Opinião

Como o Direito fracassa ou como conter o gozo da sociedade sem tirania

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17 de outubro de 2022, 9h18

Quando visto de longe, o fracasso talvez pareça um evento grandioso e a história tende a reafirmar essa percepção. A título de exemplo, pensemos nas grandes guerras ou na escravidão. Mas o problema de compreendermos o fracasso dessa maneira é nos tornarmos insensíveis às suas nuances mais cotidianas. Tolerar e consentir com a edificação do fracasso — utilitaristicamente — é o que possibilitou tornar reais os eventos mais hediondos.

Spacca
Pois bem. O Direito também fracassa cotidianamente e é sobre isto que me proponho a refletir.

Mas, antes, o que é fracassar juridicamente? Fracassar juridicamente é quando livros esquematizados, resumidos e quejandos são os mais vendidos na área jurídica. Fracasso também ocorre quando uma pessoa fica quatro anos presa sem qualquer prova (lembremos: aqui).

Fracassamos igualmente quando mantemos em prisão alguém que furta baldes de água. Sabonetes. Ou gente com reconhecimento por fotografia.

Não menos importante é o fracasso quando um país vence por 1 voto a declaração de constitucionalidade da própria Constituição (falo aqui das ADCs 43, 44 e 54).

Até aqui acredito que o leitor tenha compreendido o essencial: o Direito fracassa aos olhos de todos e em plena luz do dia. Dentro e fora dos Tribunais. Dentro e fora das salas de aulas… Em todos os níveis: da graduação ao doutorado.

Nesse contexto e fosse o fracasso do Direito uma previsão normativa, não resta dúvida de que seu rol não seria taxativo. Pois exemplificativo seria. A cotidianidade do fracasso sempre nos surpreende. Vejamos!

Comecemos pelo início: de quando uma autora, Fabíola Utzig Haselof, decidiu intitular sua obra de Como as nações prosperam[1]. Algo no estilo de grandes obras (algumas delas muito boas, diga-se de passagem) que são best-sellers. Exemplos: Como as democracias morrem, Por que as nações fracassam — a autora menciona o segundo como marco teórico, inclusive —, entre outros. Mas note-se, a autora busca solucionar problemas de ordem geral (prosperidade da nação) por meio de uma "teorização empírica" que solucionaria os problemas econômicos a partir do combate à corrupção exclusivamente. Faz do varejo o próprio atacado. Um looping hermenêutico.

Ora, crime não se elimina; busca-se controlar, reduzir. Jamais povo algum venceu a batalha contra o crime. Aliás, na onda de grandes obras, recomendamos A Fábula das Abelhas, do Barão de Mandeville, sátira inglesa do século 18 "desconfiadora da natureza bondosa do homem". Ali, na ilusão das abelhas "virtuosas", achava-se que os vícios poderiam ser extirpados. Totalmente. Só que, à semelhança de uma certa operação que aconteceu no Brasil, quebraram o "país das abelhas". Quebraram inclusive as empresas das abelhas. Fracasso geral. Logo, as abelhas queriam os vícios de volta, porque, em uma perspectiva bem liberal — e a fábula é bem liberal —, os vícios são privados e os benefícios são públicos. Os liberais sabem das coisas. Sabem da impossibilidade do impossível. E da necessidade do possível. E sabem separar o joio do trigo.

Punir faz parte da civilização. A questão é como viabilizar uma punição adequada dentro das regras do jogo democrático. Como diz o psicanalista Alfredo Jeruzalinski, o grande problema é: como conter o gozo da sociedade sem ser tirânico. Esse é o ponto. Veja-se: conter. E não suprimir, acabar.

Isso só se alcança quando se reconhece as garantias processuais penais como marco civilizatório. Por exemplo, no livro, na direção contrária, a autora chega a considerar que temos garantias demais no Brasil. E que é preciso suprimir algumas.

De minha parte, penso que suprimir direitos e garantias que tratam de liberdades já por si é um fracasso.

Sim, sei que há um certo senso comum na academia e em outros grupos sociais (imprensa e intelligentsia econômica, por exemplo) e que já toma conta do discurso jurídico. Especialmente em setores do Judiciário, como fica evidenciado por livros como esse, que é a favor da eficiência, mas especialmente de uma eficiência quantitativa, e não necessariamente qualitativa. O que Haselof faz, elegendo a cooperação transnacional como antídoto para a corrupção, mola propulsora da fraternidade das nações, é mais uma faceta dessa "tendência" acadêmica. Mas, respeitosamente, divirjo.

O que Haselof ignora é que o próprio marco teórico cuja obra inspirou a sua, e falamos aqui de Daron Acemoglu e James A. Robinson, tem como bojo de sua teoria institucionalista a questão das contingências. Isso a juíza-autora ignora. As contingências históricas e econômicas são as maiores razões de as nações prosperarem ou fracassarem. Esse é o ponto.

Logo, se estamos falando de contingências, precisamos necessariamente falar de contexto. Cada país tem um contexto socioeconômico e cultural próprio. Logo, não há saídas fáceis para se mudar a institucionalidade de uma sociedade. Daí não se infere que uma condição cultural "condena" uma nação a fracassar. Contingências podem mudar, e os autores (Robinson e Acemoglu) deixam isso claro na obra. Ainda bem.

Agora, da conclusão de que contingências podem ser alteradas, não se pode depreender que uma institucionalidade possa ser alterada em desfavor de garantias fundamentais. A Constituição é a própria institucionalidade que — muitas vezes — se busca alterar. Podemos ter desacordos morais sobre direito e política. É natural que tenhamos, como alerta Waldron. Todavia, é necessário haver um mínimo de acordo necessário para que justamente se tenha isso que se chama de institucionalidade. Dentro do contexto do pós-guerra convencionou-se que esse mínimo se daria no respeito à Constituição e à legalidade (rule of law).

Quando se solapa garantias a favor da eficiência judiciária de combate (sic) ao crime organizado (nacional ou transnacional), inverte-se a lógica: Haselof relativiza a presunção de inocência, o direito ao silêncio e ao princípio da vedação à autoincriminação em sua obra. Isso não é pouco, convenhamos. Mas ela vai além: expressa, claramente, que a soberania é um mal a se combater — como a propor uma espécie de neocolonialismo. Precisamos de uma metrópole que nos ensine a seguir a lei. Síndrome de caramuru?

Ora, a Constituição nos trouxe a (nova) institucionalidade, a própria civilidade a partir do comum acordo razoável. Alguém sabe como era o Brasil antes da CF-88?

Até podemos divergir de quais seriam os meios de concretizar a institucionalidade trazida pela Carta, mas os direitos fundamentais estão ali, e faz parte da institucionalidade respeitá-los — assim como a soberania do país. O Brasil é uma República soberana.

Se desrespeitamos (ou propomos a sua fragilização-relativização) das garantias processuais penais, temos o fracasso do Direito. E com o Direito fracassando, a institucionalidade necessariamente fracassa. Não é preciso dizer que, com o direito e a institucionalidade fracassando, a nação necessariamente também fracassa. Ao justificar os fins a partir de tortos (e incivilizados e inconstitucionais) meios, Haselof trai o comum acordo constitucional e, se tratando de uma intelectual de alta titulação em prestigiado programa de pós-graduação, isso se torna ainda mais grave.

Temos, ainda, o agravante de que a autora utilizou uma leitura inadequada do próprio marco teórico que fundamentou sua obra. Acemoglu e Robinson nunca defenderiam uma relativização da presunção de inocência em sua teoria institucionalista. Jamais.

Enfim concluindo parcialmente, nada mais oportuno do que refletir a partir da conclusão da autora em comento. Veja-se:

"A transformação somente ocorre quando a sociedade evolui e quebra o paradigma limitante da geração de riqueza criminosa para prosseguir para uma nova realidade de geração de riqueza criativa (…) O horizonte é infinito, mas a nossa visão é limitada. A tarefa de enxergar, de imaginar algo que não faz parte da nossa realidade, e que pode até conflitar com nossas concepções atuais, sedimentadas pela repetição, é uma tarefa desafiadora"[2]

Pois é verdade. Realmente desafiador. Não nego. Corrupção é sim um tema importante. E por isso mesmo é que repetimos que ninguém é a favor da corrupção, a não ser o corrupto, é claro. Um país não progride com impunidade. Mas também não progride com supressão de garantias. E se progredir com supressão de direitos e garantias, já não vale a pena viver nessa sociedade.

Desculpem-me a repetição. Mas nos parece que o óbvio ainda precisa ser dito.

Querem saber como o Direito fracassa? É fragilizar a territorialidade jurídica; é flexibilizar a noção de nação; é aceitar que países estrangeiros queiram combater (sic) o crime com o "modelo Guantanamo" — cujo direito nem no próprio país aplicam. Inverter o ônus da prova e quejandices são ingredientes de uma tempestade perfeita. Fracassa o direito e fracassa o país. E fracassa a democracia.

Querem saber como o direito fracassa? Olhemos no retrovisor (aqui): o Direito brasileiro fracassa quando um ministro do Supremo Tribunal Federal precisa reafirmar, para um procurador da Fazenda Nacional, conceitos como a presunção de inocência e a extensão das (ir)regularidades de uma sentença. Não há fragilidade intelectual que impeça o movimento de destruição de princípios e garantias fundamentais conquistados ao longo da história.

Uma coisa parece evidente. Esses são os resquícios da ode lavajatista que buscou o esvaziamento do princípio constitucional da presunção de inocência e que, agora, rondam as eleições atuais. Nesse caso da PGFN, a fundamentação do ministro Gilmar Mendes teve que ser dura. E foi no momento oportuno. Mas quantos desses usos políticos do direito são feitos todos os dias e que escapam a um filtro constitucional? Lawfare em seu estado puro. Veja-se, então, que sob qualquer ângulo, o modo como o Direito fracassa.

Numa palavra, uma sociedade prospera, moral e economicamente, toda vez que consegue conter o gozo da sociedade (pensemos na questão "civilização v. barbárie") sem autoritarismos, que sempre levam a tiranias.

Os atalhos baseados em supressão de direitos e garantias sempre dão errado. Basta olhar em volta.


[1] HASELOF, Fabíola Utzig. Como as nações prosperam: cooperação internacional e as ações mais poderosas contra corrupção transnacional. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

[2] HASELOF, Fabíola Utzig. Como as nações prosperam: cooperação internacional e as ações mais poderosas contra corrupção transnacional. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 376.

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