os planos individuais e familiares;
  • a fiscalização de reajustes aplicados aos planos coletivos;
  • a criação da lista denominada "rol de procedimentos e eventos em saúde", conhecido como rol da ANS.

O rol da ANS é uma listagem de procedimentos e terapias que as operadoras de saúde suplementar são obrigadas a oferecer a seus clientes, o que é estipulado pela agência reguladora.

Em todo este contexto e diversidade de players qual o ponto de equilíbrio?

Ao criar uma lei que prevê a obrigatoriedade de um plano de saúde cobrir todo e qualquer tratamento, independentemente de sua convencionalidade ou não, em um rol aberto de procedimentos à um custo inferior do plano pago pelo usuário-consumidor, o Estado está desequilibrando uma relação contratual firmada sob outros parâmetros?

Contextualização histórica recente do tema
Em recente julgamento, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu ser taxativo, em regra, o rol de procedimentos e eventos estabelecido pela Agência Nacional de Saúde (ANS), não estando as operadoras de saúde obrigadas a cobrirem tratamentos não previstos na lista. Contudo, na própria decisão o colegiado fixou parâmetros para que, em situações excepcionais, os planos custeiem procedimentos não previstos na lista, a exemplo de terapias com recomendação médica, sem substituto terapêutico no rol, e que tenham comprovação de órgãos técnicos e aprovação de instituições que regulam o setor.

Por maioria de votos, a seção firmou as seguintes teses:

1. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;

2. A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;

3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;

4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (1) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (2) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (3) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e (4) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.

Em relação às quatro condicionantes do item "4", a seção citou os enunciados 23, 33 e 97 das Jornadas de Direito em Saúde, os quais dispõem:

ENUNCIADO Nº 23. Nas demandas judiciais em que se discutir qualquer questão relacionada à cobertura contratual vinculada ao rol de procedimentos e eventos em saúde editados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) recomenda-se a consulta, pela via eletrônica e/ou expedição de ofício, a esta agência reguladora para os esclarecimentos necessários sobre a questão em litígio.

ENUNCIADO Nº 33. Recomenda-se aos magistrados e membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e aos Advogados a análise dos pareceres técnicos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS — Conitec para auxiliar a prolação de decisão ou a propositura da ação. (Redação dada pela III Jornada de Direito da Saúde – 18/3/2019)

ENUNCIADO Nº 97. As solicitações de terapias alternativas não previstas no rol de procedimentos da ANS, tais como equoterapia, hidroterapia e métodos de tratamento, não são de cobertura e/ou custeio obrigatório às operadoras de saúde se não estiverem respaldadas em Medicina Baseada em Evidência e Plano Terapêutico com Prognóstico de Evolução.

Com base nas balizas estabelecidas no julgamento, a Segunda Seção entendeu, no EREsp 1.886.929, que o plano de saúde é obrigado a custear tratamento não contido no rol para um paciente com diagnóstico de esquizofrenia, e, no EREsp 1.889.704, que a operadora deve cobrir tratamento para uma pessoa com transtorno do espectro autista, porque a ANS já reconhecia a terapia ABA como contemplada nas sessões de psicoterapia do rol de saúde suplementar.

Um dos fundamentos para a taxatividade do rol da ANS, segundo a decisão, repousa no funcionamento adequado do sistema de saúde suplementar, garantindo proteção, inclusive, para os beneficiários — os quais poderiam ser prejudicados caso os planos tivessem de arcar indiscriminadamente com ordens judiciais para a cobertura de procedimentos fora da lista da autarquia.

Também de acordo com o relator, o respeito à lista garante que a introdução de novos fármacos seja precedida de avaliação criteriosa da ANS, especialmente em relação à eficácia dos tratamentos e à adoção de novas tecnologias em saúde.

Acrescenta que a taxatividade, não afasta do indivíduo a tutela jurisdicional, sendo possível ao Judiciário determinar que o plano garanta ao beneficiário a cobertura de procedimento não previsto pela agência reguladora, a depender de critérios técnicos e da demonstração da necessidade e da pertinência do tratamento.

E finaliza analisando que nenhum outro país do mundo possui lista aberta de procedimentos e eventos em saúde de cobertura obrigatória pelos planos privados pelo sistema público. Ele lembrou, ainda, que a lista da ANS é elaborada com base em profundo estudo técnico, sendo vedado ao Judiciário, de forma discricionária, substituir a administração no exercício de sua função regulatória.

A taxatividade estipulada pelo Superior Tribunal de Justiça, por óbvio, causou grande comoção dentre milhões de doentes que se perceberam desamparados e fragilizados na proteção do direito à saúde e acentuação da hipervulnerabilidade na qualidade de consumidores.

Em rápida oposição ao julgado, o Congresso Nacional aprovou projeto de lei que obriga os planos de saúde a cobrirem tratamentos que não estavam previstos na lista da Agência Nacional de Saúde (PL 2.033/2022). O projeto veio da Câmara dos Deputados, aprovado sem mudanças pelo Senado Federal, e, seguindo rito do processo legislativo, foi sancionada nesta data (21/9/2022) pelo presidente da República.

A exposição de motivos da referida lei menciona o julgamento da Corte Federal e justifica seu trâmite como resposta aos anseios sociais, sem qualquer análise econômica da propositura.

No entanto, em resposta às perguntas posta alhures, mister se faz analisar o impacto econômico e o custo social da lei aprovada, bem como o desequilíbrio contratual provocado.

Impacto econômico, custeio social e desequilíbrio contratual
Uma vez que a um paciente tenha sido indicado por seu médico submeter-se a um tratamento não previsto no rol da ANS, a lei aprovada impõe dever de cobertura pelas operadoras de planos de saúde, desde que (1) comprovada a eficácia, (2) exista recomendação pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias pelo SUS ou seja recomendado por pelo menos um órgão de avaliação de tecnologias em saúde com renome internacional.

Essa abertura do rol, impõe para operadoras de planos de saúde uma obrigação com reflexo econômico e custo social.

O reflexo econômico é de fácil percepção na medida em que medicamentos/procedimentos/tecnologias médicas disponíveis no mercado não são gratuitos e para seu acesso devem ser pagos, sob a ótica da cadeia de produção já mencionada alhures.

O custo social se refere aos dispêndios e/ou danos suportados pela coletividade em contraposição aos custos privados que recaem apenas sobre os particulares envolvidos numa determinada atividade ou transação com reflexo econômico. Vale citar que a saúde envolve uma relação particular, com interesse público, mas também uma relação de direito público, ante à disponibilidade para a população pelo Estado de serviço de saúde. Neste ponto, obrigar os três entes políticos ou um deles a pagar um tratamento médico, este pagamento será feito com dinheiro oriundo de tributo, revertido a um indivíduo ou a um grupo e não à coletividade, gerando um custo social para outros.

É preciso ser realista, todas as vezes que um ato normativo ou do poder público traz benefício ou justiça social a um grupo específico, um reflexo econômico e um custo social insurgem e o preço deverá ser pago, pois o brocado é antigo, porém verdadeiro: "não existe almoço grátis".

Neste ponto, parece-nos acertada e mais equilibrada a decisão do Superior Tribunal de Justiça, na medida em que a manutenção de rol aberto aos procedimentos da ANS traz desequilíbrio na relação contratual que envolvem planos de saúde e usuários, afetando o pacta sunt servanda. Adiciona-se, ainda, que a segurança das relações jurídicas depende da lealdade, da equivalência das prestações e contraprestações, da confiança recíproca, da efetividade dos negócios jurídicos, da coerência e da clarividência dos direitos e deveres, sob pena de desequilíbrio ou insegurança.

Esse desequilíbrio, com reflexo econômico, traz um custo social e o preço a ser pago deverá ter uma fonte: rateio entre todos os usuários pelo procedimento não previsto em uma relação particular usuário-plano de saúde? Fonte de custeio em uma relação usuário-SUS? Já que não terá em suas dependências tratamento não elencado pela ANS, ambos braços do Estado!

A solução mais comum, à luz até mesmo do direito comparado, seria o próprio usuário pactuar um termo aditivo com a operadora de plano de saúde a fim de ver incluído o tratamento não previsto no rol em seu contrato e arcar com seu custo adicional.

Resta cediço que o tema é complexo, envolve princípios constitucionais de valores axiológicos dos mais altos, mas o debate sobre impor às operadoras de planos de saúde procedimentos não previstos em rol da ANS deve ser permanente vez que os reflexos econômicos e o custo social respingam em terceiros, que não integram uma relação contratual específica.

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